segunda-feira, 28 de junho de 2010

Filosofia e despensamento

Na semana passada tivemos o último encontro da disciplina de pós-graduação em História (na Unesp-Assis), cuja temática foram as mutações contemporâneas relacionadas ao advento da cibercultura. Como havia anunciado o programa do curso neste blog, devo ao leitor um balanço, ainda que rápido do que foi discutido e o que pudemos concluir - é claro, provisioriamente.
A segunda parte da disciplina, sob minha responsabilidade (a primeira foi dada por Tania de Luca) teve como reflexão central a condição humana em nosso tempo de mudanças aceleradas resultantes do desenvolvimento tecnocientífico e sua aplicação na vida cotidiana. Questão evidentemente filosófica, mas também de alcance histórico, sociológico e antropológico.
Não será preciso dizer que a obra Condição Humana, de Hannah Arendt foi o ponto de partida e, sem dúvida, também o de chegada de todo o debate. Neste seu livro, publicado originalmente em 1958, se encontra uma elaboração teórica substancial e quase profética sobre o destino do homem em nossa época dominada pelas maravilhas tecnológicas, que nos libertam e, ao mesmo tempo, nos alienam do mundo.
Os autores analisados na sequência, ainda que não se confessem herdeiros do seu pensamento, confirmam muitas das hipóteses desalentadoras daquela teórica judia. Sob perspectivas diversas, demonstram a predominância, na atualidade, da tecnologia sobre a ciência, e do utilitarismo sobre o pensamento crítico. E é nas brechas desse descontrole que alguns buscam oferecer novos argumentos éticos e políticos compatíveis com os desafios enfrentados.
Lemos e discutimos, ainda, as teorias do transumanismo ou do pós-humanismo, que tem em Pierre Levi o seu principal representante. Embora sedutoras, se pôde notar como tais idéias revelam seu estreito compromisso com os princípios liberais, individualistas e competitivos capitalistas. Trata-se, além disso, de uma utopia formulada no interior das principais empresas de exploração da tecnociência que, a um só tempo, cuidam de criar e irradiar tal ideologia.
Encerrado o curso, restou porém o sentimento esquisito da inutilidade das nossas longas reflexões para os cursos de pós-graduação das atuais tecnociências humanas. Pois o que importa para estas são apenas os produtos rápidos do despensamento.

sábado, 26 de junho de 2010

Gana

Que gana de derrotar o Império!

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Serra na televisão: sem roda e sem vida

Não sei se vocês viram a entrevista de Serra no programa Roda Viva, mas eu vi. É bem verdade que foi uma experiência torturante aguentar seu tom monocórdico, sua fala prepotente e sua antipatia. Apesar disso, consegui chegar até o fim, embora me indagando a todo o momento se a minha reação negativa diante do candidato resultava do mero preconceito, da paixão irracional ou outras coisas que tais. Passados dois dias, pensados e pesados os prós e contras, concluo que não. O cara é mesmo ruim.
Prá começar, o programa não foi transmitido ao vivo, o que pode levar a supor que tenha sido editado. Além disso, os sabatinadores, incluindo o próprio mediador - Heródoto Barbeiro -, pareciam fazer questão de levantar a bola pro Serra chutar, bem no clima da copa do mundo. Mesmo assim, diversas vezes o tucano respondeu aos amigos com irritação e impaciência.
As perguntas foram bastante convenientes ao entrevistado, girando basicamente em torno de temas contábeis. O candidato aproveitou para dar aulas de economia, já que se considerada economista. Nem por isso foi capaz de apresentar um projeto econômico alternativo convincente. Saiu pela tangente no que diz respeito às privatizações, especialidade do seu partido, e deu a entender que vai estender a malha de pedágios exorbitantes pelo país. Quanto às políticas sociais, comprometeu-se a ampliá-las, mas nós sabemos muito bem como o PSDB trata disso. Quem quiser que se engane. 
No capítulo da política externa, repetiu as críticas surradas à atual diplomacia brasileira. Qual a sua proposta? Nada disse, nem precisava: leia-se, nas entrelinhas, o alinhamento sem tirar nem por aos interesses do grande Império.
E sobre educação? Reiterou as falácias que anda propangandeando pela televisão: ênfase no ensino técnico (que o governo federal tem incentivado de maneira muito mais substancial), duas professoras (sendo uma estagiária) no primeiro ano do ensino fundamental (medida apenas cosmética), bônus para professores e funcionários das escolas com melhor desempenho (política duvidosa, ineficaz e superficial). Que o digam os professores, tratados a pão e água nesta interminável era tucana que praticamente destruiu o ensino público paulista.
Serra também falou de segurança pública e de combate ao narcotráfico, como se tivesse obtido resultados, ao menos, satisfatórios nesse tocante em São Paulo. Os policiais, obrigados a comprar suas próprias botas para trabalhar, poderão respondê-lo à altura.
Assim transcorreu o Roda Viva, sem roda e sem vida, como um espelho do pálido candidato. Não é à toa que Dilma Roussef já apareça bem à frente nas pesquisas eleitorais. O seu nome passou a ser a expressão do avanço de um projeto nacional que se iniciou com Lula e do qual a maioria da população brasileira não quer abrir mão.
Não será a mera retórica de quem diz "trabalhar para as pessoas", "cuidar das famílias" e que o "Brasil pode mais" (slogans genéricos, vazios, falsos e abstratos - afinal quem são as pessoas, quem são as famílias e quem é o Brasil?) que mudará a atual tendência do eleitorado. Ainda bem.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Na rua Augusta, lentamente

Conheci a rua Augusta quando era moleque, põe tempo nisso. Foi pelo rádio, que ainda imperava lá em Guapiaçu, interior de São Paulo. O hit que tocava sem parar era um rock de Ronnie Cord. Falava de carros envenenados, com pneus carecas descendo a Augusta a 120 por hora, de guangues jovens e de muita aventura que despertava nossos desejos. Em Guapiaçu pouquíssimos tinham carros, já havia uns motoqueiros, mas guangues desse tipo não se conhecia.
Sequer conseguia criar uma imagem mental de tão badalada rua, muito menos de São Paulo, que só visitei pela primeira vez quase dez anos depois. No entanto, era grande a curiosidade sobre esse espaço em cujas imediações viria atualmente fixar minha segunda residência (sempre preciso de duas casas).
Quando morei e trabalhei em São Paulo, na segunda parte dos anos 70, passei muitas vezes por ali em direção à USP para os cursos de pós-graduação. Ia de troléibus a 20 por hora. Subir a rua até a Paulista, depois descer a Pinheiros era um verdadeiro suplício. Mas o percurso dava a oportunidade de admirar as boutiques de classe que ainda existiam naquele trecho. A avenida Paulista, em fase final de remodelação, ainda não havia adquirido o status atual de 5a. Avenue. A Augusta, por seu lado, mantinha o antigo charme.
Acho que foi a partir da década de 1980 que ela começou a perder o prestígio pequeno-burguês. Exatamente quando a boca do lixo central se dilatou e a área passou a ser ocupada por casas de massagem, clubes de sexo e prostituição de rua. A classe média cedeu lugar às garotas de programa, aos trabalhadores da periferia e aos visitantes em busca de prazer barato. 
Hoje, a Augusta tem outra paisagem humana. Pelo menos nos quarteirões mais próximos da Paulista, uma classe média dita descolada frequenta o local diariamente. E já desce célere para as proximidades da Caio Prado onde ainda restam umas poucas casas de programa. A convivência é pacífica, mas será inevitável o deslocamento do comércio de sexo para outra região. Não tem jeito, as putas sempre perdem.
Gosto da rua Augusta. Embora seu público seja majoritariamente jovem, há também lugar para gente, como eu, já passada do ponto. O Espaço Cultural Unibanco é a referência desse povo consumidor de bens culturais chamados de alternativos (não sei bem o que é isso, mas também sou um dos seus apreciadores). Tem sempre um filme menos comercial em cartaz ou nas bancas de dvds piratas, espetáculos experimentais de teatro e, principalmente, boas livrarias. Não só a Cultura, no cruzamento da Paulista, mas ainda a do próprio Espaço Cultural, especializada em artes.
O que atrai mais, entretanto, são os botecos, dois ou três por quadra. Para quem só come fora é um prato cheio, saboroso, rápido e de preço acessível: virado à paulista nas segundas, frango ou peixe às terças, feijoada e massa na sequência. E tem o tradicional Piollin na baixada, sempre imperdível.
O trânsito continua insuportável para quem anda de carro. 120 por hora é impossível nas duas mãos invariavelmente entupidas. O pedreste vai razoavelmente bem, em especial na descida. Subir a ladeira já é tarefa mais difícil no descanso sempre cheio de galera com copos e latinhas na mão. Sem falar do novo calçamento meia-boca que exige atenção desdobrada do andarilho.
Nada disso tira o prazer de andar por ali (aqui). Quando ficar bem velho, quero descer a rua Augusta a zero por hora. 


 

domingo, 20 de junho de 2010

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Saramago enjoou de ver

rendeu-se à fraqueza da linguagem humana, submeteu-se à pontuação, concluiu o Parágrafo.

"...Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem".
José Saramago

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Ainda sobre livros e e-books

Dois livros essenciais sobre livros, lançados originalmente no ano passado, acabam de ser publicados no Brasil. O primeiro, Não contem com o fim do livro, reúne uma jornada de entrevistas concedidas a Jean-Philippe de Tonnac por Umberto Eco e Jean-Claude Carrière. O segundo, intitulado A questão dos livros: passado, presente e futuro, é assinado por Robert Darnton.
Trata-se de um trio cultor de livros, cada qual à sua maneira. Umberto Eco, o mais conhecido deles, além de romancista, filósofo e semiólogo, é um inveterado colecionador desse tipo de bem cultural. Carrière é tambem bibliófilo de carteirinha, além de escritor, dramaturgo e roteirista. Robert Darnton, que já conquistou um lugar na historiografia internacional com uma série de trabalhos a respeito da história da leitura, ocupa hoje o prestigioso cargo de diretor da Biblioteca da Universidade Harvard. Vale a pena, portanto, saber o que eles pensam sobre a situação do livro na era dita da informação.
Nas respostas dadas ao entrevistador, os dois primeiros transitam com grande desenvoltura, erudição e bom humor por temas complexos do passado e do presente: as mudanças no hábito de leitura provocadas pela velocidade das transformações técnicas; a rápida e sucessiva obsolescência das novas tecnologias da informação; a memória incontrolável da internet, desprovida de instrumentos condiáveis de filtragem; a tendência atual ao desaparecimento das especialidades ligadas ao estudo dos manuscritos; o papel do livro, dos livreiros e das bibliotecas na história - entre outros assuntos.
Mas o que os inflama mesmo é uma certa aposta na perenidade do livro tal qual o conhecemos desde a Idade Média, ou ainda, desde Gutenberg. Diante da efemeridade de inúmeras tecnologias modernas, segundo o eloquente escritor italiano:
"Das duas uma: ou o livro permanecerá o suporte da leitura, ou existirá alguma coisa similar ao que o livro nunca deixou de ser, mesmo antes da invenção da tipografia. As variações em torno do objeto livro não modificaram sua função, nem sua sintaxe, em mais de quinhentos anos. O livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez inventados, não podem ser aprimorados. Você não pode fazer uma colher melhor que uma colher".
Por sua vez, Robert Darnton também faz uma descarada apologia do livro, nas suas próprias palavras. Ainda assim, mostra-se um pouco mais ousado como autor de alguns projetos de cunho digital, já que supõe seu inevitável predomínio na era em que ingressamos ou estamos às vésperas de ingressar. É por essa razão que seus ensaios foram organizados em três partes, dedicadas, pela ordem, do futuro ao passado. Inicia o livro com algumas conjecturas, justificadas por indícios do presente, a respeito do futuro do livro, da informação e das bibliotecas no ciberespaço. Na segunda parte, trata da convivência entre livros impressos e e-books, dos planos que desenvolveu para a publicação de livros virtuais e defende com veemência o acesso livre ao conhecimento e à cultura, conforme os princípios da república iluminista das letras. A última parte versa sobre questões ligadas aos seus trabalhos de historiador da leitura.
Convém ler com atenção o capítulo O Google e o futuro do livro, em que Darnton analisa os problemas envolvidos no grande projeto, encabeçado por essa empresa, de digitalização das bibliotecas. De acordo com ele, a iniciativa nos coloca diante do imponderável: o monopólio quase absoluto do patrimônio universal da cultura letrada pela iniciativa privada ou o triunfo do sonho enciclopédico iluminista. Nas entrelinhas, talvez se possa ler um Darnton um tanto desalentado.
Quanto ao e-book, experimentado na própria pele pelo historiador durante a década de 1990, quando ele liderou a edição de uma série de teses acadêmicas em formato digital, nota-se que suas informações não permitem conclusões definitivas. Tal empreendimento foi apenas parcialmente bem-sucedido, mas já se interrompeu. As evidências demonstram, contudo, que as dificuldades de publicações acadêmicas ainda não foram solucionadas nos Estados Unidos. O que também ocorre no Brasil, diga-se de passagem. 
As ponderações de Robert Darnton, tanto quanto de Eco e Carrière, deveriam ser lidas com cuidado, especialmente nos meios novidadeiros nacionais. Das duas obras ainda resta um cheirinho sagrado de livro.

sábado, 12 de junho de 2010

Nosso crescimento chinês

Tá. As candidaturas à presidência da República já estão postas. O nome de Dilma  emplacou e tem grandes chances de vencer a tucanalha. Lula continua mais popular do que nunca. Seu governo segue obtendo êxitos nos planos sociais, na economia e na política externa. Começamos a crescer como os chineses.
Basta? É claro que não. Nem por isso vou aderir ao slogan "O Brasil pode mais". É evidente que pode. Mas o quê? Além disso, o Brasil não é uma abstração conceitual. Essa suposta entidade acima de tudo e de todos envolve classes e segmentos distintos, grupos de interesses diversos, projetos discordantes, visões de futuro contrastantes.
Portanto, é preciso politizar o processo eleitoral. Fazer com que os candidatos não só mostrem suas caras, mas também, esclareçam seus projetos. É ai que a porca torce o rabo. Estamos ainda longe de um debate politizado.
Dizem que a disputa só vai pegar fogo depois da Copa. Espero que sim. Espero, sobretudo, que não se limite ao jogo de forças da mídia golpista encabeçada pela Veja e pela Folha de São Paulo.
Há outras fontes que deveriam merecer a atenção dos chamados formadores de opinião. A Carta Capital, por exemplo, que nesta semana publicou uma edição especial com um dossiê intitulado "Do que o Brasil precisa?". Leitura indispensável para o início de uma reflexão.
Abre o dossiê o próprio diretor da revista, Mino Carta, com seu editorial sobre o egoísmo e a cegueira das elites e da classe média brasileiras, incapazes de compreender o que tem ocorrido em nosso país desde o início do século XXI. Delfim Neto, aquele bruxo velho da economia, fala dos nossos desafios energéticos. João Pedro Stedile bate na tecla da extrema concentração das riquezas em nosso território. A Igreja Católica vem com Dom Dimas Lara Barbosa, defensor das formas de participação popular na política. Moniz Bandeira, em elogio à atual política externa brasileira, alerta que "os países de largas fronteiras serão os principais atores da política internacional". André Siqueira, executivo da Ford, trata do necessário equilíbrio entre PIB, câmbio e juros. Tem até o liberal-hipócrita de carteirinha, Marco Maciel, a escrever sobre a inevitável revisão da Constituição cidadã.
Uns poucos artigos versam sobre futebol, cultura e educação. Sócrates, nosso brilhante filósofo, toma o exemplo do comportamento dos craques do futebol para refletir sobre a juventude brasileira: "Espelhos do abandono em que se encontra a juventude, nossos craques entram em seus carrões e fogem da realidade". Lucidez chocante em época do mundial de futebol. As matérias a respeito da cultura e da educação são, porém, óbvias e pobres.
É uma pena, pois, os desafios nessa área talvez sejam os maiores. Não só no que diz respeito à ampliação dos números do acesso à educação formal, à alfabetização, à modernização das escolas, mas ao tipo de educação que pretendemos efetivar. Creio que, nesse tocante, ainda não nos libertamos das recomendações e das receitas capitalistas neoliberais do Banco Mundial.
A universidade, regida pela CAPES, assumiu uma forma gerencial que poderá levar, quando muito, ao sucesso numérico: maior número de produtos, não importa lá o que eles sejam. Basta que sejam produtos e possam ser rotulados de inovações tecnológicas. Isso é muito pouco. Só uma educação realmente estimulante e criativa será capaz de promover o espírito crítico, condição fundamental para o desenvolvimento científico e para uma verdadeira cidadania.
É por isso que tenho de concordar com Chico de Oliveira, do qual discordo em termos de opções eleitorais, quanto à postura dos intelectuais brasileiros, segmento vinculado às universidades e que faz parte da rede neoliberal da CAPES. Em entrevista publicada no último número da revista Cult (outra indicação aos leitores), adverte ele que "o nível da crítica ao capitalismo no Brasil pela esquerda formal quase inexiste".
Particularmente, estou muito feliz com o nosso crescimento chinês, retomado dos velhos sonhos desenvolvimentistas e de política externa independente dos idos finais de 1950. Como qualquer brasileiro, tenho direito a esse gostinho de capitalismo, mesmo que depois de tanto tempo. Resta saber se isto basta. A mim, tenho a certeza de que não.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Um pouco do poeta maldito

Canção da Torre Mais Alta (A. Rimbaud)

Mocidade presa
A tudo oprimida
Por delicadeza
Eu perdi a vida.

Ah! Que o tempo venha
Em que a alma se empenha.
Eu me disse: cessa,
Que ninguém te veja:

E sem a promessa
De algum bem que seja.
A ti só aspiro
Augusto retiro.

Tamanha paciência
Não me hei de esquecer.
Temor e dolência,
Aos céus fiz erguer.

E esta sede estranha
A ofuscar-me a entranha.
Qual o Prado imenso
Condenado a olvido,

Que cresce florido
De joio e de incenso
Ao feroz zunzum das
Moscas imundas.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

A barbárie não tem parada

É triste admitir, mas, depois de décadas de revolução comportamental e civilizatória, a barbárie volta triunfante. A despeito das décadas de paz e amor, dos ideais de solidariedade universal, dos sonhos aquarianos, do feminismo, da valorização da diversidade e do politicamente correto, o recalcado retorna cada vez mais forte. Refratário às novas leis e aos novos esclarecimentos, o reprimido parece cumprir com exatidão o esquema das pulsões inconscientes, tão bem descrito por Freud: diante de uma barreira, e uma vez impedido de descarregar sua energia primitiva, dá meia-volta, reorienta sua trajetória, robustece e mira outro alvo. Como as bactérias ancestrais combatidas pelos antibióticos, emerge mais resistente contra toda tentativa de purificação do corpo.
Exagero? Então o que significa o recrudescimento, em tempos da moderna sociedade da informação, de atitudes e comportamentos característicos de uma época arcaica, pré-1960, como o sexismo, o machismo, o sadismo, o adestramento marcial, o culto ao corpo muscular, o bullying e fenômenos correlatos?  De tudo aquilo que imaginávamos circunscrito às populações pobres, marginalizadas, abandonadas pelas luzes da cultura, obrigadas a sobreviver e a se defender no lodaçal da violência cotidiana?
Pois bem: todas estas manifestações estão ai disseminadas nos vários segmentos sociais, principalmente entre os jovens: a violência física e psicológica, que não se restringe às escolas públicas, mas ao contrário, invade as melhores escolas privadas da classe média; o sadismo bullyng, que mira um amplo espectro de supostos desafortunados - professores proletários, obesos e magros, feias, viados e lésbicas, cdfs...
Já procuraram saber quais sãos os modelos midiáticos dessa galera? São os programas humorísticos, especialmente o Pânico na tv, que sob o invólucro moderno, expõe formas de agressividade, preconceito, violência e sexismo extremos: a tortura do gordo, as bichas rebolantes, as paniketes oferecidas, a desdentada Gorete, o Zina abobalhado, as pelancudas das praias, geralmente pretas e pobres... Comparados a essa forma de humor, a antiga Escolinha do Professor Raimundo, o morimbundo Casseta e Planeta e a sobrevivente A praça é nossa até poderiam ser transmitidos nas misssas dominicais.
Se o Pânico, com sua grosseria infantil, se tornou a escola da molecada, o CQC é uma igreja para os pretensos antenados, adolescentes dos vinte aos trinta anos. Não é à toa que seus apresentadores, professantes de um fascismo implícito e difuso, viraram objeto de uma verdadeira idolatria.
Latente ou manifesta, a barbárie ainda cobre outras faixas etárias e outros espaços, como a família e o trabalho, sempre alimentada pela onipresente tv. Exemplo típico dessa fonte é o programa Pop, que alterna a defesa veemente do respeito à diversidade com a oferta mais baixa de consumo sexual, especialmente da mulher. Basta ver o quadro Sua patroa pode ser um avião, cujos termos procedem do vocabulário dos anos 50.
Com isto não quero dizer que a televisão seja a criadora do sexismo, do machismo, da violência ou do sadismo. Tais componentes circulam pela vida social, espelham a mídia e ao mesmo tempo são por ela espelhados. A barbárie é um fenômeno de ordem social, econômica e cultural. Leis e informações podem até mitigá-la momentaneamente, mas permanecerá ou se insinuará em formatos diferentes enquanto persistir a atual estrutura de sociedade. O foda é que ninguém sabe como sair disso.
No taxi para a Barra Funda, antes do feriadão, ouvi do motorista que a gayzada ia dar lucro no domingo - "a parada é boa porque viado gosta de gastar dinheiro". Ao retornar, no domingo à noite, quando a parada já se dissolvia, outro taxista, ao presenciar um casal gay se beijando, comentou: "esses filhos da puta não tem vergonha na cara, bando de aidéticos". E em plena segundona, durante ao almoço num restaurante de bancários, o assunto continuava na mesa ao lado da minha: A moça: - "Cês viram aquelas travestis no carro alegórico? Como é que pode? Morri de rir". A colega: - "Dizem que já nascem assim, tem problemas psicológicos, a gente tem que respeitar, coitados!". O amigo: "As sapatonas não tem graça, mas os viados são muito engraçados".
Para a ruidosa maioria silenciosa a Parada Gay é só um circo. O que dizer do circo de horrores em que essa mesma massa atua?  

sábado, 5 de junho de 2010

Porresia



Há uma gota de porra em cada poema
Há um gosto de poesia em porra nenhuma

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Oral sex

Sou um cara invocado com algumas palavras. Volta e meia me irritam a falsa de senso crítico e o verdadeiro ridículo da repetição nauseante de uma série de termos-clichês, banalizados ao extremo. Um deles é representação, moda desde os anos 80 na academia. Seu aparecimento coincidiu com o declínio do vocábulo ideologia, corriqueiro no velho marxismo. Pois bem: buscaram lá na teoria estética a tal da representação, que já não significa absolutamente mais nada. Tudo virou representação e ainda insistem em empregá-la, principalmente as novas filas de epígonos. Mas há um monte de outras palavras acadêmicas desse tipo que pretendo de vez em quando mostrar aqui. Dará um imenso dicionário de bobagens intelectuais.
Há também aqueles termos e modos estúpidos de falar que foram tão rapidamente incorporados na linguagem cotidiana. Quase todos vieram dos business statianos, como os gerundimos que ainda se propagam como verdadeiras pragas: vamos estar fazendo, vou estar transferindo a ligação e similares. Tem ainda o com certeza, um tipo de resposta-padrão sempre dado em entrevistas de televisão, que nos traz a incerteza de viver num mundo inteligente. E muitos outros de idêntico calão por ai afora.
Durante sua viagem ao Brasil para assumir um posto na USP, na década de 1930, Lévi-Strauss disse que a terra se tornava uma imensa monocultura. Segundo o antropólogo, todos os recantos de diversidade ou policultura iam desaparecendo com a diminuição das distâncias. Não sei o que ele pensou a respeito do mesmo assunto nos seus últimos anos de vida, quando a globalização e o incremento monopolístico e acelerado das informações levaram ao paroxismo aquela tendência. No Brasil, então, a monocultura yankee vem de longe e abrange todas as classes.
Mas hoje quero falar do vocabulário sexy, uma dessas invariantes coloniais. Aliás, não sei porque o termo sexo tem a força que tem. Nem vou recorrer a Jurandir Costa Freire para alertar que até o século XVIII o referido não era tratado desse modo separado dos afetos, sentimentos, espíritos e outras partes da carne. Tampouco a Foucault para lembrar que é exatamente desde então que a sociedade ocidental nos constrange a falar de sexo. O sexo tornou-se falado, em vez de reprimido como um tabu. Passou a ser controlado pela fala e não pelo falo. E muito menos recorrer ao maluco do Baudrillard para concluir que o sexo adquiriu essa dimensão falada e específica exatamente porque já desapareceu, se desprendeu do real, transformou-se em virtual.
Não chego a tanto, embora tenha de admitir que a expressão sexo, biologicamente superlativa, representa (olha aqui o lapso) entre nós uma função, uma mecânica, um processo. Os norte-americanos adoram incluir tudo na semântica da produção capitalista com suas eficiências e produtividades. To have sex é bem a expressão desse puro comércio. Melhor é o vocabulário puro e inocentemente debochado dos inferninhos da prostituição: trepar  é um dos verbos correntes, aliás, magnífico, preciso, erótico, ecológico. E que saudades do make love, not war, tão romântico!
Experimentem assistir ao programa Talk sex, da Sue Johansen, e verão que estou certo. A mulher até que é safadinha como uma panela velha, só que ao jeito dos irmãos puritanos do norte. Ensina a art of sucking dick e coisas que tais, mas de um jeito tão técnico e natural que tira qualquer tesão. O tesão gosta de um pouco de secreto, de escuro, de proibido. Iluminá-lo e clarificá-lo é brochante. Por isso é que, no âmbito dessa mesma pedagogia do sexo, o antigo programa Ponto P era muito mais interessante, sacana e nacionalista. Tinha duplo sentido.
Sei que a lingua yankee é muito prática e eficiente, mas francamente, há vocábulo mais feio que relationship? Não sei nem quero saber sua origem etimológica ou histórica, nem por isso gosto desse negócio de relação e transação. Por isso me incomoda ouvir um relacionamento por minuto nas conversas de metrô, pelo celular, nas lojas, nas igrejas, no programa da Lucianta, de bocas populares ou célebres: terminei recentemente um relacionamento, comecei um novo relacionamento. Ou seja (como diria Lula), ninguém mais é gente, e sim agente de relações. Bons tempos eram aqueles em que as pessoas tinham casos, paralelos ou não ao casamento institucional. Fulana tinha um caso com sicrano. Ou eram amigadas (que linda expressão!).
O imperialismo se expande também pelo território homoerótico, e não poderia ser diferente. Tem uns vinte anos que os viados brasileiros passaram a ser gays tipo norte-americanos. A expressão gay (homossexual não pode ser contido ou mesmo triste?)nos Estados Unidos, só ganhou conotação sexual em meados do século XX e se mundializou com o movimento do politicamente correto. Tinha o propósito de combater os preconceitos implícitos em termos como viado, bambi (nenhuma alusão a um clube de futebol) bicha e outros. Alguns dizem que viado vinha de transviado (termo classificatório inaceitável), outros afirmam que era simplesmente uma corruptela de veado, o bicho. Acredito mais nesta segunda alternativa.
O fato é que tenho dúvidas a respeito do poder purificador e racionalizador das palavras. No caso de gay, creio que é mais um termo para usar na televisão e na academia do que qualquer outra coisa. Socialmente aceito e legitimado, aparenta cientificidade, racionalidade, modernidade e neutralidade. Mas não é o que os gays usam cotidianamente para se referir aos pares e a si próprios: em ambiente próprio eles se dizem bichas e viados. E não vêem nenhum mal nisso.



terça-feira, 1 de junho de 2010

Faz frio na Praça da Sé

A Praça da Sé esfria, escorre

Gela, garoa, neblina
Chove, nevasca, nevoa


Implacável, escurece
Indiferente, obscurece
Impiedosa, ausenta


A sangue frio, exila
E cala.