segunda-feira, 7 de junho de 2010

A barbárie não tem parada

É triste admitir, mas, depois de décadas de revolução comportamental e civilizatória, a barbárie volta triunfante. A despeito das décadas de paz e amor, dos ideais de solidariedade universal, dos sonhos aquarianos, do feminismo, da valorização da diversidade e do politicamente correto, o recalcado retorna cada vez mais forte. Refratário às novas leis e aos novos esclarecimentos, o reprimido parece cumprir com exatidão o esquema das pulsões inconscientes, tão bem descrito por Freud: diante de uma barreira, e uma vez impedido de descarregar sua energia primitiva, dá meia-volta, reorienta sua trajetória, robustece e mira outro alvo. Como as bactérias ancestrais combatidas pelos antibióticos, emerge mais resistente contra toda tentativa de purificação do corpo.
Exagero? Então o que significa o recrudescimento, em tempos da moderna sociedade da informação, de atitudes e comportamentos característicos de uma época arcaica, pré-1960, como o sexismo, o machismo, o sadismo, o adestramento marcial, o culto ao corpo muscular, o bullying e fenômenos correlatos?  De tudo aquilo que imaginávamos circunscrito às populações pobres, marginalizadas, abandonadas pelas luzes da cultura, obrigadas a sobreviver e a se defender no lodaçal da violência cotidiana?
Pois bem: todas estas manifestações estão ai disseminadas nos vários segmentos sociais, principalmente entre os jovens: a violência física e psicológica, que não se restringe às escolas públicas, mas ao contrário, invade as melhores escolas privadas da classe média; o sadismo bullyng, que mira um amplo espectro de supostos desafortunados - professores proletários, obesos e magros, feias, viados e lésbicas, cdfs...
Já procuraram saber quais sãos os modelos midiáticos dessa galera? São os programas humorísticos, especialmente o Pânico na tv, que sob o invólucro moderno, expõe formas de agressividade, preconceito, violência e sexismo extremos: a tortura do gordo, as bichas rebolantes, as paniketes oferecidas, a desdentada Gorete, o Zina abobalhado, as pelancudas das praias, geralmente pretas e pobres... Comparados a essa forma de humor, a antiga Escolinha do Professor Raimundo, o morimbundo Casseta e Planeta e a sobrevivente A praça é nossa até poderiam ser transmitidos nas misssas dominicais.
Se o Pânico, com sua grosseria infantil, se tornou a escola da molecada, o CQC é uma igreja para os pretensos antenados, adolescentes dos vinte aos trinta anos. Não é à toa que seus apresentadores, professantes de um fascismo implícito e difuso, viraram objeto de uma verdadeira idolatria.
Latente ou manifesta, a barbárie ainda cobre outras faixas etárias e outros espaços, como a família e o trabalho, sempre alimentada pela onipresente tv. Exemplo típico dessa fonte é o programa Pop, que alterna a defesa veemente do respeito à diversidade com a oferta mais baixa de consumo sexual, especialmente da mulher. Basta ver o quadro Sua patroa pode ser um avião, cujos termos procedem do vocabulário dos anos 50.
Com isto não quero dizer que a televisão seja a criadora do sexismo, do machismo, da violência ou do sadismo. Tais componentes circulam pela vida social, espelham a mídia e ao mesmo tempo são por ela espelhados. A barbárie é um fenômeno de ordem social, econômica e cultural. Leis e informações podem até mitigá-la momentaneamente, mas permanecerá ou se insinuará em formatos diferentes enquanto persistir a atual estrutura de sociedade. O foda é que ninguém sabe como sair disso.
No taxi para a Barra Funda, antes do feriadão, ouvi do motorista que a gayzada ia dar lucro no domingo - "a parada é boa porque viado gosta de gastar dinheiro". Ao retornar, no domingo à noite, quando a parada já se dissolvia, outro taxista, ao presenciar um casal gay se beijando, comentou: "esses filhos da puta não tem vergonha na cara, bando de aidéticos". E em plena segundona, durante ao almoço num restaurante de bancários, o assunto continuava na mesa ao lado da minha: A moça: - "Cês viram aquelas travestis no carro alegórico? Como é que pode? Morri de rir". A colega: - "Dizem que já nascem assim, tem problemas psicológicos, a gente tem que respeitar, coitados!". O amigo: "As sapatonas não tem graça, mas os viados são muito engraçados".
Para a ruidosa maioria silenciosa a Parada Gay é só um circo. O que dizer do circo de horrores em que essa mesma massa atua?  

3 comentários:

  1. Há tempos não concordava tanto com alguém. A decadêcia vem a galope e civilidade foi um sonho passageiro.

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  2. Pois é, e ainda por cima vem um tipo chamado Luiz Felipe Pondé que, inaugurando coluna na Folha de São Paulo no dia 07.06.2010, diz, com todas as letras, que devemos condenar os professores por teinarem em incutir nos seus alunos senso crítico.

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  3. Texto fantástico e de uma clareza e criticidade necessárias e essenciais.
    Do jeito que a coisa anda, me pergunto se ainda se pode mudar algo...
    Essa sociedade doentia não se dá conta das próprias limitações e continua a atacar tudo aquilo que mexe com sua forma de ser que ela nem conhece no fim das contas!

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