quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Tire suas mãos de mim



Como o profeta, eu também berro: tire suas mãos de mim, eu não pertenço a você! E se tentar me controlar, te entregarei de presente meu segundo tornozelo. Já não te bastou a quebra do primeiro? Pois agora, Herodes, te ofereço o outro numa bandeja de prata. Enquanto Pilatos lava as mãos.
Mas não me subestime. E não me compre como membro honorário do segundo escalão de uma massa falida. Aos dezessete anos datilografei fichas de crediário numa loja de pneus. Enquanto meus patrões, uns árabes prepotentes faturavam, eu devaneava. Controlar fichas, que nada! Em cada prestação impressa eu via um mês de uma vida livre da vida administrada. Em cada tecla batida eu sonhava o barulho da universidade. Minhas fichas ficaram sujas, borradas. E eu fui prá Brasília. Ficaram os árabes prepotentes com seus empregados lambebotas e a loja de pneus falida. Eles passaram, eu passarinho.
Faxino o fim de ano com incenso e sal grosso. Os dois anos na São Paulo que eu amo. Jogo tudo pro alto, exceto este blog que me salvou durante aquele tempo baixo astral. Desfaço apartamento, junto livros que comprei. O fôlego prá suportar a luta suja, a vida que ganhamos nos lances bem-sucedidos dos games.
Passo a limpo a agenda, tenho essa mania. A do celular para os absolutamente restritos. A manuscrita e encadernada requer limpeza adicional. Quem morreu não vai prá nova. Sinto muito, mas não lamento. Defuntos serão o adubo pros novos frutos da terra. Deleto os amigos que não foram (esses não servirão de adubo). Inscrevo os verdadeiros. E sumo com os amores imperfeitos. Daqui em diante eles flutuarão na zona opaca a que foram destinados. Sem ressentimento, desde que também tirem as mãos de mim. E não me olhem como inimigo. Simplesmente, abri a porta e fui.
Do mesmo jeito como abro a porta e fugo dos projetos fracassados. Não me incuba de despaixão. Sou quixote e general, jamais soldado (uma amiga recordou essa presunção que um dia eu lhe joguei na cara). Sigo o instinto da fera. Erro. Só que nessa errância sempre acerto. Não serei o poeta de um mundo caduco. Eu que não me sento no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar.
Não me atole na administração dos rankings ilusórios. Não quero esse ouro de tolo. Gosto de respirar a tempestade. É sob relâmpagos que arranco a erva daninha e semeio. Nasci no mato. E volto pra ele. Com minha sonhada pajero seminova, preta e reluzente abro caminho. Fazendeiro. De utopia universitária. Fazendeiro do ar.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Estranha forma de vida

Que pena! Já não somos mais os únicos no universo. A NASA descobriu uma nova forma de vida inteiramente diferente daquelas que conhecemos. Nós, que vivemos de fósforo, agora nos defrontaremos com seres viventes de arsênico.
Nunca gostei de arsênico. Sempre pensei que era coisa de suicida, tipo que não faz o meu gênero. Fumante inveterado, sinceramente ainda prefiro o metabolismo fosfórico, ainda que no dia-a-dia use o moderno isqueiro.
Os cientistas comemoram a descoberta, que levará ao tão esperado contato com ETs e  discos voadores. E virão novas formas de colonização dos moluscos estrambólicos do megaespaço. Serão bons consumidores para alimentar nosso crescimento econômico? Aposto que já tem gente prontinha para investir no novo setor.
Tenho mesmo é pena da Hannah Arendt, que detestava a frenética busca humana por outros mundos. Ela perguntaria: Não basta viver aqui? Haverá alguma novidade em outro tipo de vida? Descobriremos algo tão melhor assim para nos inspirar?
Creio que não. A vida é pequena, insignificante, boba demais, malgrado nossos egos enormes. Por isso não vale a pena passar a vida especulando besteiras. O fato é que nem somos capazes de controlar o que temos e, sobretudo, o que somos...
Francamente! Melhor é ficar do jeito que estamos, com nosso metabolismo aceso por míseros palitos de fósforo, sem invejar o dos outros, com nosso coração a bater independente, nesta forma humana - esta, sim, a mais estranha forma de vida:

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

A pista de Dáfnis e Cloé

Vejam este trecho do filme Cléo e Daniel (1970), cujo diretor - o psicanalista reichniano Roberto Freire - transpõe para a tela sua obra homônima, publicada em 1966, e que obteve enorme sucesso, tendo sido vendida em bancas de jornal:


Pois é. O romance e o filme foram inspirados na pastoral Dáfnis e Cloé, de Longus, escritor grego pouco conhecido, que viveu por volta dos séculos II ou III d.C. e nela cantou as peripécias do amor entre dois adolescentes, conforme os ensinamentos de Eros. Sua obra mereceu outras adaptações, como uma ópera criada por Ravel, reproduzida em parte na trilha sonora de Roberto Freire.
E daí? Daí, nada. A não ser que neste breve comentário lanço a pedra fundamental da minha nova pesquisa histórica que, aliás, já venho madurando há tempos: cultura, vida universitária, costumes e política nas décadas de 1960 e 1970. É claro que o título não será esse. Todo título é provisório, assim como a própria pesquisa e, muito mais, a reflexão. Se isto é verdadeiro, Cléo e Daniel (o livro e o filme) são apenas portas de entrada para o trabalho que, com o tempo, irá deles se desprender pouco a pouco.
Por enquanto, fico com ambos. De hoje a março do ano que vem devorarei cada palavra do romance e cada cena do filme. No mês das chuvas apresentarei minhas primeiras investidas da pesquisa sobre Cléo e Daniel numa mesa redonda do ciclo Leituras da modernidade, que está sendo organizado em Assis pelo professor Gilberto Martins, do Departamento de Literatura.
Nada mais posso dizer a esta altura. Deixo somente uma pista: meus anos 60 e 70 serão muito mais que deuses e diabos, oficinas e centros populares de cultura, buarquismos e tropicalismos, passeatas e generais, aleenes, colinas e varpalmares, marias antonias e zés dirceus.
Que Eros ilumine meu caminho!