sábado, 31 de julho de 2010

Pensamento de esquerda, multiculturalismo, diversidade, estudos culturais

Vai aqui outro (longo) trecho da entrevista com Slavo Zizek, o polêmico sociológo esloveno. Nesta parte, ele apresenta algumas questões cruciais para a esquerda anticapitalista e critica com veemência as idéias do multiculturalismo vindas do império norte-americano. Vale a pena ler:

"A vitimização universal não é simplesmente universal no sentido de uma lógica generalizada da vitimização. Considero absolutamente crucial distinguir dois níveis. De um lado, temos o discurso de vitimiza~ção da alta classe média das nossas sociedades. Essa é a lógica narcísica de qualquer outra coisa que o Outro lhe faça é uma ameaça pontencial. É a lógica do assédio: o tempo todo, somos vítimas potenciais do assédio verbal, do assédio sexual, da violência, do fumo, da obesidade - uma eterna ameaça (...).
Por outro lado, temos as catástrofes do Terceiro Mundo - ou, mesmo entre nós, os sem-teto e os excluídos. Só que ai existe uma distância invisível. Eles também são vítimas, mas a maneira pela qual são interpretados como vítimas tem sempre a dimensão adicional destinada a impedir que se transformem em agentes ativos - a idéia, portanto, é que devemos empenhar-nos em exercícios humanitários. A representação básica das catástrofes do Terceiro Mundo, por exemplo, dá-se tipicamente, em termos da manutenção de uma distância em relação a elas: essas coisas não acontecem aqui ou conosco. Portanto, a verdade da vitimologia é essa cisão. Acho simplesmente humilhante dizer que essa vitimologia do assédio sexual da alta classe média, da enunciação de comentários racistas etc., pode ser colocada no mesmo nível do sofrimento pavoroso das vítimas do Terceiro Mundo. E, ao manter essa distância, o discurso predominante da vitimologia funciona precisamente no sentido de impedir qualquer solidariedade verdadeira com as vítimas do Terceiro Mundo.
É também nisso que vejo um problema nos projetos dos estudos culturais. Para ser ligeiramente cínico, eu diria que, ao lermos os textos dos estudos culturais, temos a impressão de que o assédio sexual, as observações homofóbicas e coisas similares são os grandes problemas dos dias de hoje. Mas, na verdade, esses são os problemas da alta classe média norte-americana. Portanto, creio que devemos correr o risco de romper com o que constitui um tabu contemporâneo e dizer claramente que nenhuma dessas lutas - contra o assédio, a favor do multiculturalismo, da liberação dos gays, da tolerância cultural, e por ai vai - é problema nosso.
Não devemos ser chantageados a aceitar essas lutas da vitimologia da alta classe média como o horizonte de nosso compromisso político. Devemos simplesmente correr o risco de quebrar o tabu - mesmo que sejamos criticados como racistas, chauvinistas ou lá o que for (...). não aceito como nível de uma esquerda moderna as lutas identitárias do multiculturalismo pós-moderno: direitos dos gays, demandas de minorias étnicas, política da tolerância, movimentos antipatriarcais etc. Estou cada vez mais convencido de que esses são fenômenos da alta classe média, que não devem ser aceitos como horizonte de luta da esquerda. Para evitar mal-entendidos, não me oponho ao multiculturalismo como tal; aquilo a que me oponho é a idéia de que ele constitui a luta fundamental de hoje".

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Te amo do que te odeio

Tem gente que ainda faz pensar. Como Slavoj Zizek, cujo sobrenome inclui acentos não aceitos no meu teclado espanhol. Peço perdão pela falha.
Zizek, mesmo sem acento, é professor titular de Sociologia da Universidade de Liubliana, na Eslovênia. Vindo lá daqueles confins - para nós do ocidente - construiu importante obra na qual dialoga intensamente com Lacan, Marx, Hegel e Scheling. Obra densa, difícil mesmo e que tá na moda. Um perigo!
Apenas comecei a ler um dos seus livros - Arriscar o impossível - composto de algumas conversas com Glyn Daly. E já de cara gostei de um trecho que deixo aqui pra reflexão coletiva:

"Para elaborar o papel da fantasia, o crucial é garantir a distinção elementar (que muitas vezes se perde) entre o objeto do desejo e o objeto-causa-do desejo. O objeto do desejo é simplesmente o objeto desejado - digamos, em termos sexuais simples, a pessoa que eu desejo. O objeto-causa-do-desejo, por outro lado, é aquilo que me faz desejar essa pessoa.
(...) Por exemplo, quando alguém está apaixonado por outra pessoa e diz: 'Eu o/a acho realmente atraente, exceto por um detalhe - não sei, sua maneira de rir, um gesto que ele/ela faz -, isso me incomoda'. Você pode ter certeza de que, longe de ser um obstáculo, trata-se, na verdade, da causa do desejo. O objeto-causa-do desejo seria essa estranha imperfeição que perturba o equilíbrio; só que, se ela for retirada, o próprio objeto desejado não funcionará mais, ou seja, não mais será desejado. É um obstáculo paradoxal, que constitui aquilo em relação ao qual é um obstáculo".

Mas não pensem que o tal paradoxo é percebido assim de modo tão claro e consciente pelo sujeito. Noutras passagens do livro, Zizek argumenta que só a psicanálise dá pistas para o conhecimento desse suposto autoengano. Pois vivemos dos nossos atos falhos.
O vídeo abaixo dá uma idéia do que pensa o filósofo. Embora demore um pouco para carregar, vale a pena ser visto:

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Gaivotas ou urubus, tucanos não!

Repaginei o blog. Andava cansado do antigo formato, das cores excessivas, gritantes. Fuçei daqui e dali e acabei adotando o atual modelo. Como se diz, mais clean e cool. Tons pastéis, talvez pálidos demais, quase invernosos, de acordo com a estação. Mas gostei do resultado, espero que também agrade a vocês.
O que mais se ouve hoje em dia é o verbo repaginar. Todo mundo quer mudar de cara, de corpo, de roupas, de parceiro(a), de carro e de dentes. Tudo para melhorar a auto-estima. Entrei no espírito da coisa, embora não fosse esta exatamente a intenção. Decidi mudar simplesmente porque me doía a vista.
Do ponto de vista filosófico e poético, sei que nada permanece igual. Blogs ou pessoas. Eu mesmo sou um fulano que já não é o sicrano de antanho e nem mesmo o beltrano de ontem. Sem remorsos ou ressentimentos. Virei zen - zen nada. Sigo Heráclito: Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio.
Mentira, ou apenas verdade parcial. Para resolver o impasse, Drummond disse mineiramente que, apesar das transformações, de tudo fica um pouco. Das pessoas que fomos, da família e das gentes com quem convivemos. No meu caso, pensando bem, creio que alguns pendores essenciais permaneceram e, quiçá, ficarão até o fim: certo desassossego inspirado em Fernando Pessoa, um jeito esquerda de ser, uma inclinação cultural anacrônica, um gosto de debater, de viver e ter boas amizades.
Se é assim, o blog pode ter mudado de estampa, mas manterá seu conteúdo. Não saberia escrever outras coisas. Músico frustrado, sou um cara de uma nota só.
E para ser honesto, o novo layout do blog nada tem de minha autoria ou de originalidade. Se quizesse bolar alguma Arte genuína eu teria de fazer um curso de webdesigner. Não tenho tempo para isto. E não me incomodo com a limitação. Afinal, Adorno já alertara faz muito tempo que vivemos uma era de reprodutibilidade técnica. Paciência.
Portanto, se acaso o modelo aplicado merecer algum aplauso, isto deve ser creditado a Josh Peterson, inventor (?) de algumas alternativas-padrões (que contrasenso) disponíveis na Web.
Mas fiquei um pouco invocado com aquelas aves voando em cima das impertinências do título. Não consegui eliminá-las, por isso, peço perdão se parecerem românticas, fakes ou mais uma expressão do nosso kitsch cotidiano.
Para minorar tal impressão, sugiro que sejam interpretadas ou relidas como algo retrô, bem ao estilo fashion. Se quizerem, imaginem gaivotas impertinentes. Ou ainda melhor, urubus radicais. Mas não tucanos, por favor! Embora goste deles, fico à espera de que eles também possam ser brevemente repaginados, logo que chegue ao fim o império dos políticos antiecológicos, espoliadores da sua bela plumagem. Só assim as asas tucanas serão benvindas aqui.

domingo, 25 de julho de 2010

Momento caça-fantasma

Não foi só este blog que andou infestado de fantasmas nas últimas semanas. Quase toda a mídia nacional também foi invadida por espíritos vestidos de lençóis esvoaçantes e outros personagens monstruosos. Ocorre que, na maioria dos casos, os meios de comunicação já estabeleceram faz tempo um pacto com o universo sinistro do além. Não é o caso desta página. Este é um espaço decididamente aberto aos caça-fantasmas.
Como já disse noutro post, as manifestações irracionalistas, sob qualquer roupagem ou fisionomia, devem ser combatidas, pois sempre estão a serviço da bárbarie cultural e política. O pensamento conservador da direita se alimenta desse tipo de detrito encontrado no imaginário social, nas seitas e superstições obscurantistas. Fazem questão de mantê-lo vivo para o usar quando preciso. Nunca é demais lembrar o exemplo máximo do irracionalismo nazista.
A Veja, principal representante da mídia golpista, usou abertamente desse expediente para assustar o eleitorado brasileiro. Aliás, o candidato apoiado pela revista e seu vice também embarcaram desavergonhadamente nessa canoa furada, espalhando o medo como estratégia de campanha. Medo da censura, das FARCS, do narcotráfico, da latinoamérica, do aborto, dos sindicatos, dos sem-terra, dos gays. Ressuscitaram Regina Duarte. Darão um tiro no próprio pé, tenho certeza, mas por enquanto não custa denunciar seus propósitos.
Felizmente, no entanto, outros veículos de comunicação entraram na corrente caça-fantasma. É o caso de Isto é, que traz na capa do seu último número uma chamada com esse teor. E também da Carta Capital, que além de revelar explicitamente sua adesão à canditatura Dilma, vem denunciando sistematicamente os factóides criados pela imprensa marron udenista.
Recomendo com entusiasmo a leitura de algumas matérias da Carta desta semana, especialmente Fantasmas à solta, na qual Sérgio Lírio desmente com fatos irrefutáveis a tese, defendida pela oposição, de que a liberdade de imprensa correu risco no governo Lula e estará sob ameaça num eventual governo Dilma. Não deixem também de ler o editorial em que Mino Carta discorre sobre o oportunista Índio da Costa, e de sobremesa, o artigo José Serra, entre drogas e alucinações, assinado por Wálter Fanganiello Maierovitch. Como aperitivo deste texto, ofereço ao leitor a primeira frase:
 "Quando ministro da pasta da Saúde, o atual candidato José Serra jamais se preocupou com a questão das drogas ilícitas, no que tocava ao tratamento do dependente químico e psíquico e na formação dos agentes de saúde. Sua gestão, no particular, foi marcada pelo descaso e pelo desrespeito aos direitos humanos".
Segundo o articulista, Serra veste sua indumentária fundamentalista, higienista e populista, usada também como prefeito da capital e governador paulista. Ao invés de combater causas, preferiu estabelecer leis secas e autoritárias (acrescento a do fumo) e expulsar carentes, drogaditos e alcoolistas dos viadutos e das ruas. Carlos Lacerda fez melhor: os jogou no mar.
Tem vampiro de toda a espécie no mundo. Não podemos lhes dar trégua. Contra sua irracionalidade pontiaguda, vale sempre o bom alho da razão crítica.

P.S. As queridas Imaculada Conceição e Camila deixaram comentários críticos às postagens anteriores. Assim que é bom. Mas quero esclarecer que, ao combater o irracionalismo, não proponho nenhum tipo de repressão aos cultos religiosos. Se apoiei a proibição do uso da burca em lugares públicos da França é porque lá se tem claro o que é público e o que é privado. Estado laico e não religioso. Nenhuma restrição ao islamismo. No caso brasileiro, em que as duas esferas parecem indistintas, as seitas religiosas, sob os auspícios do poder e em conluio com ele, privatizam os ares e as transmissões e invadem a sociedade com o seu obscurantismo. São seitas maléficas, sim, sem exagero. O mesmo vale para a universidade pública. Que então se limitem ao espaço das universidades confessionais. Ou criem suas próprias. Queridas, mantenho meu ponto de vista, mas adoro debater.


sexta-feira, 23 de julho de 2010

Vade retro, Satanás!

Vivemos uma época cheia de contradições. Quando acreditávamos que o progresso científico viria trazer esclarecimento - e estamos sob o pleno reino da ciência, hoje tecnociência - eis que o obscurantismo se manifesta na sua forma mais crua: a religiosidade primitiva. Como o polvo vidente superstar da copa do mundo, com seus oito braços e ventosas sugadoras, a religiosidade ignorante se irradia fantasticamente e tudo suga à sua volta. 
Não se trata de uma questão unicamente cultural ou filosófica, mas de contorno definitivamente político. Nem que se baste na resposta antropológica do respeito à diversidade cultural. O avanço do fanatismo religioso, a proliferação das seitas espoliadoras e manipuladoras dos incultos, o reacionarismo extremo das igrejas tradicionais, a interferência indevida do clero católico, muçulmano ou evangélico nas instituições sociais - são todas manifestações de uma confusão entre o domínio público e o privado e de falência do estado laico, este que talvez tenha sido a maior conquista da civilização moderna.
A proibição do uso da burka na França pode parecer meramente uma imposição autoritária de costumes, um modo de repressão e controle das minorias pelo poder dominante. Nada disso. Significa uma tentativa - possivelmente ineficaz - de restabelecer os princípios fundamentais do republicanismo de 1789, e acima de tudo, um exemplo do choque entre modernidade e primitivismo. E não me venham com os argumentos supostamente pluralistas das filosofias irrracionalistas vigentes! Conheço-os de cor.
No Brasil, as bases de uma república laica nunca foram completadas, a despeito da luta travada pelos republicanos radicais, vencidos pelas oligarquias e seus aliados do clero católico ultratradicionalista. Até meados de 1950, a política nacional, estadual e local era, entre nós, um indecoroso ritual de beija-mão de bispos, arcebispos e cardeais. A igreja dava a sustentação ideológica aos poderosos da ocasião e impedia avanços e reformas sociais.
Nas décadas seguintes houve, é claro, um intervalo marcado pela aproximação entre a esquerda católica, relativamente autônoma em face do vaticano, e os setores sociais oprimidos. Que durou pouco. Agora, o poder conservador da igreja voltou com tudo e ameaça outra vez interferir nas instituições sociais, como o demonstra o episódio recente da condenação da candidatura Dilma por um bispo de Guarulhos. Eco do mais cruel reacionarismo.
Os católicos, porém, talvez nem signifiquem mais o principal problema dessa ordem, considerada sua crescente perda de influência ideológica na sociedade brasileira e queda de prestígio no plano mundial. Perigo maior representa a expansão avassaladora do neopentacostalismo primitivo e malandro, com seus tentáculos sobre os meios de comunicação e o congresso nacional. Até quando teremos de nos submeter às alianças degradantes com eles?
Obrigado pela profissão a ler pilhas e pilhas de teses e dissertações, ultimamente estou também alarmado com um fenômeno inusitado: a infiltração insinuosa dos princípios religiosos no mundo dito científico e acadêmico. Desde a modernidade, desde a dúvida metódica, a ciência se tornou sinônimo de espírito laico. O que será da livre investigação sobre o primado de Deus e das instituições religiosas?
Ontem mesmo, folheei umas dez teses candidatas a livros dedicadas a Deus. Fiquei arrepiado. Nada me resta, a não ser gritar: Vade retro, Satanás!.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Teatro macabro

17 horas e 30 minutos de uma quinta-feira de julho, 2010 anos do nascimento do Nosso Senhor Jesus Cristo. Nem frio, nem calor.
O velho magérrimo anda rápido, foge das ruas e dos automóveis, segue para a represa artificial. Senta num banco e contempla a natureza desnaturalizada, a água escura, a márgem fétida. Se caminhasse vinte metros adiante seria mais um na multidão que aguardava a encenação no teatro de arena.
Mas ele preferia o silêncio do seu drama no ermo da terra. Uma hora, duas horas, ficou ali sentado, petrificado, feliz, decidido, a ver luzes invisíveis. Então se levantou, ergueu as pernas magras sobre a mureta, sentou por um instante como num cavalete e depois saltou. Desceu pela grama sobre a bosta das capivaras e caminhou agachado naquela água rasa, preta, sem ondas.
Passara quarenta dos setenta anos à procura da evolução espiritual. Acordava cedo, comia frugalmente em horários rígidos. Nas horas certas da manhã e da noite clamava ao Grande Foco, à Força Criadora. Louvava as leis imutáveis do Universo, prometia a busca da perfeição. Dos espíritos superiores captava luzes e fluidos. Crente da racionalidade, lutara para fortalecer a coisa a que os crédulos chamam de alma. E o próprio corpo, frágil suporte na escalada das reencarnações do espírito.
Sua carne, porém, também enfrentara tentações, como a do Cristo cons-ciência. Apelos do sexo, da vaidade, do egoísmo, da inveja material. Por meses, semanas, anos praticara a limpeza psíquica na grande mesa em torno da qual os mais elevados sacudiam corpos de mentes inferiores, expulsavam obsessores. Tornara-se ele mesmo um militante superior da grande causa universal, cósmica. Presidira sessões, treinara dicção para melhor persuadir os desiluminados. Incansável na purificação da terra, dos ares, das dimensões ocultas.
Já tinha algum tempo que se dedicava à campanha da cremação dos corpos, modo ecológico de se livrar das carnes putrefatas. Das suas próprias, como recomendou explicitamente em documento com firma reconhecida.
Ultimamente pouco falava. Espírito fora do corpo, olhava com desprezo ou compaixão sua morada em ossos e casas de tijolos, a mulher mais nova que lhe prestava cuidados, os barulhos e os cheiros das gentes mortais. Ainda assim, foi acometido por uma regressão do ego: tomou pílulas de tarja preta contra a depressão, implantou dentes artificiais, se perfumou, viu alguns filmes, até cantou.
Comprou um aparelho de MP4, leu o manual de instruções e começou a gravar. De início, se encantou com a própria voz, treinou discursos para as sessões públicas do Centro. Depois, registrou as luzes que passou a ver e o paulatino processo de desprendimento da carne maldita. Já não tinha dúvidas.
Passou no cartório e sob os olhares cobiçosos das testemunhas da seita, doou ao Racionalismo Cristão os terrenos e edificações que juntara no mundo provisório. Ganhou a rua, apressou o passo, chegou ao destino. Se acocorou, cerrou as mãos ao peito, fechou a boca e mergulhou a cabeça na água esponjosa. Ficou ali bem quieto à espera do Grande Foco.
Lá na margem além corria o Festival de Teatro, da vida como ela não é.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Vida vida

Mais uns dias ausente do blog e por razões justificadas. Meus últimos posts, como devem ter percebido, apareceram meio desequilibrados na forma e no conteúdo, estranhos, taciturnos, quase trágicos, como se pressentissem algo - embora eu não acredite em pressentimentos. Ai aconteceu o fato que envolveu e impactou meu mundo privado.
Não vou tratar disso aqui, não interessa a ninguém. Mas a mim demonstrou outra vez como a mente humana pode estar povoada de manchas obscuras, obsessivas, mórbidas, irracionalistas, religiosamente fatalistas. Que muito do que nos cerca revela a prevalência do instinto de morte sobre o instinto de vida.
Por isso detesto os suicidas, o indivíduo suicida, a sociedade suicida. Que viva a vida!
Com esta saudação retomo esta página e cumprimento os que passam por aqui ou seguem o blog.
 
Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.
 
Manuel Bandeira

quinta-feira, 15 de julho de 2010

O Brasil das trevas midievais

Já não somos mais o país da alegria e da cordialidade, do futebol e do samba. A derrota na copa abriu nosso portal macabro. E soltou as feras, os monstros, os vampiros que habitam cada um de nós. Nossos instintos facínoras estão finalmente nas telas. Ingressamos nas trevas midievais.
Hitchcocks de terceira categoria disputam sofregamente a direção dos festins diabólicos e das psicoses nacionais. Ao vivo, içam carros nas represas, prendem cães assassinos, farejam carne e sangue. Narradores de plantão, delegados gagos, psiquiatras bigodudos, doutores segurança, repórteres porta de cadeia e clarividentes disputam um naco do espaço publicitário. O mesmo espaço que ergueu e vitimou as marias chuteiras, que criou os moleques psicopatas vindos dos confins da livre escravidão. Mamãe, quero ser modelo! Mamãe, quero ser goleiro! Mamãe, quero ser polícia e advogado!
Resta saber o que é esse fenômeno, o que produz e a quem interessa. A capa do último número da revista Veja dá uma pista. Em diferentes tons de vermelho, tendo ao fundo uma estrela, exibe algumas das cabeças da mitológica hidra, completadas com a manchete: O monstro do radicalismo: a fera petista que Lula domou agora desafia a candidata Dilma. No alto da página, outras chamadas trazem a foto do goleiro Bruno e de uma cena da nova série de filmes sobre vampiros. A associação entre essas imagens nada tem de mera coincidência.
Não tenham dúvidas: a exploração da irracionalidade humana, as ameaças apocalípticas sempre podem ter alguma utilidade para os adeptos da direita. A história está repleta de exemplos desse tipo. Ali está o mal em toda sua pureza.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Noturno (1986)

"Noite morta.
Junto ao poste de iluminação
Os sapos engolem mosquitos".
Manuel Bandeira


Noite
vou
notívago
divagar

Noite
vil
vazio
noir

Noite
voa
Noite
Noite

terça-feira, 13 de julho de 2010

In other words

Amigas e amigos, tirei uns dias de férias do transmundo, como devem ter percebido. Nada grave. Não cai doente no hospital, nem fui preso, exilado ou mesmo internado em algum campo. Simplesmente peguei a estrada e fui passar uns dias privados.
Precisava disso. De vez em quando tenho de fugir do excesso de gente, informações, comunicações, imagens, odores sons e máquinas humanos. As telas já estavam demasiadamente ensaguentadas de goleiros, as vitrines saturadas de malhações, as ciências transbordantes de competições inúteis. 
Desci rumo a Boiçucanga. Sem qualquer ilusão, porém. Sabia que boi não é mais selvagem, como o fora derradeiramente na primeira vez que passei por lá. Que, aliás, nada sobrou do bom selvagem, nenhuma praia ou selva, nenhum saara intocado, a não ser a mais torpe sapiência, o mais parasitário conhecimento. Já descobrimos tudo e tudo será arrasado de massas que atraem massas. Para ver a batida do carro, o eclipse 3D, a devoração canina da modelo, o surfe no shopping center.
Não me importei. Desci, abri um livro, fechei os portões. E deslizei suavemente na nave. Fly me too.

   

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Beleza sinistra

Do alto, o sinistro do mundo fica mais belo. Nada a dizer, só contemplar (para Elisa, devorada pelos cães humanos) 

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Blues londrino (1983)

Londrina da minha janela
cidade do Paraná
Billie Holiday canta pra ti
estranhamente aqui

Quem sabe Londres fosse
coração para o meu corpo
eu não precisaria enfim
ser professor de mim

Mas não tu
cidade província
roteiro de viajante
se parecesses Brasília
minha primeira família

São Paulo ao menos agasalha
este país esta falha
de um projeto humano
sem história e sem dono

Já sei
tu não serás meu limite
meu porto é adiante acredites

Entrementes
Billie Holliday cumpre sua sina
nesta ausente Londrina


domingo, 4 de julho de 2010

Um objeto para o lixo

Que estranha é essa profissão de historiador! Tanta coisa mais interessante do dia-a-dia pra comentar - o moderno GPS que acabei de comprar não sei pra quê, a festa frustrada do hexa, o gostinho de vingança (que horror!) pela derrota dos hermanos, a gana africana insatisfeita, o suspense em torno do desaparecimento da amante do goleiro Bruno, o caso da advogada Mércia, Serra e seu índio de araque - e eis que o fantasma do passado não me deixa em paz.
Sou forçado a concluir: o historiador não se dá bem com a crônica do cotidiano. A verdadeira crônica, dizem os melhores escritores, versa sobre a banalidade do hoje em dia, procura algo de sugestivo ou belo no prosaico do imediatamente vivido. Ao contrário disso, o historiador, assim como o psicanalista que vasculha nas camadas do presente as irreconciliáveis fantasias primitivas do ser, é um eterno escravo do tempo remoto.
Portanto, me perdoem os leitores deste blog que talvez esperassem algum texto mais livre, contemporâneo e ameno nesta tarde gostosa de domingo. Mas o fato é que, ao revirar minha biblioteca à procura de um livro, acabei deparando com um opúsculo publicado em 1973 pelos estudantes de engenharia do Centro Acadêmico Armando Salles Oliveira da USP, campus de São Carlos. E já tem umas horas que esse simples caderninho mal-encadernado, uma cópia datilográfica já meio degringolada e mofada tem tomado toda minha atenção.
Que inferno! Em outras mãos isso já teria ido para o lixo faz tempo. Não só pelo aspecto deteriorado do objeto, mas também por seu conteúdo: extratos de textos sobre a Reforma Universitária no Brasil, abrangendo o período de 1961 à data da publicação. Tudo cheira a velharia anacrônica: centros acadêmicos, UNE e outras organizações estudantis, panfletos e cadernos de crítica ao sistema universitário, graduandos de engenharia metidos na política, debate a respeito da relação entre universidade e sociedade. Só para um historiador fora do mundo real isso pode fazer algum sentido, ter alguma importância.
Apesar desta triste constatação, continuei a ler o caderninho cujo índice é este: "O movimento pela Reforma Universitária; Origens da Reforma Universitária do Govêrno: o Plano Acton, Os acordos Mec-Usaid; A elitização da Universidade: A barreira do vestibular, Extinção da gratuidade do ensino, Orçamentos para a educação, Fundações; Reforma Universitária e Tecnologia Nacional; Engenharia Operacional; Representação Estudantil; Autonomia Universitária; Acordos sobre pesquisas estratégicas: o plano Camelot; Uma Pequena Análise".
Das suas páginas consta, entre outros extratos, uma Carta do Paraná, na qual os estudantes reunidos num Conselho Nacional (1962, Curitiba), apresentam os objetivos da sua luta: "a) A Reforma Universitária pretende fazer com que a Universidade seja para a sociedade o cérebro pensante, fonte constante de elementos para uma consciência crítica em relação à realidade social para que a Universidade seja o centro propulsor das culturas elaboradas com valores do próprio povo; b) Conseguir uma visão global da sociedade em que vive, não limitando-se somente a uma visão parcial de sua profissão: o futuro profissional não seria somente uma peça numa máquina instalada, e sim seria uma visão crítica de seu desenvolvimento social".
Tais idéias podem parecer hoje inteiramente descabidas, utópicas, ultrapassadas. Por exemplo, a universidade cérebro-pensante da sociedade, que bobagem ridícula! E por isso destinadas ao descarte, quando muito a alguma coleção de curiosidades como as de carros e brinquedos antigos.
Não para um historiador atento, no entanto. Na contracorrente dos que pregam a desimportância do passado, ele tentará convencer que esses sonhos têm tudo a ver com os desafios educacionais, científicos e sociais do presente. Que o debate brasileiro atual sobre o papel da universidade retoma temas daqueles tempos de antanho. Coisas mal-resolvidas em quarenta anos, dilemas que em nossos dias encontram respostas no PROUNI, nas políticas de cotas, na criação de um novo sistema de ingresso universitário, no fortalecimento e na ampliação do sistema universitário federal, no incremento do ensino técnico.
Foi por isso que, em vez de enviar esse objeto embolorado para a reciclagem de papéis (como vêem, também participo dos esforços em prol da melhoria do futuro meio ambiente), decidi lhe dar uma sobrevida, devolvendo-o à estante das palavras vivas.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

O circo eletrônico dos horrores

Madrugada adentro, o sono que não vem, a televisão ligada, nenhum documentário ou filme interessante, assassinatos cansados de superexposição, gols reprisados em infinitos ângulos, sexo semiexplícito em todas as posições, só os padres, os pastores e as pastoras eletrônicas gritam medonhamente no ar para a multidão de crédulos medonhos, os miseráveis da cultura. No ziguezague da tv aberta, canal por canal, craqueiros seguem Jesus, a água abençoada dissolve o câncer, a obra de deus opera milagres na boca de estômago da velha, na hérnia de disco do pedreiro, no casal em pé de guerra. A palavra persevera, tira do fundo do poço, cura depressão e síndrome do pânico, desfaz encosto, a bispa fajuta vende terapia por cartão de crédito, o ex-desempregado testemunha o carro novo, a casa própria, a tv digital, a cantora gospel cobra pelo divino ridículo, as páginas do antigo testamento guardam milhões de notas dizimais. O homem de batina reza vinte vezes a mesma oração ao pé da virgem de barro, benze o copo dágua  que duplica na mão do bispo de terno-e-gravata do canal vizinho, o obreiro e a pastora comercializam o barro e o líquido do rio jordão. O mais primitivo, o mais anímico, o mais supersticioso, o mais ignorante, o mais abjeto do homem ressurge do fundo humano, brota no eterno grotão da ignorância brasileira. Sem fundamentalismo teocrático, não!, sem transcendência prolifera como as baratas crescem no esgoto do país que nunca se completou como república laica ou positivista,  que vestido de moderno, teima em permanecer na treva da anticivilização, antes das luzes da ciência, da revolução e da laicidade. E que se perpetuará evangelicamente pelas novas gerações, como o tumor malcurado dos pastores, enquanto os ares, as ondas e os satélites  estiverem nas mãos dos criminosos da religião. Pois não bastam novos postes de eletricidade, nem mais escolas ou computadores, não! Nenhum ensino, por mais equipado e valorizado será capaz de competir com esse circo eletrônico de horrores, patrocinado por concessões públicas e justificado pelas alianças políticas assinadas sob narizes tapados e olhos vendados. Pois nenhuma cidadania ou consciência poderá se erguer nessa anticultura oficializada. Pois nenhuma potência nascerá desse impulso mortífero do mercado religioso. Não adianta ocultar: o centro do dilema brasileiro não é a questão educacional, esse discurso fácil e inexequível nas condições em que vivemos. A questão nacional é a reforma política, a verdadeira reforma republicana!