É bom ler Olgária Matos enquanto vou me recuperando da nova cirurgia no tornozelo. O livro que me ajuda a passar o tempo é Discretas esperanças: reflexões filosóficas sobre o mundo contemporâneo. Publicado em 2006, passou despercebido junto ao público leitor, se é que temos um público leitor no sentido do termo, excetuando é claro, os que compram livros da lista midiática dos mais vendidos e das indicações do Domingão cultural do Faustão.
Voltando ao livro, não é um texto difícil, em que pese a grande erudição da autora, que convoca a acompanhar uma reflexão exigente sobre as tênues possibilidades de reflorescimento do humanismo na cultura tecnocrática atual. Os dez ensaios da obra tratam do precário lugar da filosofia nesse cenário, do que resta da república na democracia midiática, do estrangeiro que resiste à regra abstrata e racionalizadora da identidade científica moderna, do massacrante fetichismo capitalista, da ciência como parte da sociedade de consumo de massa e do espetáculo, das antigas luzes contra o obscurantismo feérico de hoje, das barricadas de 68 reerguidas nos novos levantes do desejo atuais, do ethos e da amizade no pretenso cosmopolitismo contemporâneo, do corpo maquínico feminino atual.
São ensaios instigantes, para usar um termo usado e abusado nos artigos pseudocientíficos das tecnociências humanas de hoje. Mas, confesso que não pude perceber neles as tais esperanças aludidas no título do livro, se bem que adjetivadas de discretas. Seria incompreensão da minha parte, derivada da minha condição de convalescente? Ou seria porque, eu mesmo, ando cada vez mais desanimado com o universo universitário de resultados do qual faço parte?
Não sei responder. Em todo caso, ao mesmo tempo em que agradeço aos leitores e leitoras pela solidariedade expressa nos comentários anexados nos posts anteriores, lhes deixo aqui um trecho da obra que caracteriza bem o pensamento de Olgária Matos e pode levar à seguinte indagação: se é assim, que esperanças são essas, especialmente para nós, educadores?
"Sob os auspícios da mídia, aprender foi decretado fastidioso e o esforço intelectual, proscrito. Que se pense na leitura - atenta e concentrada - substituída pelo espontaneísmo da leitura próprio à mídia e o à indústria cultural. Se a televisão utiliza um vocabulário de 'no máximo 300 palavras', o 'Decálogo do Jornalista' prevê um leitor com capacidade intelectual de 'dez anos'. Tais procedimentos visam transmissões que devem ser lidas, vistas e imediatamente compreendidas por todos, segundo o pressuposto de que a cultura autêntica seria inacessível ao grande público. Indivíduos assim mobilizados sentem-se instruídos quando capazes de opinar acerca de assuntos do momento. Tornam-se 'lacaios do instante', 'escravos da manchete do dia'. Reduzidos à condição de consumidores, aceitam, sem resistência, a padronização da cultura.
A mídia não só prescinde a leitura mas a torna demodée. Se a leitura dinâmica, rápida e por saltos, convém a um cartaz publicitário, é inadequada a escritos literários e científicos. Não obstante, sob aquela influência, a educação foi se impregnando com a ideologia da facilidade - com que a indústria cultural banaliza tanto a formação superior quanto a de resistência, produzindo, segundo Adorno, uma espécie de 'barbárie estilizada'. O filósofo critica a indústria cultural não por ser democrática mas por não o ser, pois a luta contra a cultura de massa só pode ser levada adiante se mostrada a conexão entre a cultura massificada e a desigualdade social. A educação retoma à condição do segredo, pois a mídia transmite uma cultura agramatical, desortográfica e iletrada; contorce reflexão em entretenimento, pesquisa em produção - dado o imperativo primeiro e último do mercado consumidor. Se, na perspectiva humanista, as disciplinas são formadoras, na 'cultura de massa' elas são performáticas. (...)
A educação humanista, formadora, encontrava na leitura o procedimento nobre por excelência. Atividade paciente, experiência simbólica que trabalha nosso mundo interior. Que se pense em todas as experiências da cultura que requerem tempo, à distância do cronômetro do dia industrial, da produção e do mercado".
(Dedico este post aos meus colegas das tecnociências, humanas ou não, que já abdicaram definitivamente de todo o pensamento humanista).