Que estranha é essa profissão de historiador! Tanta coisa mais interessante do dia-a-dia pra comentar - o moderno GPS que acabei de comprar não sei pra quê, a festa frustrada do hexa, o gostinho de vingança (que horror!) pela derrota dos hermanos, a gana africana insatisfeita, o suspense em torno do desaparecimento da amante do goleiro Bruno, o caso da advogada Mércia, Serra e seu índio de araque - e eis que o fantasma do passado não me deixa em paz.
Sou forçado a concluir: o historiador não se dá bem com a crônica do cotidiano. A verdadeira crônica, dizem os melhores escritores, versa sobre a banalidade do hoje em dia, procura algo de sugestivo ou belo no prosaico do imediatamente vivido. Ao contrário disso, o historiador, assim como o psicanalista que vasculha nas camadas do presente as irreconciliáveis fantasias primitivas do ser, é um eterno escravo do tempo remoto.
Portanto, me perdoem os leitores deste blog que talvez esperassem algum texto mais livre, contemporâneo e ameno nesta tarde gostosa de domingo. Mas o fato é que, ao revirar minha biblioteca à procura de um livro, acabei deparando com um opúsculo publicado em 1973 pelos estudantes de engenharia do Centro Acadêmico Armando Salles Oliveira da USP, campus de São Carlos. E já tem umas horas que esse simples caderninho mal-encadernado, uma cópia datilográfica já meio degringolada e mofada tem tomado toda minha atenção.
Que inferno! Em outras mãos isso já teria ido para o lixo faz tempo. Não só pelo aspecto deteriorado do objeto, mas também por seu conteúdo: extratos de textos sobre a Reforma Universitária no Brasil, abrangendo o período de 1961 à data da publicação. Tudo cheira a velharia anacrônica: centros acadêmicos, UNE e outras organizações estudantis, panfletos e cadernos de crítica ao sistema universitário, graduandos de engenharia metidos na política, debate a respeito da relação entre universidade e sociedade. Só para um historiador fora do mundo real isso pode fazer algum sentido, ter alguma importância.
Apesar desta triste constatação, continuei a ler o caderninho cujo índice é este: "O movimento pela Reforma Universitária; Origens da Reforma Universitária do Govêrno: o Plano Acton, Os acordos Mec-Usaid; A elitização da Universidade: A barreira do vestibular, Extinção da gratuidade do ensino, Orçamentos para a educação, Fundações; Reforma Universitária e Tecnologia Nacional; Engenharia Operacional; Representação Estudantil; Autonomia Universitária; Acordos sobre pesquisas estratégicas: o plano Camelot; Uma Pequena Análise".
Das suas páginas consta, entre outros extratos, uma Carta do Paraná, na qual os estudantes reunidos num Conselho Nacional (1962, Curitiba), apresentam os objetivos da sua luta: "a) A Reforma Universitária pretende fazer com que a Universidade seja para a sociedade o cérebro pensante, fonte constante de elementos para uma consciência crítica em relação à realidade social para que a Universidade seja o centro propulsor das culturas elaboradas com valores do próprio povo; b) Conseguir uma visão global da sociedade em que vive, não limitando-se somente a uma visão parcial de sua profissão: o futuro profissional não seria somente uma peça numa máquina instalada, e sim seria uma visão crítica de seu desenvolvimento social".
Tais idéias podem parecer hoje inteiramente descabidas, utópicas, ultrapassadas. Por exemplo, a universidade cérebro-pensante da sociedade, que bobagem ridícula! E por isso destinadas ao descarte, quando muito a alguma coleção de curiosidades como as de carros e brinquedos antigos.
Não para um historiador atento, no entanto. Na contracorrente dos que pregam a desimportância do passado, ele tentará convencer que esses sonhos têm tudo a ver com os desafios educacionais, científicos e sociais do presente. Que o debate brasileiro atual sobre o papel da universidade retoma temas daqueles tempos de antanho. Coisas mal-resolvidas em quarenta anos, dilemas que em nossos dias encontram respostas no PROUNI, nas políticas de cotas, na criação de um novo sistema de ingresso universitário, no fortalecimento e na ampliação do sistema universitário federal, no incremento do ensino técnico.
Foi por isso que, em vez de enviar esse objeto embolorado para a reciclagem de papéis (como vêem, também participo dos esforços em prol da melhoria do futuro meio ambiente), decidi lhe dar uma sobrevida, devolvendo-o à estante das palavras vivas.
Caro Antônio Celso
ResponderExcluirSe tem uma coisa que me envolve é ler um texto de alguém que sabe do que está falando e o faz de forma coerente e bem escrita. Isso se aplica em cheio a vc. Não vou me deter a debater o que penso sobre o ensino universitário, pois não é meu objetivo. Só vou dizer que com o ensino básico da forma que está, nosso ensino universitário está condenado. Mas não importa. Quero falar de vc. Gostei do blog, gostei de seu jeito de se expressar, da clareza e coerência do texto. Trocando em miúdos, se me permitir, vou seguir vc e partilhar seus pontos de vista. Convido-o a conhecer meu blog e tomar um chocolate comigo, aproveitando o friozinho. Quem sabe goste e me dê o prazer de seguir-me também.
Beijos.
Já ouvi falar desse livrinho, ou o vi em algum lugar. Do mesmo período (me parece que isso ocorreu em vários Centros Acadêmicos da USP) existem alguns outros que falam dos movimentos de moradia, outros de memórias. A USP foi palco privilegiado da reconstrução da UEE-SP e da UNE, da formação das comissões Pró-UNE e outras manifestações estudantis em meados da década de 1970. A PUC também foi importante, mas seus estudantes pouco publicaram (pelo menos que eu tenha conhecimento). Acho que foi uma característica dos estudantes da USP, publicarem sobre o movimento estudantil naquele momento, já que estavam no centro do debate, é possível que tenham buscado a historicidade do movimento.
ResponderExcluir