sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

O centro paulistano assassinado

O centro paulistano se tornou o retrato sem botox do governo Kassado. Quem quiser conferir, basta optar por um circuito turístico exemplar: do Terminal Barra Funda do Metrô, onde desembarcam os viajantes vindos do interior do Estado, à Praça da Sé pelo roteiro que inclui o Minhocão, a Avenida São João, o Largo do Arouche, a Praça da República, o Anhangabaú, a Praça do Patriarca e adjacências. Concluirá que, para se espantar ou derramar lágrimas de crocodilo, não será preciso ver o Ensaio sobre a cegueira nem ir à beira do Ganges e ao Porto Príncipe. Nesse trecho, tão perto de nós, há também desolação, deterioração e abandono suficientes às almas sensíveis da classe média.
A começar pelo espetáculo das populações em situação de rua, que segue continuamente sob o monstruoso Elevado, estendendo-se sem trégua pelas calçadas das ruas e praças  citadas. Drogaditos, traficantes, mendigos, adultos e crianças, perambulam como zumbis ou dormem com chuva e sol pela região. Amontoam-se ao lado dos sacos de lixo não recolhidos, deles retiram restos de comida e espalham os demais detritos pelo entorno. Exalam o cheiro nauseabundo dos corpos socialmente apartados e dos outros resíduos descartados pelos humanos.
Sujos e tenebrosos são também os edifícios que os rodeiam e repelem.  De nada adiantou retirar deles as feias e poluidas fachadas de propaganda: ficaram apenas nus com suas tatuagens deformantes, sinais leprosos de um protesto inconsciente. São o abrigo do lumpencapitalismo, do comércio de plásticos e bugigangas baratas que serve de sustento ao povo do pedaço.
Em que gaveta estão arquivados os projetos de revitalização do centro? Ou seria exatamente este o projeto: desvalorizar a área de acordo com os propósitos especulativos das empresas apaniguadas? Incompetência administrativa, simplesmente?  Inversão de prioridade, foco nos problemas da periferia, a crer na publicidade do prefeito? Não, este último argumento não cola, não coincide com o noticiário das catástrofes cotidianas nas grandes margens da cidade.
Mas há o Viva o Centro, dirão alguns. É certo, ele existe e bem-intencionado, sob a liderança de umas empresas de médio ou grande porte, que assumiram a responsabilidade de limpar e desinfectar algumas ilhas, como a zona bancária no triângulo central da paulicéia. Dali foram retirados o povo e o lixo malembalados, sem dúvida. Eu mesmo almoço por lá diariamente e nada tenho a reclamar desse oásis patrocinado, basicamente, pela iniciativa privada. Tenho dúvida, no entanto, se os subempresários das demais áreas terão fôlego semelhante para revitalizar suas redondezas.
O fato é que o prefeito Kassado, em prosseguimento às obras dos seus antecessores Pitta e Serra, deliberadamente ignora os problemas daquela parte que deveria ser o cartão de visitas da capital. O centro de São Paulo mereceria a mesma atenção que os europeus dedicam aos seus núcleos históricos, tão apreciados pelos turistas brasileiros. Mas desde o início da gestão demoníaca, diminuíram sensivelmente os investimentos públicos de cunho social, em constraste com o que sucedeu nos governos de Luisa Erundina e Marta Suplicy, prefeitas que colocaram em prática projetos urbanos inovadores - a exemplo da Oficina Boracéia, conforme vídeo abaixo. No lugar disso, ele se limitou a fechar albergues, a jogar mais gente no lixo e a culpar a população pelas calamidades sofridas. 
Tal é a visão social da aliança partidária que pretende voltar ao centro do poder nacional. Esconjuro!

  

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Lennon por ele mesmo

Aos nerds de ontem e de hoje, cultuadores dos ídolos de encomenda terrena, um mito que nunca foi deste mundo:

"...sempre pensei politicamente e contra o status quo. É o básico para quem foi criado como eu, odiando e temendo a polícia como um inimigo natural, e desprezando o Exército por levar todo mundo embora e largar morto em algum lugar. Quer dizer, é apenas uma coisa básica da classe operária, mas começa a desgastar quando a gente fica mais velho, tem família e é engolido pelo sistema. No meu caso, sempre fui político, mas a religiâo tendia a esconder isso na época do ácido; foi aí por volta de 1965 e 1966. E essa religiâo foi resultado direto de toda aquela merda de superastro; a religiâo foi uma válvula de escape para a minha repressâo (...) Satirizo o sistema desde criança (...) Diziam, meio zangados comigo, que eu tinha muita consciência de classe, porque sabia o que acontecia comigo e sabia da repressâo de classe em cima da gente - que merda, era um fato, mas no furacâo dos Beatles isso acabou ficando de fora. Durante um tempo eu me afastei ainda mais da realidade".

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

John Lennon em dois livros

Minha leitura do mês é John Lennon - a vida, de Philip Norman. Um catatau de mais de oitocentas páginas, considerado a versâo definitiva sobre o mais famoso dos beatles. Ainda nâo ultrapassei a de número quarenta, mas já estou completamente seduzido pela narrativa do livro, escrito com elegância e impressionante riqueza de detalhes.
Nâo é preciso dizer que Lennon é daqueles personagens já instalados na galeria do olimpo moderno, dai ser foco de todo tipo de curiosidade. Quanto a mim, busco compreender o conteúdo político da sua rebeldia, aspecto um tanto folclorizado na maioria dos registros existentes sobre ele. Do pouco que alcancei, creio que a biografia de Norman traz informaçôes sugestivas para o entendimento das fontes que alimentaram sua arte contestadora.
Outro livro que leio no momento é O poder das barricadas: uma autobiografia dos anos 60, de Tariq Ali. A bem da verdade, releio, porque me permite entender o beatle como parte daquela geraçâo que deixou suas garras no tempo, especialmente a entrevista que Lennon concedeu ao autor do livro na década de 70, entâo acompanhado de Yoko. Ao responder às indagaçôes feitas pelo escritor paquistanês, outro rebelde dos anos 60, ele expressa, por exemplo, um ateísmo radical, inteiramente distinto da aura quase religiosa com que hoje aparece na memória midiádica. Expressa ainda suas convicçôes comunistas e revolucionárias, que nada se parecem com a vestimenta de santo pacificista para consumo dos nerds contemporâneos.
Espero contar um pouco disso em breve neste blog.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

De volta à questão republicana

A CartaCapital desta semana traz uma matéria elucidativa sobre o caráter plebiscitário da campanha presidencial de 2010, que até agora segue o curso previsto por Lula, Dilma e o PT. FHC, caído de vaidade e inveja diante do sucesso do presidente operário que o substituiu no Alvorada, se deixou prender nessa armadilha para desgosto do provável candidato do PSDB. O autor do artigo, Maurício Dias, argumenta corretamente que a disputa entre petistas e tucanos revela uma questão essencial: a visão sobre o papel do Estado.
As distinções entre um projeto e outro são bastante cristalinas nesse aspecto: os tucanos não conseguem se desvencilhar do projeto neoliberal que implantaram com FHC, cujos resultados foram o desmonte do Estado com privatizações escandalosas, o endividamento externo e a quebra financeira do país, além de uma política externa subserviente aos Estados Unidos. Mais do que nunca apoiados pela grande mídia, que acusa Dilma de estatólatra e coadjuvante da gastança pública, só têm a oferecer aos brasileiros a velha ladainha de sempre. 
O Estado de São Paulo, há mais de uma década nas mãos dos tucanos com a alma vendida aos demoníacos, é o exemplo mais cabal dos impactos dessa política que destruiu o ensino público fundamental e médio, foi incapaz de promover políticas sociais efetivas e exibe, além disso, números pouco expressivos nos investimentos em infra-estrutura.
O governo do PT, em contraponto, pode ostentar indicadores bem-sucedidos em todos esses quesitos. Se eleita, Dilma dará continuidade ao planejamento estratégico do Estado brasileiro e já adianta que a organização administrativa do governo passará pela ampliação das funções do Ministério do Planejamento, assim como por mudanças no arcabouço jurídico do país. Tudo com o objetivo de fortalecer o papel empresarial do Estado.
Pensando bem, tal polêmica, com as devidas conotações específicas em suas distintas épocas históricas, já vem de longe, na verdade, remonta aos tempos do primeiro republicanismo. Na origem do nosso regime, como demonstrou tão bem o historiador José Murilo de Carvalho, estiveram em jogo dois projetos: de um lado, aquele chamado de radical, inspirado na Revolução Francesa e esposado por positivistas e militares; e de outro, o conservador (nome que corre por minha conta), capitaneado pelos setores oligárquicos, sobretudo paulistas, sob  a bandeira do federalismo norte-americano. Os primeiros atribuíam ao Estado um papel central na condução da nação, o que incluía a restrição dos poderes das oligarquias estaduais. Perderam para estas últimas, que até 1930 submeteriam o aparato estatal aos seus propósitos.
Como Lula compreendeu acertadamente, foi a partir de Vargas, herdeiro de certo modo dos ideais republicanos positivistas, que o Estado brasileiro se fortaleceu e foi capaz de proporcionar bases sólidas para o desenvolvimento nacional. De 1889 até hoje, com Vargas, JK, ditadura militar anticomunista e Nova República, volta e meia a questão reaparece, e principalmente agora, quando já contamos com duas experiências opostas recentes: a do desmonte do Estado, promovido no reinado de FHC, e a da sua reconstrução sob o governo Lula.
O plebiscito será inevitável, resta saber, no entanto, se ele terá a virtude de politizar a população rumo à cidadania efetiva. O fato é que a batalha mal começou. Pela frente resta o desafio de realizar uma reforma política orientada pelo princípio de um republicanismo social, democrático e laico, cujas raízes podem ser buscadas no passado, mas devem ser renovadas, fortalecidas, até mesmo recriadas. Um republicanismo capaz de conter os impulsos vorazes, corruptores e mesquinhos das antigas e modernas oligarquias e seus aliados: as bancadas religiosas e ruralistas, entre outras. Haja forças para isso!

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A mistificação dos desmitificadores

A novelha geração de intelectuais conservadores está toda prosa nas telinhas globobrasileiras. Uma das suas idéias fixas é negar as antigas distinções maniqueístas, presentes nos livros de História, entre conservadores e progressistas, direita e esquerda, mocinhos e bandidos, bons e maus, dominantes e dominados. O assunto não é novo no mundo acadêmico, ao contrário - desde as três últimas décadas do século XX é o que predomina nas ciências humanas sob o rótulo da desconstrução. 
Mas, apesar de certo desgaste resultante da proliferação de textos e falas desse teor, continua a ser um bom expediente para se alcançar a fama midiática, que o mais das vezes passa longe dos muros universitários. Derrubar mitos e revelar supostas verdades ocultas da sociedade é tema sempre atraente, escandaloso, ainda mais em época pré-eleitoral, quando as biografias de personagens do presente e do passado não passam ilesas no tiroteio pelo poder.
Não se quer dizer com isto que os intelectuais conservadores sejam dispensáveis no debate político. Algumas vezes eles deixam sua contribuição, sobretudo, quando arquitetam teorias sólidas e inovadoras, ou ainda quando expressam sua visão de mundo com criatividade artística. Há vários exemplos de filósofos, historiadores, escritores e artistas plásticos cujas idéias políticas suscitaram polêmicas proveitosas. Raymond Aron, na França, se notabilou durante décadas pela oposição a Sartre, confronto que motivou um debate fecundo. Mas não é preciso ir longe: o Brasil também dá exemplos de notórios conservadores, alguns deles assumidamente reacionários, que fincaram raízes na cultura. Basta lembrar de Gilberto Freyre, Nelson Rodrigues, Paulo Francis, entre outros.
Nem todos os conservadores, contudo, legaram obra relevante para a posteridade. Foi o caso dos novos filósofos franceses, com Bernard-Henry Lévy à frente, que passaram tão rápido quanto a moda da estação. Afoitos para alcançar o sucesso, afloraram e evaporaram na grande mídia durante o apogeu da era neoliberal. Faço votos que o mesmo não ocorra com a tal novelha geração brasileira patrocinada pela Globo - e por outros canais explicitamente partidários.
Ontem à noite, Mônica Waldvogel entrevistou dois dos seus expoentes no programa Entre Aspas, transmitido pela Globonews: o jornalista Leandro Narloch e o historiador Marco Antônio Villa, autores, respectivamente, dos livros Guia politicamente incorreto da História do Brasil e História do Estado de São Paulo, publicados há poucos meses. Em uníssono, ambos se empenharam em decompor a vasta galeria de mitos inventados, segundo eles, pela esquerda nacional: Zumbi, Aleijadinho, o samba, Getúlio Vargas, o binômio colonial senhores/escravos, a guerrilha do Araguaia, a democracia de esquerda e por ai afora.
Narloch parece ser novo no ramo, mas já desponta de forma alvissareira nos auditórios da direita, hoje tão carente de intelectuais orgânicos para a divulgação dos seus projetos. Villa, por seu turno, já é velho de guerra no desmonte dos mitos esquerdistas, missão que iniciou com a biografia de Jango e culminou na justificação do golpe de 1964 e da ditadura militar.
Não vale a pena seguir os meandros argumentativos da dupla, aliás, elogiados pela entrevistadora como expressão eloquente do que há de mais moderno na historiografia. É interessante, porém, relembrar a receita de método histórico exposta por Villa (deixemos o jornalista em paz neste aspecto que não diz respeito à sua profissão) quando indagado sobre como chegou às suas descobertas. Respondeu ele que cabe ao pesquisador se ater aos fatos e documentos, como diria um exímio historiador metódico, dito positivista, do século XIX. Exemplos de fatos e documentos? Os parcos tiros dados pelos guerrilheiros na guerrilha inventada pela esquerda e o exíguo número de mortos em seus combates ilusórios, de acordo com as fontes divulgadas pelos órgãos repressivos da ditadura.
Hobsbawm, um dos inventores da noção de tradições inventadas, certamente ficaria muito descontente com um uso tão banal de seu inteligente construto. Mas o que poderia esperar de um historiador que, camuflado pela capa da imparcialidade do saber histórico, trabalha incansavelmente em prol do projeto neoliberal de José Serra, recuperado dos ancestrais mitos bandeirantes? Ou do jornalista que afirmou, em tempo real, preferir os mitos da direita?
A novelha geração dos intelectuais conservadores poderá ser, um dia, tema fascinante de estudo sociológico - se é que atingirá no futuro algum patamar digno de mitologia. Haverá muita matéria e muitos nomes para analisar, geralmente originários dos bancos da USP durante as décadas de 1970 e 1980, época que gerou o tipo intelectual aparentemente realista, na verdade, um pragmático inteiramente comprometido com a ordem e o poder dominante arcaico. Aos citados devem ser somados outros, entre os quais, o dom quixote das gotas de sangue branco, derramado pela cotas raciais, e a anta-epígono de Paulo Francis, ancorada na coluna da Veja, cujo nome me recuso a dizer para terminar com alguma leveza de alma este post.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Ciberportela

Disse Pierre Levy: "O enigma da paz permanece. Decifremos, portanto, o linear A, ou melhor, inventemos a ideografia dinâmica, escrita do futuro, a superlíngua dos coletivos inteligentes. Em vez de tornar mais espessas as fortalezas do poder, refinemos a arquitetura do ciberespaço, o último labirinto. Sobre cada circuito integrado, sobre cada chip, vê-se e não se sabe ler a escrita secreta, o emblema complicado da inteligência coletiva, mensagem irênica dispersa a todos os ventos".
A Portela já desvendou o enigma, por isso, desde já, Ciberportela. Pacífica, pacificada. Com o amparo da polícia das favelas e da fábrica de computadores Positivo. Não importa. Passou linda na avenida a desfilar suas negras e negros de prata conectados à inteligência coletiva. Passou otimista no futuro dos morros pobres de chips espetaculares. Passou como uma águia robótica angelical, contra todos os poderes e portadora de todos os fetiches da mercadoria. 
Esqueçam o post anterior e o curso projetado para discutir os destinos do póshumano. A pósgraduação já não é mais necessária diante do pophumano. A tecnologia do carnaval ultrapassou sua rodagem reta e lenta. Suas ondas cibernéticas dispensam o pensamento linear filosófico, histórico, antropológico, psicanalítico.
Ave, águia da ciberportela.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

A função consoladora da História

Como pretenso ovelha negra da família, às vezes me rebelo contra o papo institucional da minha profissão - para não dizer disciplina ou discurso, palavras muito pomposas e autocentradas. Estou passando por um momento desses, exatamente agora em que preparo o roteiro de um curso na pós-graduação para o presente semestre. Um curso experimental, diga-se de passagem, sobre o que mudou e muda na apreensão do tempo, na escrita, na leitura - e por que não dizer - na própria natureza do pensamento histórico com o advento e aceleração das tecnologias, em especial, cibernéticas.
Ocorre que não quero ir pelo caminho da História das práticas de leitura, hoje uma tendência carne de vaca na historiografia, que pouco acrescenta ou instiga. De posse desta negativa, fico a perambular por livros de outras áreas (filosofia, antropologia, psicanálise, por exemplo), que embora não fixem verdades, facilitam o livre pensar, o imaginar, o refletir sem freios. 
Tem hora que eles desembocam em especulação futorológica (que mal há nisso?), noutras afiam utopias semipossíveis ou, ao contrário, azedam os ingredientes do pessimismo. Apesar disso, bons autores de uma ou de outra tendência concordam no alerta de que já vivemos a transição para uma pós-humanidade cujo impulso intrínseco desloca, de forma contínua e veloz, nossas antigas e ainda atuais modalidades de lidar com a escrita, a leitura e a percepção do tempo histórico. Para além do que disseram as vanguardas modernistas das artes, da literatura e da física.
Só isso já é um imenso desafio para o historiador de hoje, inteiramente desprovido de ferramentas analíticas que possibilitem analisar um tal fenômeno que não nos é exterior. O que oferecem os historiadores a semelhante desafio, além das velhas aberturas periféricas da Nova História? Nada, a não ser a solução-clichê de historicizar (palavra horrível) os fatos e os processos históricos. O que equivale a dizer, situar as mudanças técnicas, sociais e culturais em seus contextos, compreender sua dinâmica. Nada mais. 
A História, para os antigos, servia como exemplo. De vida para seguir como modelo ou de experiência a ser repelida no presente. Para o indivíduo contemporâneo, que se descarta a cada dia de tecnologias obsoletas - cds, computadores, gravadores, ipods e ipads - assim como rejeita a importância de qualquer valor do passado (exceto o seu atributo turístico), não há lição a seguir. 
O que será, então, historicizar senão uma maneira de se enraizar na ordem do já vivido, na medida em que só permite falar do que foi, nunca do que é ou poderá ser? Não teria a História se transformado num saber puramente consolador, destituído de exemplo e de potência de vida? Pergunta mais velha que a própria História, já respondida tem mais de um século por Zaratrusta. 

sábado, 13 de fevereiro de 2010

A nave fantasma

Inflamações
Travessias
Fantasmas

"Ora o mundo é irreal (...) ora ele é desreal (...). Não é (...) a mesma fuga da realidade. No primeiro caso, a recusa que oponho à realidade se pronuncia através de uma fantasia: tudo ao meu redor muda de valor em relação a uma função, que é o Imaginário; o enamorado se separa então do mundo, ele irrealiza porque fantasia de um outro lado as peripécias ou as utopias do seu amor; se entrega à Imagem, e em relação a ela todo real o incomoda. No segundo caso, perco também o real, mas nenhuma substituição imaginária vem compensar essa perda: sentado diante do cartaz de Coluche, não sonho (nem mesmo com o outro): não estou nem mesmo no Imaginário. Tudo está imóvel, petrificado, imutável, quer dizer insubstituível:  Imaginário está (passageiramente) excluído. No primeiro momento, sou neurótico, irrealizo; no segundo momento sou louco, desrealizo"
J. Lacan




"Como termina um amor? - O quê? Termina? Em suma ninguém - exceto os outros - nunca sabe disso; uma espécie de inocência mascara o fim dessa coisa concebida, afirmada, vivida como se fosse eterna. O que quer que se torne o objeto amado, quer ele desapareça ou passe à região da Amizade, de qualquer maneira, eu não o vejo nem mesmo se dissipar: o amor que termina se afasta para um outro mundo como uma nave espacial que deixa de piscar: o ser amado ressoava como um clamor, de repente ei-lo sem brilho (o outro nunca desaparece quando e como se esperava). Esse fenômeno resulta de uma imposição do discurso amoroso: eu mesmo (sujeito enamorado) não posso construir até o fim minha história de amor: sou o poeta (o recitante) apenas do começo; o final dessa história, assim como a minha própria morte, pertence aos outros; eles que escrevam o romance, narrativa exterior, mítica"
R. Barthes

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Pausa para pipoca

Um pouco de banalidade, enquanto me desvencilho de compromissos sérios nos próximos dois dias:

"Ele colaborará eficazmente com a obra comum, em seu trabalho cotidiano, e povoará seu lazer com todos os encantos de uma cultura profusa que, do romance policial às memórias históricas, das conferências educativas à ortopedia das relações de grupo dar-lhe-á meios de esquecer sua vida e sua morte, ao mesmo tempo que lhe dará meios de desconhecer numa falsa comunicação o sentido particular de sua vida".

J. Lacan, Escritos (muito tempo atrás, antes da internet e até da televisão diuturna)

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Gritos antigos e modernos

Vem ai outra novela da Globo, Tempos Modernos. Não terá as praias ondulantes do Rio como cenário, e sim o centro velho e escangalhado de São Paulo. A história girará em torno das negociações e discórdias provocadas pelo projeto de demolição da Galeria do Rock para ali se erguer o Titã, edifício-símbolo da nova especulação imobiliária.
O título da trama parece inspirado no já clássico filme em que Chaplin ironiza com humor as engrenagens da máquina capitalista. Seria, porém, esperar demais da emissora carioca uma arte semelhante. Acostumada como está a culpar os pobres pelas enchentes e outras agruras da cidade, ela dificilmente abriria espaço para algum exercício ficcional crítico. 
Mas já houve tempo em que isso ocorreu, por exemplo, na novela O grito, do consagrado dramaturgo Jorge de Andrade. É certo que o folhetim não rendeu Ibope, além de ter despertado reações contrárias até no Congresso Nacional. Apesar disso, ela ficou para a posteridade como uma encenação emblemática daqueles anos de ditadura militar:


O enredo de O Grito também gira em torno de um edifício paulistano, o que indica outra provável inspiração para a nova novela. Intitulado Paraíso, vivera tempos de glória antes de ser transpassado, junto com outros prédios e avenidas, pelo monstruoso Minhocão (cujo nome oficial não me arrisco a dizer para não atrair fagulhas do inferno onde queima eternamente o corpo do homenageado). O personagem-chave da trama é um jovem enigmático e escondido no quarto sob a proteção da mãe, acometido por séria doença que o leva a dar urros lancinantes à noite. Os moradores, assustados com o louco oculto do apartamento e as aterrorizantes obras urbanas estampadas na janela do Paraíso, retratam a perplexidade da própria metrópole modernomalufista. Mas pouca gente da vida real entendeu o recado, como também talvez quase ninguém tivesse compreendido, em 1893, o grito expressionista de Edvard Munch contra a sociedade industrial:


Será agora que compreenderão? O Minhocão maldito continuou ali, um verme descomunal a corroer a cidade. O vídeo abaixo, em tom poético, mostra o alcance de sua perene destruição:


Virá um dia em que as fachadas de tijolo, concreto ou gesso, do passado ou do presente, poderão ser polidas, pintadas ou reconstruídas. Mas não será possível reconstituir as carnes e os espíritos humanos que vagam sob suas vigas. Que escorrem silenciosamente pela tela da Globo, como o lixo das enchentes, sem grito algum, em tempos modernos.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Exaltação ao carnaval

Este vídeo é para que não reste dúvida de que gosto do carnaval. Nele estão presentes grandes nomes do samba: Paulo César Pinheiro, o autor, e Clara Nunes, a intérprete imortal. Há outros, igualmente magníficos, entre os quais Jamelão, Neguinho da Beija-Flor... Mas estes bastam, por enquanto, como exaltação ao carnaval. O samba-enredo de exaltação exemplifica bem uma das marcas da festa de Momo, como eu disse no post Carnavalecencias. É bom quanto se exalta, louva, enaltece o que deve ser cantado, como os aedos faziam. Este samba-enredo é uma obra-prima, aquela que permanece.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

O retorno do recalcado

Dias atrás, na inauguração da sede do novo sindicato dos trabalhadores de processamento de dados, em São Paulo, Lula trouxe de volta a figura de Vargas,  intermitentemente rechaçada na história política brasileira. Segundo ele,
"muitas das coisas boas que temos devemos à coragem de Getúlio Vargas, à visão de Estado que tinha Getúlio Vargas. Estamos convencidos de que Getúlio prestou esse serviço ao Brasil. Lamentavelmente, uma parte da elite brasileira, inclusive uma parte da elite intelectual, vive inconformada porque não conseguiu ganhar o golpe de 32 que chamam de revolução. Aquilo foi uma tentativa de golpe. Não se conformam. É muito triste aqui em São Paulo a gente não encontrar uma rua com o nome de Getúlio Vargas".
Palavras precisas de um semi-analfabeto, como muitos intelectuais, entre eles vários historiadores, se referem ao presidente. Lula conhece por dentro o discurso dos ilustrados bandeirantes paulistas. Outro que sabia direitinho era, ele mesmo, um herdeiro da elite local - o traidor Oswald de Andrade, que expôs as entranhas golpistas de 1932 no romance A revolução melancólica.
Mas não é a historiografia e a literatura que interessam desta vez, e sim a política, com todas as letras. Não é à toa que a figura de Vargas ressurja de quando em quando no debate político. Com ele se reencena o papel do Estado no desenvolvimento nacional, ou - se quizerem - o nacional-desenvolvimentismo, velha questão descendente dos anos de 1930, que ganhou enorme estatuto de 1945 a 1964. Basta lembrar do Instututo Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), que aglutinou os intelectuais da esquerda nacional-desenvolvimentista.
O golpe civil-militar de 1964 interrompeu a formulação dos projetos desse teor e originou um contrafluxo de elaborações teóricas antinacionalistas. O quartel general dos novos grupos intelectuais se estabeleceu nos cursos de Ciências Sociais e Políticas, com filial no curso de Filosofia da USP. Ali foi gerado o conceito de populismo, noção mal-ajambrada que sorrateiramente ainda frequenta as teorias sobre o Brasil, mesmo em tempo de culturalidades politicamente neutras.
O conceito explicaria tudo: o autoritarismo político - para alguns, totalitarismo - de Vargas a Goulart, o controle sobre os trabalhadores e as massas populares, o fracasso das esquerdas aliadas aos populistas e assim por diante. Noutras palavras, a derrota de 64 se deveu às próprias forças de esquerda.
Fernando Henrique Cardoso foi um dos críticos ferrenhos do populismo e do modelo nacional-desenvolvimentista. O mesmo FHC que em 1994 afirmou que era preciso demolir o legado de Vargas e todo um passado que atravanca o presente para abrir um novo modo de inserção do país na economia internacional. Sabemos bem o preço pago nessa aventura.
Ganharam, também, projeção na crítica ao populismo intelectuais como Francisco Weffort e Maria Sylvia de Carvalho Franco, a filósofa que tentou desconstruir a ideologia do ISEB. Aliás, o termo ideologia andou na moda nos anos 70. Até mesmo Marilena Chauí contribuiu a seu modo para trazer à luz os silenciados do Estado populista. Os historiadores então - estes surfaram na onda com orgasmos múltiplos!
O PT paulista igualmente auxiliou na condenação ao populismo, naquela época em que a estrela vermelha rivalizou com o velho caudilho Brizola. O estigma do populismo, por fim, destruiu muitíssimas biografias e instituições do mundo cultural, principalmente o Centro Popular de Cultura da UNE e o Cinema Novo. Um dos principais algozes destas foi Arnaldo Jabor, que sintomaticamente se tornou o arauto da novelha direita udenista globonacional.
Mas nada disso adiantou. O recalcado sempre volta, às vezes com o nome de PAC, e cada vez mais forte.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Carnavalecências

Nem bem as águas baixaram (podem até ter subido com o toró de hoje) e as urubucâmeras já estao atrás de novas carnes. Desta vez, sadias e frescas, como as da globeleza. Eu também quero entrar rápido nessa folia, antes que o assunto vire carne de vaca. 
Nao que eu seja propriamente um foliao, embora goste muito de carnaval. Como nao tenho samba no pé nem em qualquer outra parte do corpo, minha cota de participaçao na festa se restringe a ficar na frente da televisao. Pena que a cada ano eu durma ao som dos primeiros batuques na avenida. Tento até acordar para dar vazao ao meu entusiasmo, mas a batida do samba parece ativar ainda mais meus circuitos soníferos.
É claro que, entre um sonho e outro, também aproveito alguns flashes da alegria: mulatas e travecas deslumbrantes, celebridades brilhosas de formol e botox, gays machamente tatuados e toda parafernália de simulaçoes espetaculares, que deixam no chinelo os premiados com o Oscar de efeitos especiais.
Ao contrário de muitos críticos, em nada me incomodam as manifestaçoes populares desse tipo, nem mesmo a festinha junina da Granja do Torto, com Lula e Dona Marisa vestidos de chapéus de palha. O que detesto sao as comemoraçoes do halloween, do dia de açao de graças ou o desfile da rainha na velha carruagem cafona. Sou nacionalista e me orgulho da nossa indústria especializada em Carnaval, que só os brasileiros têm e podem exportar para o mundo.
Mas nao é por isso que espero do reinado de Momo alguma consciência popular virgem e intacta, ao gosto de vários intelectuais. De gente que pensa o Carnaval como inversao dos valores dominantes, questionamento das formas de exploraçao social e das hierarquias, riso rebelde e contestador ou coisas do tipo. Primeiro, porque a folia nao é mais (se é que um dia foi) popular. Ela é pop, nada mais. Segundo, em razao da sua alta flexibilidade ou capacidade de se adaptar a qualquer situaçao política, econômica, social ou cultural.
Já nos primórdios, as escolas de samba - cariocas e paulistas - criaram a tradiçao das homenagens e das louvaçoes. Caso se escarafunche, aliás, talvez se encontre lá no passado remoto aquele expediente adotado pelos escravos e homens pobres livres para conquistar a benevolência dos seus senhores. Tal atitude pouco mudou desde entao.
Personagens e eventos históricos, geralmente poderosos, foram sambatizados inúmeras vezes. Em 1951, a Império Serrano louvou os 61 anos da República, dois anos depois a Portela cantou as datas magnas da pátria, quatro anos à frente a Mangueira pôs o grande presidente nos seus carros alegóricos. A década seguinte começou com as homenagens a Dom Joao VI e Dom Pedro II, respectivamente, pelo mesmo Império citado e pela Portela.
De lá para cá, nenhum famoso ou poderoso, histórico ou contemporâneo, deixou de ser homenageado: D. Beja, os novos bárbaros, Tom Jobim, Chico, Dercy, jogadores de futebol ou do bicho. Sem falar das louvaçoes a outras regioes brasileiras ou a outros países, geralmente com o patrocínio dos seus governos.
Foi com a redemocratizaçao que os novos carnavalescos, mais intelectualizados e acadêmicos (no sentido universitário) que os de outrora, introduziram temas sociais e étnicos nos desfiles. Passou-se a falar da negritude a partir de exemplos míticos e célebres: Xica da Silva, Zumbi, Pixinguinha, Mae Menininha de Gantois e outros. A seca do nordeste também foi mote para o Carnaval, temática que culminou na magnífica ode aos mendigos, feita por Joaozinho Trinta. Nem por isso foram esquecidos os motivos clássicos das civilizaçoes antigas ou futuras, propícios à estilizaçao espetacular. Ou a moda ecológica de agora. 
Contudo, para os folioes - tanto os comunitários, quanto os midiáticos ou os socialites - pouco importa o tema a cantar. A moda passa e o Carnaval fica. E nao apenas nos quatro dias de festa.
Convém, portanto, entrar no espírito momesco o mais cedo possível. Mas nao cedam a Morfeu. É bom ficar acordado até o raiar do dia para ver a mangueira entrar!


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segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Águas de fevereiro

Praça do Patriarca, 16:30, 35 a 40º. Multidão em zorra. Gritos histéricos, empurra-empurra, flashes de celular, braços que sobem. De pernas de fora, a japonesa-loura e suas paniketes sorriem acossadas para a gravação. O calor do povo do centro vai comer a oriental.
No filme de Spike Lee, a alta temperatura incita a revolta da raça. No centro de São Paulo, a ejaculação espetacular alivia a tensão da massa.

Avenida São João, 17:00, ar condicionado. O pastor da graça lê passagens do apocalipse. Entre um trecho sagrado e outro, pede patrocínio para as obras de Jesus. Crentes cantam e estribucham para a televisão. Dores de cabeça se curam, cadeiras de rodas são abandonadas. Do fundo do poço, casais transformados saem para o universo microempresarial.
Lá fora o céu fica escuro. Cristo clareia no trovão e escorre pelas poças d'água.
Na tela da miniquitinete, 18:00, Datena comanda seu helicóptero pela noite paulistana. A torrente que cobre a rua. O morro descido no asfalto. A interminável fila de luzes dos carros parados. Os relâmpagos que abrem as trevas. O silêncio do dia de cão.
O cara acorda a tempo de ver a cena e ouvir o barulho cadenciado dos pingos que descem pelo teto.
Olha a janela e lembra do pau, da pedra, do fim do caminho, da peroba do campo, do passarinho, do sapo e da rã.
Enquanto paredes de casa, peças de automóveis, carcaças de computadores, sofás, sacos de lixo, caixas de pizza, pneus, mendigos e outros detritos se arrastam no dilúvio.