quinta-feira, 29 de outubro de 2009

O longo adeus à História III

Já ia mudar de assunto e fazer uma pausa, espécie de retiro espiritual até para reverenciar os mortos, mas os comentários redespertaram minha compulsão discursiva. Nada do que se programa resiste hoje em dia por muito tempo, o que não é ruim, pois exige de nós uma constante ativação neuronal em direções ou ondulações variadas e simultâneas, muito diferente do raciocínio indutivo por etapas.
Minha idéia era tratar disso mais para a frente para não cansá-los nem me cansar. Besteira pedagógica. Peço, aliás, que abandonem de vez qualquer imagem professoral que porventura tenham de mim.  Nunca predendi adotar tal figurino.
E já que é assim, vamos direto ao assunto. Essa forma de pensamento em conexão com outros pensamentos, formulada e expressa cada vez mais de forma imediata em rede, é chamada por Pierre Levy de inteligência coletiva. Trata-se de algo positivo ou negativo? Creio que de ambos. Perde-se de um lado, ganha-se de outro. E talvez nem haja perdas, senão a mescla da reflexão mais lenta e cadenciada com a criação caótica (no bom sentido do termo porque originou a vida no princípio dos tempos). As vanguardas modernistas também tentaram experimentá-la, só que com êxito parcial, uma vez que ainda não havia desenvolvimento técnico suficiente para tal propósito.
Quando visito o twitter - para mim o exemplo mais próximo da comunicação que virá daqui por diante - vejo como se dá esse tipo de circulação de idéias, de formação das opiniões e das atitudes potenciais nesse jogo. Todo dia me surpreendo com novas possibilidades de arte e pensamento agora disponíveis para se conectar pelo mundo. Ao contrário do que, à primeira vista poderíamos entender como massificação, parece que as subjetividades afloram como cogumelos.
A rede é formada por uma imensidão de indivíduos e grupos que se interligam pelos mesmos interesses e que ao mesmo tempo se relacionam com gente voltada para outros assuntos. Não há só piadistas de mau gosto ou jornalistas redundantes, mas também escritores de minicontos e minipoemas (gênero que nasce como uma espécie obra coletiva), filosofistas, psicologistas, socioprofessores, arteiros e toda uma multidão inclassificável segundo os padrões conhecidos.
Otimismo demais hoje, amanhã o ceticismo de sempre? Talvez seja isso, mas não me cobrem coerência se nem mesmo os pensadores de ponta conseguem apontar alguma certeza. 
Quando falo em adeus à história, enfim, e que fique claro, não me refiro apenas e especificamente à disciplina com tal nome. Penso em todas as disciplinas e na escola em geral, da universidade aos primeiros anos de formação, que patinam sem perceber que as novas gerações já aprendem por meio do não-método da inteligência coletiva. Até mesmo os digitamente excluídos do meio da floresta ou dos sertões.
Noutras palavras, é a essa história, nascida com a dita modernidade - realidade histórica, pensamento histórico - que me refiro. E é a ela que a cada instante dizemos adeus, querendo ou não, felizes ou melancólicos.     
  

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O longo adeus à história II

Há sempre exceção, mas os historiadores costumam fugir de filosofias e teorias. O seu negócio é pão pão, queijo queijo. Para eles teoria se reduz a método, do tipo que fonte usar e como. Em tempo de pragmatismo absoluto, como hoje, eles estão no céu.
Acontece que o mundo gira muito rápido e nesse giro abala as crenças mais sólidas. Então, uma pergunta poderia ser feita a esses profissionais satisfeitos e seguros da sua especialidade: o pensamento histórico, tal qual conhecemos e que dá sustento à disciplina histórica, sobreviverá à onda de mutações rápidas atuais?
É sempre bom dar uma olhada no futuro, pelo menos de vez em quando, para ver qual o campo de possibilidades e probabilidades que ele nos reserva - e a nossas profissões, idéias e organizações. Muita coisa já foi ultrapassada, apenas sobrevive. E geralmente as instituições que vivem na condição de sobrevivência se tornam orgulhosas e convencidas da sua solidez. É só ver o caso do catolicismo versão Bento XVI.
Este preâmbulo é só para dizer que ando lendo umas coisas muito estranhas e que gostaria de compartilhar com vocês. Já citei Pierre Levi em postagem anterior, hoje recomendo o livro A condição humana: as aventuras do homem em tempos de mutação, organizado por Adauto Novaes. O mesmo que há mais de dez anos vem reunindo gente inteligente (rima necessária para ressaltar algo de que necessitamos) para discutir aquilo que vale a pena. Suas coletâneas anteriores marcaram época pelas questões debatidas e pelos nomes reunidos; os que estão presentes desta vez são figuras do porte de Slavo Zizek, Pascal Didie e Antonio Cícero, entre muitos outros des-especialistas.
O problema central pensado na obra é: a condição humana (velha questão lançada por A. Malraux) passa realmente por uma mutação em nossa era cibernética nascente? Adianto a resposta dada no livro: sim, e mal sabemos o alcance dessa transformação, mas se pode pelo menos cartografá-la e anotar alguns de seus caminhos, à maneira de um etnólogo.
No começo da década de 90 (ou teria sido antes?) publiquei um ensaio, antes apresentado numa palestra, a que chamei História fast food. Lembro que o texto foi até bem lido e citado, na maioria pelo pessoal mais jovem. Naquela época eu dava uma discilina na pós-graduação bastante concorrida. Líamos e discutíamos o que havia de melhor para entender a transformação acelerada da nossa época. A maioria dos meus colegas não dava bola e via aquilo como bobagem ou mero modismo.
Recordo também que exatamente naqueles anos a historiografia foi aos píncaros da glória com a nova produção (não gosto destes termos) gerada pelas novas metodologias e fontes. Isso coincidia com a grande profissionalização dos historiadores impulsionada pela política do estado brasileiro. Profissionalização mais sofisticação metodológica sem reflexão teórica verdadeira resultaram no que hoje temos: um pensamento que não consegue se autoindagar sobre o seu lugar, papel e futuro num quadro de ruptura radical. E que se contenta em praticar o que dá algum resultado imediato.
O tal do Pierre Levi diz que o pensamento histórico (assim como outros saberes correlatos) faz parte da era territorial, originada no neolítico e garantida pela escrita dos povos sedentários administrados por burocracias (tanto faz se republicanas, imperiais ou...), que necessitam registrar suas posses (incluindo as simbólicas). Ele se difundiu nessas circunstâncias e chegou ao apogeu no reino das mercadorias, cuja circulação ainda demanda registro contábil via escrita linear. Sabemos muito bem que o pensamento histórico nem sempre existiu. Até mesmo aquilo que chamamos de história (textos gregos, romanos ou medievais) não era bem o que teríamos da modernidade até hoje. Nada garante, portanto, que ele irá se manter num tempo em que a escrita muda de natureza, o sedentarismo se desfaz, e o território passa a ser o ciberespaço.
Ainda são conjecturas, bem sei, mas prefiro navegar por elas - certamente com medo, mas também com esperança - a viver seguro e tranquilo de olhos tapados.


quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O longo adeus à história I


A contradição faz bem. Depois das várias perplexidades até agora expostas, que expressam o medo de se desenraizar do conhecido, salto a outro extremo. Se algo de precioso a passagem psicanalítica pode ensinar é a difícil arte de re-simbolizar o experimentado (inconsciente e consciente) para dele se desapegar.
Pausa para reflexão:

"Onde encontrar os mapas móveis desse espaço flutuante? Terra incognita. Mesmo que consigais por vossa própria conta alcançar a imobilidade, a paisagem continuará a fluir, girar em torno de vós, a vos infiltrar, a transformar-vos a partir de dentro. Não é mais o tempo da história, tendo como referência a escrita, a cidade, o passado, mas de um espaço móvel, paradoxal, que nos vem igualmente do futuro. Não o apreendemos como uma sucessão, só interrogamos as tradições, a seu respeito, por meio de perigosas ilusões de óptica. Tempo errante, transversal, plural, intederminado, como o que antecede às origens"
de Pierre Lévy, mas já de inteligência coletiva

Para Dennis, do curso de História de Assis. Peço o favor de avisá-lo.

Observatório da Praça da Sé

A Praça da Sé passou a ser meu observatório do mundo. Vivo aqui entre palavras impressas, algumas falantes, a maioria mudas. É na rua que reencontro a vida como ela é, aquela que nenhum livro exposto na vitrine é capaz de dizer plenamente.
Rodela consegue fazê-lo, por isso está sempre cercado por uma pequena multidão. Gente que pouco lê, a não ser os anúncios de emprego nas costas dos homens-sanduiche, o último lance do seu time, a mensagem na tela do onipresente celular ou a notícia sobre o Ratinho pendurada na banca de jornal.
Rodela também fala frequentemente do Ratinho em seus espetáculos improvisados na praça. Na conversa simulada do seu imenso celular com os parentes do nordeste, conta que foi despedido do programa do apresentador e agora ganha o pão na rua. Mas seu desejo é voltar para o mundo da televisão. 
O mundo real é apenas uma espera para algum tipo de redenção na telona, no paraiso, ou nos dois. Como, aliás, para todos à sua volta. O mundo real parece com sua cara feia que é meio de expressão do grotesco da pobreza. Do pedreiro, do ladrão, do nóia, do office-boy, do policial, do lixeiro, da faxineira e da empregada das Lojas Americanas. Travestido de mulher, ele se contorce, se deforma, se mutila. Provoca a gargalhada dos que nele não se querem ver refletidos, embora saibam que, descontado o exagero, são eles mesmos ali figurados.
Eu também quase sempre paro para vê-lo, é irresistível. Mas não creio que na alma encantadora das ruas possa encontrar algum segredo da beleza ou da pureza original da humanidade. Rio sem redenção.  



domingo, 18 de outubro de 2009

É possível desacelerar o mundo?




Carl Honoré, autor do livro Devagar, pensa que sim. Militante do Slow Movement, esse historiador escocês se dedica a divulgar os projetos dos vários grupos, principalmente europeus, defensores da desaceleração. Seu texto é agradável, conquista o leitor pelo tom otimista e por se aproximar da literatura de auto-ajuda, consumida como hamburguer, coxinha e pão de queijo - sejamos também nacionalistas.
Para se equilibrar em nossa era de fúria - como denomina o tempo atual -, ele receita coisas simples e facilmente praticáveis: comer devagar e só alimentos orgânicos, fazer sexo lentamente (tântrico), trabalhar menos, beneficiar-se da medicina alternativa, praticar ioga e meditação, educar os filhos sem pressa e outras coisas do tipo. Ao terminar de ler o livro, quase sai levitando e pronto ao mais completo orgasmo, além de consciente de que tenho o destino em minhas mãos, de que é preciso apenas mudar o comportamento e o modo de ver o que se passa ao redor.
Conta Honoré que diversas iniciativas afloram pelo planeta nesse propósito: gente de todas as partes se reúne numa bela e pacata cidade italiana para fazer suas refeições horas a fio em restaurantes típicos desse novo e alvissareiro setor de serviços; abrem-se hotéis destinados a um lazer sem televisão, internet ou academias de ginástica; numerosos casais passam fins de semana inteiros em carícias preliminares ao gozo total (que só ocorre altas horas do domingo) ou viajam ao Oriente para aprender os princípios básicos do amor tântrico; pais educam seus filhos em casa. Criam-se, enfim, as bases para o restabelecimento do paraíso terreal.
Tudo para não se deixar levar pela vertigem turbocapitalista (termo usado pelo autor). Mas ele tambem deixa claro que não se trata de criticar o capitalismo, ao contrário, propõe um novo capitalismo, mais humano e lento. Até me emocionei com tal princípio de generosidade e bom-mocismo.
Ocorre que não pode haver capitalismo sem velocidade, advirto aos partidários da ecolentidão. Quantos novos vôos internacionais cruzam os ares da terrazul para levar os turistas às praias desertas ou aos mosteiros indianos de meditação? Quantos containers singram pelos mares nunca dantes navegados com carregamentos de alimentos orgânicos para os hotéis e restaurantes naturalistas? Quantos computadores são vendidos para a disseminação do próprio antimovimento?
Não quero desapontá-los, mas tenho estudado as conexões entre capitalismo, modernidade e velocidade desde a década de 1980. Meus trabalhos sobre a literatura modernista não eram exatamente sobre questões estéticas ou culturais, como hoje são feitos. Tratavam desse problema crucial em suas origens, quando as vanguardas modernistas aqui e alhures tentaram refletir a respeito das ciladas que o progresso do tipo capitalista arma para a humanidade. Já naqueles anos li Paul Virilio (citado de passagem no livro de Honoré), o urbanista e filósofo que melhor analisou as relações entre velocidade, guerra, política e técnica.
A desaceleração pensada pelo autor segue à risca o figurino do self-made-man, o princípio da individualidade e do capitalismo liberal, e no final das contas, não foge à lógica do sistema. Eu mesmo pratico um pouco das receitas de lentidão, é verdade. Sinto-me bem melhor quando faço dieta de gente e jejum social para preservar um pouco do meu sangue dos ataques vampirescos, próprios da sociedade contemporânea. Mas sei que tal atitude produz apenas um alívio individual esporádico.
Cheguei até a defender tais princípios num congresso acadêmico em que se tratava da criação de redes de alta velocidade para o ensino e a pesquisa. Concordei com a idéia em minha palestra, mas acrescentei, com alguns pingos de ironia, que além de instalar novos pontos de rede virtual em nossos campus, deveríamos pendurar redes artesanais de pano para os alunos balouçarem com seus laptops. Assim, eles poderiam alternar velocidade com contemplação da natureza, pressa e preguiça, atividade e reflexão restauradora.
Não será preciso dizer que o público acadêmico torceu o nariz para minha proposta, exceto alguns alunos. Que descansem em paz, pois não merecem as pérolas que lhes jogo! Oswald de Andrade, fabricante de biscoitos finos para gente de paladar rude, certamente teria compreendido do que eu falava.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Do amor táctil e dos amores vãos


Ao citar a canção de Caetano, na matéria anterior, esqueci sem querer do trecho que segue a “Os livros são objetos transcendentes/ mas podemos dotá-los do amor táctil....”. O complemento faltante dizia: “... que votamos aos maços de cigarro”. Certamente foi um estranho lapso cuja sondagem só é possível numa sessão de análise, que não cabe aqui.

Também não quero, por ora, voltar aos livros digitais, até porque os encaro como inevitáveis e, talvez, bem-vindos em alguns aspectos, apesar de certo sentimento melancólico que isso me desperta. O que desta vez me trouxe ao computador foi o comentário de Camila, que novamente lança pedaços da alma em pequenas frases.

É o amor táctil que está indo embora do nosso mundo, sob o efeito da intermediação dos artefatos técnicos? Esta interrogação não é de hoje. Os filósofos críticos, com outras palavras e outros conceitos, vem há tempos tratando disso quando falam, por exemplo, da progressiva alienação do homem e da perda da experiência significativa do que é ser humano. Os paradoxos que hoje envolvem a comunicação intersubjetiva seriam, para eles, apenas parte do processo maior de alienação, qual seja da correspondência entre os contatos cada vez mais amplos e velozes e o maior distanciamento entre as pessoas.

Civilizar-se é, sem dúvida, condição para a vida social, dizia Freud, mas o preço pago por isso é também muito alto, com toda a dor que o recalcamento dos instintos produz. Os artefatos técnicos produzidos pelo homem significam progresso, evidentemente, embora obtido a um custo extremamente elevado, que de tão conhecido por todos nós, nem vale a pena insistir. Já em pleno século XXI, talvez tenhamos ultrapassado um limite da artificialidade que esteve nas origens da civilização. E atingido algo que nem sequer conseguimos definir.

Por isso convém falar do amor táctil. Não é necessário se embrenhar pela cibernética nem pela neurociência – sintoma da ciência neurótica – para intuir que, de todos os sentidos do homem, o tato tem sido o mais enfraquecido, diferentemente do olhar e da audição, objetos de excesso de estímulos.

O livro, manuscrito ou impresso, foi até hoje um objeto táctil, para quem lê e quem escreve. Ao tê-lo em mãos, como matéria supostamente imperecível, o escritor acaricia as palavras nele contidas, do mesmo modo que o monge gozava ao copiá-las e iluminá-las. Idêntico prazer podia ser experimentado pelo agricultor ao comer os alimentos que ele mesmo plantara ou pelo artesão que usava o martelo da própria lavra. Estaríamos no limiar da supressão desses prazeres sensoriais, o tato e o gosto-paladar -, os mais primitivos de todos porque originalmente ligados ao corpo da mãe? Seria essa a lógica da interdição alimentar e da obrigação da magreza em nossa época?

Se tal bobagem fizer algum sentido, a questão estará sempre na ordenação do prazer, da libido e do sexo, como diria Foucault. Proliferem as formas de vê-los (pornointernet), de dizê-los (reality shows e congêneres) e ouvi-los (sexofone), mas se interditem os modos de senti-los como comunicação natural dos corpos. E mesmo que a máquina do sexo, prevista por Woody Allen, esteja um dia à nossa disposição, será por algum efeito de pura simulação que se encontrarão os abraços, os cheiros e os fluidos humanos. 



terça-feira, 13 de outubro de 2009

Livros e homens mortais



(...)


Os livros são objetos transcendentes


Mas podemos amá-los do amor táctil


Domá-los, cultivá-los em aquários,


Em estantes, gaiolas, em fogueiras


Ou lançá-los pra fora das janelas


(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos)


Ou o que é muito pior por odiarmo-los


Podemos simplesmente escrever um:






Encher de vãs palavras muitas páginas


E de mais confusão as prateleiras.


(...)


Livros (Caetano Veloso)





O leitor eletrônico de livros vem ai e logo que o preço baixar um pouco (ou o Paraguai oferecer produto similar em maior quantidade) veremos multidões saltitantes com esse aparelhinho à mão, como índios estupefatos diante dos espelhinhos do reino. É o que anuncia a revista Época, em seu último número, na matéria que trata do desembarque do Kindle no Brasil, vindo diretamente da Amazon – o conglomerado na última moda do turbocapitalismo. Paulo Coelho vem de quebra na capa do semanário como garoto propaganda da nova tecnologia e das suas próximas obras.


Caros leitores dos velhos livros em papel, mas já de mala e cuia prontas para viajar em blogs e twitteres, não vejam no parágrafo anterior qualquer crítica ou censura a esse novo avanço do mundo. Muito longe disso, já aderi completamente à onda, tanto que estou às voltas com a produção de cerca de 40 livros digitais pela nossa editora, a primeira a experimentar tal recurso no circuito das publicações acadêmicas – e mesmo das editoras privadas.


E nada também contra as inovações capitalistas (Marx disse, aliás, que esse era o sistema mais revolucionário da história), ou aos interesses econômicos que ditam o fim do livro impresso em papel. O velho papiro foi substituído pelo pergaminho quando se tornou cada vez mais difícil e caro comercializá-lo, assim como o papel barateou o custo de produção do antigo codex e gerou grandes lucros. Da invenção da imprensa até hoje se aceleraram as invenções e com elas o comércio e a acumulação de fortunas. Em nosso século será tudo ainda mais rápido, como bolhas que inflam e se esvaziam. O Kindle já nasce velho, diz o autor do texto da revista, comparando-o aos primeiros celulares. Por precaução, esperarei por um modelo mais moderno, ao invés de comprá-lo imediatamente.


E mudarão também as bibliotecas, as livrarias (há um ótimo filme sobre uma pequena livraria que tenta inutilmente sobreviver diante das grandes redes em Nova York, mas me esqueci seu título), as salas de aula (assim espero ansioso, neste caso). Ver-se-á surgir cada vez mais o leitor interativo, que anotará eletronicamente em rodapé, assinalará trechos, pesquisará automaticamente em outros links, verá ou introduzirá imagens nos textos, ouvirá música e até fará fundo sonoro para as obras. Faltará o cheiro, mas é só uma questão de tempo pois já andam rápidas as pesquisas para introduzir mais essa possibilidade nos novos artefatos. Seremos capazes de tudo simular, até o sexo, já previa Woody Allen em um dos seus filmes.


A autoria tenderá a se diluir, como era na antiguidade e na Idade Média. Todos terão acesso à cultura universal, a sociedade da informação a tudo democratizará. A população brasileira há de se aglomerar nas praças para comprar não só filmes de ação e sexo explícito ou ainda cds funkssertanejos, como também para disputar a tapas as obras de Cervantes e Dostoievsky. “A lua foi alcançada, afinal. Tudo bem. Estou contente também!”: (Lunik 9, quem ouviu?).


Confesso que, apesar de toda essa euforia, bateu uma tristezazinha lá no fundo do meu coração ao olhar minha pequena biblioteca, que tenho cultivado ao longo dos anos, e que é o meu bem maior. Tentei compreender o porquê de tal sentimento – ilusão de posse?, ambição de colecionador? ostentação e neorriquismo literário? – e acabei percebendo uma coisa bem simples: era apenas saudade de mim, a descoberta de que, assim como os livros físicos que guardei, eu também sou mortal.

sábado, 10 de outubro de 2009

Saramago, o blogueiro

Não sei se vocês conhecem, mas Saramago tem um blog que é um sucesso, chamado O Caderno. Algumas vezes visitei sua página, mas agora li também a versão impressa em forma de livro das matérias escritas entre setembro de 2008 e março de 2009.
É no mínimo curioso, ou divertido, acompanhar o velho escritor no seu cotidiano blogueiro. Estão presentes o mesmo ceticismo e a idêntica acidez que se lêem nos romances do recalcitrante comunista. É verdade que o estilo é um pouco diferente: os longos pagráfos sem pontuação são substituídos por frases diretas e mais curtas, como é de praxe na crônica. Mudam ainda os assuntos, pelo menos na aparência, dada a necessidade de se pronunciar sobre o que rola no imediato do tempo presente.
Mas só na aparência, uma vez que lá estão suas obsessões de fundo: as ilusões da religiosidade, a hipocrisia da sociedade contemporânea, a cegueira da esquerda e das massas, a desonra da política, a falta de sentido do mundo. Memoráveis são os trechos dedicados a Bush, personagem reduzido à hediondez, e especialmente aquele em que Saramago saúda com alegria sádica o sapato que voou no Iraque em direção à cabeça do presidente canalha. Outra figura que sofre os ataques frontais no blog é Berlusconi, tanto é que seu livro chegou a ser proibido na Itália. Há também matérias muito simpáticas sobre o Brasil e os brasileiros, nas quais o escritor repete todas aquelas qualidades que os estrangeiros nos atribuem (e que os críticos nacionais repelem). O tom geral, entretanto, é de militância crítica e política. Ainda bem.
Uma matéria me tocou profundamente porque responde a uma aflição que sempre me acomete quando escrevo alguma coisa - um livro, um artigo, até uma matéria de blog, superficialmente descomprometida. Foi um consolo perceber que um escritor do estirpe de Saramago também se angustia diante do destino das palavras que expelimos e não controlamos seu destino.
Permito-me, amigos e amigas, reproduzir parte da crônica:
"Valeu a pena? Valeram a pena estes comentários, estas opiniões, estas críticas? Ficou o mundo melhor que antes? E eu, como fiquei? Satisfeito com o trabalho? (...) Ou apenas a consciência de que qualquer obra humana não passa de uma pálida sombra da obra antes sonhada? Conta-se que Miguel Ângelo, quanto terminou o Moisés que se encontra em Roma, na igreja de San Pietro in Vincoli, deu uma martelada no joelho da estátua e gritou: 'Fala'. Não será preciso dizer que Moisés não falou. (...) Moisés nunca fala. Também o que neste lugar se escreveu ao longo dos últimos meses não contém mais palavras eloquentes que as que puderam ser escritas, precisamente essas a quem o autor gostaria de pedir, apenas murmurando, 'Falem por favor, digam-me o que são, para que serviram, se para algo foi'. Calam, não respondem. Que fazer então? Interrogar as palavras é o destino de quem escreve. Um artigo? Uma crónica? Um livro? Pois seja, já sabemos que Moisés não responderá".

Convenhamos, não é, ao menos, bela tal aflição?



  

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Exorcismos historiográficos: reflexões metereológicas sobre a historiografia

A historiografia, como de resto, quase todas as ias herdadas do século XIX ou mesmo de tempos mais remotos, também sofre os graves efeitos do superaquecimento global. O calor intenso parece provocar um rápido e generalizado esfriamento intelectual. 
Sem pretender retornar aqui às velhas teorias do determinismo climático, sou fadado a concordar com Bauman, aquele autor de best-sellers sobre o caráter líquido da sociedade atual. Embora o fenômeno também atinja sociólogos, filósofos, geógrafos e outros supostos humanistas, dou-me por satisfeito no momento em tentar caracterizar o que se passa em nosso domínio historiográfico.
Haveria todo um programa de estudos a realizar, mas o tempo é pouco e somos cada vez mais constrangidos a dar conta de mil e uma tarefas, o que nos leva a desviar do que realmente poderia fazer sentido. As metas que nos são impostas vão se tornando progressivamente mais difíceis. É claro que não chegamos ainda à insuportável situação dos bancários (que continuam em greve), cuja permanência no emprego está condicionada à conquista de mais e mais clientes e à venda de seguros de toda espécie, mas por certo não falta muito.
Voltando ao assunto, já tenho na cabeça um roteiro para tratar desta densa problemática. (Ops, escorreguei no uso dos termos  problemática e denso, cujos exemplares encontro pelo menos uma vez a cada página de tese. Questões semânticas que, aliás, farão parte do repertório de assuntos a examinar no meu programa de estudos). O blog talvez não seja o espaço mais apropriado para tema de tamanha magnitude, mas nos últimos tempos é o que me atrai. 
Aos meus poucos leitores e leitoras ofereço aqui um sumário introdutório e ainda não definitivo do que pretendo desenvolver nas postagens subsequentes. É claro que poderei mudar os títulos e a ordem dos temas ou mesmo os deixar de lado, provisoriamente, quando outra questão urgente exigir que eu me manifeste publicamente. Com esta ressalva, segue abaixo a pauta a ser enfrentada na continuidade dos exorcismos historiográficos:

1. O esvaziamento do problema e o surgimento do tema
2. Do excesso temático e da devastação da natureza
3. Jargões do telemarketing historiográfico
4. A importância do "e" nas novas temáticas historiográficas
5. O esfriamento dos conceitos
6. A nova história cultural e outras piratarias

Conto com todos vocês para este longo trabalho de reflexão.


segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Gracias Che

Che é um desses personagens históricos que, já transformados em mitos durante a própria vida, mantém-se como demasiado humanos a despeito de toda exploração espetacular. Vem daí sua força simbólica, inteiramente distinta do barro que sustenta os pés dos ídolos pré-fabricados.


Haverá quem possa, de imediato, demolir esta afirmação, com argumentos bastante ponderáveis: os investimentos da propaganda cubana ou da ideologia comunista internacional sobre seu principal mártir na segunda metade do século XX; os contra-investimentos da mídia liberal que, ao manchar sua imagem, acabam por reforçá-la; e a persistência nostálgica do imaginário romântico de 1968, no interior do qual Che ocupa lugar proeminente. Não creio, porém, que tais expedientes sejam capazes de explicar a durabilidade do mito de Guevara.

Digo isto para recomendar aos meus poucos leitores que assistam à segunda parte do filme Che – a guerrilha, dirigido por Steven Soderbergh. Fui vê-lo neste sábado e sai bastante satisfeito, além de emocionado. Juntamente com o primeiro filme, que também me impressionou bastante, ele demonstra que se pode tratar da vida de uma figura desse porte com respeito e sensibilidade, sem efeitos especiais.

Quando foi fuzilado pelo exército boliviano, àquela altura sob a supervisão de militares norte-americanos, em 12 de outubro de 1967, Che já era conhecido em todo mundo, especialmente pelos estudantes de esquerda. Eu mesmo ainda guardo um caderno daquele ano (quando cursava o Científico  no interior do Estado de São Paulo), encapado com uma página da revista Realidade com fotografias da guerrilha nas selvas da Bolívia, em cujas páginas anotei vários pensamentos do líder guerrilheiro.

Em seu livro O poder das barricadas – uma autobiografia dos anos 60, Tariq Ali traça um amplo panorama das idéias e das organizações da esquerda em vários países da Europa, em que demonstra a presença marcante das idéias de Ernesto de Che Guevara nesse universo. Michael Lowy e Besancenot, em Che - uma chama que continua ardendo, ao analisarem alguns escritos de Guevara até pouco tempo inéditos, salientam tanto o conteúdo humanista do seu pensamento quanto o voluntarismo implícito em sua proposta guerrilheira. Apesar disso, ele despertou simpatias em toda parte, até mesmo entre intelectuais como Sartre, ou entre estudantes politicamente imaturos, como Regis Debray. Compreendidas e contextualizadas historicamente, as idéias de Che fazem sentido, ao contrário do que se lê muitas vezes seja em periódicos sensacionalistas de direita, a exemplo de Veja, seja em obras intelectuais desconstrutivistas, tão comuns hoje em dia.  
Nas décadas seguintes, apesar da derrocada dos ideais socialistas, representadas pela queda do muro de Berlim, da avalanche neoliberal e da supremacia da sociedade de consumo, o mito de Guevara continuaria a crescer.Cresceu espontaneamente nas inumeráveis tribos jovens e inconformistas do planeta, disseminou-se em imagens estampadas artesanalmente em camisetas, nas sombras da memória e da nostalgia até se tornar produto industrial, cinematográfico, midiático.
Nenhum mecanismo da tecnologia moderna será capaz, entretanto, de exaurir e liquidificar, pela reprodução excessiva, seu apelo de rebeldia. Nem toda mitologia deve ser destruída, os antigos já sabiam.

Em tempo: o filme termina ao som de Mercedes Sosa. Gracias a la vida!

sábado, 3 de outubro de 2009

Por que me ufano do meu país.

Não sou o Afonso Celso, embora nossos nomes se pareçam, mas hoje também posso dizer que me ufano do meu país. Meu ufanismo pode ser menos ingênuo como, dizem, era o daquele conde monarquista. Ainda assim, não deixa de ter sua dose de otimismo crédulo. Quem vem de longe, como dizia o saudoso caudilho Brizola, sabe bem do que estou falando.
E é não é apenas pela nossa recente conquista de 2016. Claro, estou superentusiasmado e patriótico, mas já vivi outras conquistas que não foram capazes de eliminar um sentimento de frustração. Eu estava em Brasília quando o Brasil ganhou o tricampeonato mundial de futebol. Participei como toda gente da festa na Asa Sul e ouvi a multidão cantar Eu te amo meu Brasil, hino de Don e Ravel, mas eu não cantei. Do mesmo modo que meus amigos da época, não compartilhei da alegria da ditadura. Também detestava o patropi do Simonal, que achávamos grotesco e hoje há quem tente reabilitar sua figura.
Sei que agora a situação é diferente. Depois de anos de luta pela redemocratização do país e dos tempos melancólicos da Nova República, da era de privatização de FHC, tenho (temos) o que comemorar. É verdade que não chegamos ao paraíso. Quando vou para o trabalho aqui no centrão de Sampa, tropeço em todo tipo de destroços humanos: drogados, crianças dormindo na rua (não há marquises nem viadutos suficientes), camelôs, homens-sanduiche, prostitutas e prostitutos em vias públicas, enfim, o inferno na terra. Não tenho dúvida de que o bolsa-família é paliativo e de que, além disso, não abarca o universo da miséria cruel.
Também não discordo dos que chamam Lula de populista desde que se entenda populismo como sinônimo de popular, de quem conhece o povo, que conhece sua linguagem e sofre com suas necessidades. Lula se parece com Vargas? Um pouco. Mas a questão não é essa, caros especialistas em populismo do PSDB. O problema não se resume às distorções do personalismo e sim ao que os personagens representam. Tanto Vargas quanto Lula (este, muito mais) representam um Estado mais atuante, indutor do desenvolvimento, árbitro dos conflitos e promotor da justiça social, mas sempre amparado em bases sociais. O PT (se quiserem, o lulopetismo) possui tal força.
Lula compôs com políticos atrasados, a exemplo de Sarney? Certamente, assim como FHC se juntou ao Toninho Malvadeza & cia. O PT financiou partidos coligados com sobras do caixa dois? Também é verdade, do mesmo jeito que os tucanos o fizeram. Mas nada justifica isso, diriam meus colegas de academia, repletos de razões morais e éticas, intransigentemente defensores da mais pura, ideal, límpida política democrática civilizada européia e norte-americana (viva os sacrossantos Berluscone, Sarkozy, Bush e tantos outros), hoje já se preparando para votar no impoluto Serra (que não compõe com os demos) ou em Marina (a evangélica virgem que não aceita o culto à santidade da Virgem Maria). Concordo com vocês, intelectuais acima de qualquer suspeita, mas o mundo não é uma arquitetura teórica bem-concebida, como vocês pensam.  
Por trás da visão civilizatória e dos bons modos assépticos dos demotucanos e dos comunistas envergonhados sob a tutela do brutamontes Roberto Freire, estão as privatizações a qualquer preço, a degola do ensino público e a segregação social, políticas que o atual governo tem procurado, com dificuldades superar. Nas entrelinhas cultas do discurso de FHC e seus seguidores se revela o complexo de inferioridade daqueles que negam o Brasil ao se verem no espelho do dito mundo civilizado.
Quando estive na Itália, os estudantes universitários de lá não se cansavam de tecer loas ao Lula e de demonstrar todo o apreço que nutriam pelo Brasil: nossa música, nossa literatura, nosso calor humano, nosso jeito de ser. Acho que eles tinham razão.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O vazamento da prova do ENEM

Interrompo a linha de matérias que até então vinha postando nesta página para comentar um episódio de enorme gravidade: o vazamento da prova do ENEM e consequente adiamento do exame. Embora este não seja um blog jornalístico, creio que o assunto nos envolve diretamente porque afeta os rumos da política nacional para o ensino superior. Devemos, assim, estar atentos aos desdobramentos do caso.
O episódio gerou grandes aborrecimentos para os milhares de jovens inscritos e suas famílias, que além de já se sentirem inseguros em relação ao conteúdo das provas, passarão a temer desde agora a viabilidade do novo modelo.
O que está em jogo, no entanto, é a credibilidade do governo federal e de seu ministro da Educação, Fernando Hadadd. O que a mídia direitista questionará de imediato é a capacidade do MEC de organizar uma prova dessa magnitude. Tentará colar no ministro a marca de incompetente. Para concluir, afinal, que o próprio modelo não pode ser aplicado num país do tamanho do Brasil.
Não quero me precipitar endossando teorias conspiratórias. Mas fico com a pulga atrás da orelha. Há imensos interesses em jogo. Não só dos presumíveis candidatos para 2010, como de todos aqueles envolvidos com o mercado do vestibular: cursinhos, colégios e universidades privadas; empresas operadoras desse tipo de prova e seus lobbies derivados.
Escrevi matéria sobre a origem do sistema vestibular classificatório nesta mesma página (postagem mais antiga). Quem conhece a história sabe bem como a implantação de tal modelo foi decisiva para a ampliação e consolidação do empresariado ligado aos negócios da educação.
Não há ingênuos nesse jogo. Circulam notícias de que a gráfica responsável pelas provas pertence à Folha de São Paulo. Basta entrar no twitter e seguir os blogs que tratam do tema. Sempre vale a pena informar-se o melhor possível