Quando criança, no sítio onde morávamos, eu gastava longas horas empoleirado no alto do curral para ver as vacas no pasto. Digo vacas, mas também havia evidentemente bois, embora em número minoritário.
Gostava de ver o lento ir e vir bovino, as rezes deitadas à sombra das árvores a ruminar repetidamente. E, principalmente, a ordem tranquila e indiferente com que seguiam em fila rumo ao curral no cair da tarde, comandadas por cavaleiros. A cena me lembrava uma procissão católica, tanto que na minha fantasia idílica eu chegava mesmo a santificar as vacas. Muito antes de saber da existência das vacas sagradas indianas.
Nem tudo do universo bovino se limitava, porém, ao plano da elevação espiritual. Havia também uma parte mais baixa que me intrigava. Por exemplo, o comportamento de cagar várias vezes em público sem o menor constrangimento. Apesar disso, foi com o gado que pude presenciar um aspecto da natureza que os humanos escondiam: o intercurso sexual. Creio que o espetáculo não me traumatizou.
Nem tudo do universo bovino se limitava, porém, ao plano da elevação espiritual. Havia também uma parte mais baixa que me intrigava. Por exemplo, o comportamento de cagar várias vezes em público sem o menor constrangimento. Apesar disso, foi com o gado que pude presenciar um aspecto da natureza que os humanos escondiam: o intercurso sexual. Creio que o espetáculo não me traumatizou.
Na ausência de outro modelo para entender aquele estranho mundo, nada me restava se não humanizá-lo. Dentre outras coisas, costumava dar nome, geralmente familiar, a cada uma das vacas, preservando é claro, o nome da minha mãe. Até que um dia, ao encarar mais de perto o olhar roxamente esbugalhado de uma delas, me ocorreu perguntar o que aquele grupo animal pensaria dos humanos. A que modelo recorreria para nos entender? Nos avacalharia?
Muito tempo depois, aquela indagação infantil ainda me vem à mente, agora mesmo que só posso ver vacas pela televisão (refiro-me apenas às quadrúpedes), é bem verdade que algumas ao vivo no canal dos leilões bovinos. Foi o que aconteceu hoje, quando eu ia de taxi da rua Augusta à Praça de Sé e, de repente, fiquei preso num imenso engarrafamento que me custou quase uma hora para percorrer o pequeno trecho.
Dentro do carro, aquela situação seria propícia à evocação da canção Sinal Fechado, de Chico Buarque e Paulinho da Viola, cujo título metafórico alude ao claustrafóbico ambiente humano num sistema ditatorial (em nossa época, a ditadura do mercado automobilístico). Ou do Admirável Gado Novo, em que Zé Ramalho denuncia as condições sociais que transformam os humanos em bovinos resignados. Nada disso entretanto me acometeu.
Simplesmente imaginei a indagação contida nos olhos esbugalhados da antiga vaca em face do bizarro espetáculo - a longa fileira de humanos presos em latas quentes com a vista dirigida para um alvo invisível.
Terminou o dia, mas essa idéia continuou na minha cabeça, de tal forma que cheguei a pensar em substituir o anjo do alto da página do blog por uma vaca-anjo contempladora do mundo. A única ilustração que encontrei na internet é a que reproduzo abaixo, embora saiba que ela é humorística demais para cumprir um papel de tamanha profundidade filosófica.
Ótimo teu blog, parabéns.
ResponderExcluirTomei a liberdade de adicionar teu blog no meu. Se puder, passa lá.
Um abraço!
Thiago Mattos
Belíssima crônica. Muito bem observado (a maioria das pessoas pouco nota o que acontece a sua volta)e muitíssimo bem exposto.
ResponderExcluirExcelente! Simples assim por dizer, não precisa comentários.
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