sábado, 29 de agosto de 2009

A lei do ressentimento

Raover me enviou por e-mail, semanas atrás, um texto incitante de Luis Felipe Pondé, intitulado As freiras feias sem Deus, sobre a lei antifumo, definida pelo autor como fruto do impulso fascista moderno. Li, concordei com seu teor, mas não pensei em me alistar na guerrilha contra a medida, não só porque ela parece inócua e menos importante diante de outras questões, como também porque sempre encontro da mesma forma que a maioria das pessoas, um jeitinho de burlá-la.
Mas outro dia minha indignação individualista veio à tona quando eu, no terminal rodoviário Barra Funda, buscava em vão um lugar para satisfazer preventivamente meu vício, antes de embarcar para uma longa viagem de seis horas, em total abstinência. Decidi, então, escrever estas linhas partindo da mesma pergunta feita por Pondé: “O que move as pessoas, em meio a tantos problemas, a dedicar tamanha energia para reprimir o uso do tabaco?” Evoquei mentalmente algumas hipóteses para buscar a resposta.
A mais óbvia seria a necessidade dos eventuais candidatos à presidência da República de inventar medidas de alto impacto promocional, capazes de justificar a ausência de projetos políticos consistentes. Ocorre que essa é uma tendência mundial que não se explica simplesmente como factóide, comum aqui e alhures. Há, também, é claro, a hipótese dos grandes investimentos econômicos em jogo, especialmente dos laboratórios farmacêuticos internacionais interessados em escoar seus novos medicamentos antivício, mas esta seria prontamente rebatida como teoria conspirativa banal.
Foi assim que me lembrei das especulações céticas do falecido Jean Baudrillard, que li no século passado, a respeito da nossa época como uma era do arrependimento. Cito um trecho: “Dantes interrogávamo-nos sobre o que poderia suceder depois da orgia (after the orgy): trabalho de luto ou melancolia? Nem uma coisa nem outra, sem dúvida, mas uma interminável depreciação de todas as peripécias da história moderna e dos seus processos de libertação (dos povos, do sexo, do sonho, da arte e do inconsciente), em suma de tudo o que constitui a orgia do nosso tempo, sob o signo do pressentimento apocalíptico do fim de tudo isso. Em vez da fuga para frente, preferimos o apocalipse retrospectivo e o revisionismo em todas as coisas – todas as sociedades se tornam revisionistas, repensam tudo pacificamente, branqueiam os crimes políticos, os escândalos e também as feridas, alimentam o seu fim... A própria celebração e a comemoração não são mais do que a forma branda do canibalismo necrófago, a forma homeopática do assassínio cauteloso. É a tarefa dos herdeiros, cujo ressentimento para com o morto não tem fim”.
Vinte anos depois, essa idéia parece fazer sentido mais do que nunca. O papa pede perdão pelos crimes da Inquisição, Lula pela escravidão africana no Brasil, os alemães pelo holocausto, Clinton por ter gozado com a felação da secretária, o governador por ter ocultado sua homossexualidade dos cidadãos. Os obesos arrependem-se do excesso de comida, os gramáticos dos vocábulos politicamente incorretos, os homens pelo machismo, as mulheres pela subserviência secular aos machos – e assim por diante, numa autoflagelação infinita. No meu caso, no nosso caso, quantas penitências teremos de pagar pelos milhares de cigarros fumados em bares, ônibus e até aviões, quando aquele rolinho de papel era apenas um pequeno e inofensivo prazer?
Passar a história a limpo, retirar dela os atos deflagrados pelos instintos, ultrapassar nossa animalidade, recalcar de vez as fontes inconscientes e conflituosas da vida. Pulsão de morte. É esse ressentimento (sentir outra vez, reviver compulsivamente a dor) que alimenta a proliferação do biopoder em nossa época.
Para terminar, deixo aqui um alerta do mesmo filósofo apocalíptico. Principalmente à classe média, maior consumidora dessa compulsão: “o que é fantástico é que nada do que julgávamos ultrapassado pela história desapareceu verdadeiramente, está tudo ai, prestes a ressurgir, todas as formas arcaicas, anacrônicas, intactas e intemporais, como os vírus no fundo do corpo”. E como as bitucas de cigarro lançadas sobre as sarjetas da vida.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

O show miolionário da educação II

Em seu último número, a revista Cult traz um dossiê intitulado O conflito das universidades, que deveria ser lido por professores e alunos. Vários intelectuais analisam a degradação do ensino superior no Brasil e há também uma matéria sobre a situação da universidade na França, ameaçada pelas reformas de Sarkozy. Os diagnósticos da crise são conhecidos: a lógica mercantil que se sobrepõe ao pensamento crítico e reflexivo, a correspondência entre a exigência de resultados rápidos (o chamado produtivismo) e a acumulação de capital, o mal-estar das ciências humanas diante da hegemonia das tecnociências.
Mas não é disso que falarei neste momento. Como prometi, quero comentar as imagens postadas dias atrás, extraídas da revista Realidade (atenção, amigos e amigas: realidade e não representação – assunto ao qual hei de voltar várias vezes), que circulou entre 1966 e 1976 com matérias ousadas e várias vezes censuradas pela ditadura militar. Elas haviam sido publicadas numa série de artigos dedicados ao movimento estudantil de 68, à reforma universitária de 69 e seus desdobramentos.
É sabido que na década de 1960 (ou desde o final da década anterior), a bandeira da reforma universitária foi levantada por intelectuais, políticos e estudantes de esquerda como condição básica para o desenvolvimento autônomo brasileiro. Eles buscavam alternativas para substituir o modelo tradicional e elitista da (embora recente) universidade brasileira. Uma delas foi a Universidade de Brasília, projetada por Darcy Ribeiro, mas rapidamente descaracterizada pelo regime dos generais que, com a ajuda de cinco tecnocratas norte-americanos, planejavam coisa inteiramente distinta. A chave do tesouro se encontrava no convênio MEC-USAID, estopim do movimento de 68.
Ted Goertzel, estudante graduado da Washington University e que então realizava pesquisas no Brasil, publicou na Revista Civilização Brasileira, em 1967, uma análise da ideologia de desenvolvimento americano aplicada à educação superior. Segundo ele, os planejadores encaravam a educação universitária como fonte de recursos humanos para a indústria, especialmente o complexo industrial-militar. Em seu depoimento no livro Conversa com historiadores brasileiros, Emília Viotti da Costa também lembra que o projeto encarava os alunos como mão de obra e não como indivíduos e cidadãos e continha uma orientação demasiadamente tecnológica, em detrimento dos estudos humanísticos e da pesquisa científica desinteressada, colocando a universidade a serviço das empresas em vez de a serviço da sociedade como um todo. Opositora da reforma, ela foi convidada várias vezes por centros acadêmicos para expor suas críticas. Nos meses finais de 1968, quando o embate entre os estudantes e o governo se tornara incontornável, foi ainda chamada para debater o assunto, juntamente com José Dirceu e o ministro da Educação, Tarso Dutra, em programa de televisão transmitido ao vivo - uma das razões para a perseguição política que viria sofrer.
A mobilização estudantil de 1968 foi propiciada pela arregimentação de amplas parcelas de jovens da classe média, à procura de oportunidades de educação, cultura, trabalho e vida moderna nas cidades desde o grande fenômeno de urbanização, ocorrido a partir da década de 1950. A educação superior era vista como porta de entrada para esse mundo, mas não havia lugar para todos. A principal questão para a mobilização dos jovens era a existência dos excedentes: aqueles que passavam no vestibular, mas não podiam ingressar na universidade por falta de vagas, principalmente em Medicina e Direito.
A reforma universitária realizada desde 1969 buscou solucionar o problema e, simultaneamente, debelar as organizações estudantis. Em janeiro daquele ano, a revista Realidade publicou matéria intitulada Vamos matar 120 mil esperanças, denunciando a ineficiência e a crueldade do vestibular, bem como seu descompasso em relação ao ensino de segundo grau. O artigo também revelava como a indústria dos cursinhos crescia à custa desse exame. Muitos deles haviam nascido nos centros acadêmicos, na esteira de uma política da UNE que propunha a democratização do acesso à universidade. No fim da década de sessenta, haviam se transformado em indústria, como se nota na reportagem A aula é um show, que não deixava de demonstrar simpatia por essa modalidade de educação empresarial e, ao mesmo tempo, de desqualificar o ensino médio público. À modernidade dos cursinhos, com seus atores, videotapes e computadores, contrapunha as aulas obsoletas dadas nos colégios.
Desde a década de 1970, com o vestibular unificado e classificatório, que forçou o acesso dos candidatos a carreiras antes menos procuradas, com a ampliação das vagas por meio das licenciaturas curtas, com a expansão das escolas privadas e dos cursinhos preparatórios e, principalmente, com o milagre brasileiro, a base social das grandes manifestações estudantis se desagregou, a par da imensa repressão desencadeada sobre a esquerda.
Estavam dadas as condições para a acumulação do capital via empresas privadas de ensino. Jogada di gênio, abastecida ano a ano pela sombra frondosa do vestibular e consolidada dez anos depois, sob a batuta dos governos neoliberais. Complacente e orgulhosa, a universidade pública aprimorou e assegurou o modelo. Moderna, produtiva (o que produz, para que?) e gerencial, ela fechou os olhos diante de um segundo grau público cada vez mais degradado, pauperizado e, de fato, planejado para ser obsoleto.
De que serve trazer à memória a origem do atual modelo universitário brasileiro, recentemente objeto de pequenas alterações que, apesar de tímidas, são tripudiadas ou ignoradas em nosso meio: o PROUNI, as cotas, o sistema de pontuação adicional, o ENEM, o novo vestibular, a reorganização do currículo do ensino médio? Eric Hobsbawm disse que o papel do historiador é relembrar o que os outros esquecem. Ele que me perdoe, mas tenho dúvidas se a disciplina histórica, hoje já transformada em tecnociência, ainda possui essa capacidade. Tampouco creio que obviedades, como as aqui expostas, possam ter algum efeito no mundo de disciplinado labor, doce apolítica e agitado tédio da inteligência globonacional.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O show milionário da educação

Que tal apreciar estas imagens e refletir um pouco sobre o que elas significam enquanto eu tomo fôlego para escrever alguns comentários? Prometo não demorar muito.





































domingo, 23 de agosto de 2009

Estilo deste blog



Caros amigos e amigas. Neste blog escreverei aquilo que não cabe em publicações acadêmicas. Não porque elas sejam poucas ou ofereçam espaço restrito aos autores. Ao contrário, com a proliferação espantosa de periódicos desse tipo, é enorme a quantidade de páginas disponíveis para a divulgação de artigos. Acontece que eles se tornaram muito padronizados e nada excitantes. Não me despertam o interesse e nem sinto prazer em escrevê-los.

Portanto, digo desde já que este não é um blog acadêmico, o que não significa dizer que estou abandonando a vida universitária ou minha profissão. Continuo historiador, professor, pesquisador e orientador. Mas aconselho aos eventuais candidatos à minha orientação que este não é o espaço apropriado para a discussão de projetos de pesquisa. Serão benvindos aqui, desde que cheguem para debater sem qualquer outro interesse ou alguma camisa-de-força.

E aos colegas em geral: se no cabeçalho incluo as palavras-chave acadêmicas e historiográficas, convém lembrar que o título geral do blog é impertinências. Isto significar dizer que apenas nesta condição tais assuntos serão tratados.

Neste sítio haverá lugar ainda para temas políticos, porque, como é óbvio, falar de academia, de historiografia ou de cultura é falar de política, queira-se ou não. Esclareço, porém, que não sonho escrever matérias jornalísticas, nem serei um a mais a disputar tal campo profissional, aliás, já tão desmantelado.

Finalmente, esta não será uma página de relacionamentos, pelo menos na acepção que atualmente se dá ao termo. Tampouco será um lugar de escalada, ainda que vã, para a fama e a celebridade. Nunca me imaginei sentado no sofá da Hebe ou do . Há quem goste disso, até mesmo no nosso círculo intelectual. Quanto a mim, nada tenho de especial para anunciar nesses ambientes iluminados.

Levei algum tempo para decidir se teria coragem de abrir um blog, com que propósito o faria e, na hipótese positiva, qual seria o seu tom. Depois de muita angústia, encontrei a resposta num livro póstumo de Edward W. Said, recentemente publicado no Brasil, no qual o historiador palestino analisa o estilo tardio de alguns compositores e escritores, aos quais nem de longe ouso me comparar e cujos nomes omito por pudor. Em todos os casos individuais estudados , mais do que o alcance da transcendência estética, do equilíbrio ou do refinamento teórico, as figuras citadas buscaram, a certa altura da vida, mergulhar criticamente de forma livre e avessa à conciliação: "ser tardio é portanto uma espécie de exílio autoimposto diante de tudo o que costuma ser aceito, um exílio posterior e sobrevivente a isso". Gostaria de experimentar um pouco desse estilo, se é que tenho competência para tanto.

Um blog é sempre um salto no escuro ou, como diria Baudrillard, no buraco negro que é nossa sociedade virtual. Nem sei se terei algum seguidor (palavra inteiramente imprópria em tempos de messianismo líquido), e se não tiver este será, pelo menos, meu fumódromo particular, imprevisto na lei. Mas se alguém se dispuser a frequentar suas impurezas, desde já meus cumprimentos.