sexta-feira, 30 de abril de 2010

Baseado em testes científicos

A GNT reprisou recentemente o documentário A verdade sobre a maconha, também chamada de erva do diabo. Conduzido por um psicólogo especialista em vícios, o programa discute verdades e mitos que envolvem a cannabis sativa. Além de alguns depoimentos de usuários, são também apresentadas várias pesquisas tanto sobre os seus efeitos relaxantes/estimulantes quanto sobre suas propriedades terapêuticas.
As novas investigações derrubam vários preconceitos a respeito de uma das drogas até agora menos compreendidas, embora das mais consumidas no mundo. Questões polêmicas são abordadas: provoca dependência? tem relação com a esquizofrenia? estimula a procura de outras drogas mais pesadas?
As respostas são esclarecedoras. A mencionada dependência é de caráter emocional e cultural e não químico. Os distúrbios esquizofrênicos foram observados em percentagem mínima, geralmente, entre jovens com menos de 15 anos. Não se pode afirmar, absolutamente, que incite o usuário a buscar drogas mais poderosas. E se não bastasse a demolição dos velhos mitos, as pesquisas avançam na descoberta dos seus elementos terapêuticos.
Assim se reforça a bandeira da descriminalização da maconha, iniciativa ainda tímida no Brasil, porém, fundamental para retirá-la do controle do tráfico e dos policiais sem escrúpulos. Bandeira já há muito tempo desfraldada por Gabeira e Carlos Minc, agora também agitada por Fernando Henrique Cardoso e que, infelizmente, outros setores das esquerdas, incluindo o PT, deixaram de lado. 
A prática de esquerda não pode ficar refém dos preconceitos e sucumbir ao discurso do desprazer capitalista, à pulsão de morte. Isso é coisa de norte-americanos estressados, puritanos e suicidas. E por falar nisso, reproduzo aqui o que Arnaldo Jabor, num dos seus momentos lúcidos e menos direitistas, disse sobre o assunto. A césar o que é de césar.





terça-feira, 27 de abril de 2010

Ney embala o cabaré transmundano



Ouço sem parar Beijo bandido, último cd de Ney Matogrosso. Ouço e vejo coisas delirantes que não estão nas resenhas críticas. Segundo elas, ao se despir do exagero tanto no figurino quanto na interpretação corporal e vocal, Ney atingiu a contenção e o virtuosismo camerísticos. Uma ova!  Querem transformá-lo num ser cult asséptico, moldá-lo para a academia dos imortais inofensivos.
Ney já não pertence a este mundo, é verdade. O fato é que nunca pertenceu, principalmente quando incomodava a vida comum com sua androginia seca e molhada. Foi finalmente aceito e apropriado pelo bom gosto médio, mas não deixou de surpreender, até mesmo quando parecia se adaptar ao padrão cool, fetichistamente bossa nova da classe média.
Pura ilusão de ótica. Beijo bandido não é moderno nem releitura no estilo pós-moderno. Releitura é o que começou quando os tropicalistas esfriaram o Coração Materno dos penduricalhos arcaicos de Vicente Celestino. O beijo bandido de Ney Matogrosso, ao contrário,  reaquece velhos tangos, baladas, e samba-canções melodramáticos para um público que, mergulhado nas sensações mornas do cotidiano de hoje, se mostra ávido por inflamação sentimental.
Tudo começa com Tango para Tereza, dos arquibregas Evaldo Gouveia e Jair Amorim. Espiritamente, Ney psicocanta as paixões, as divas e os divos dos cabarés desaparecidos. Continua com o bolerão De cigarro em cigarro, de Luis Bonfá, passa por canções mais recentes, como as de Cazuza/Dé/Bebel Gilberto, Herbert Vianna, Chico/Edu Lobo. Canta, ainda, a belíssima Medo de amar, de Vinícius de Moraes, e magnificamente, À distância, de Roberto/Erasmo.
Não se trata, porém de uma homenagem aos clássicos, recurso atualmente usual entre os que clamam o aval dos desencarnados para ingressar na academia. O que Ney brilhantemente incorpora em seu teatro supostamente comedido, isto sim, é a tradição dramalhesca soterrada no cenário cultural brasileiro. Que vem ao ápice em As ilhas, de Astor Piazzolla e Geraldo Carneiro. Como se do além, Ney Matogrosso embalasse e iluminasse o cabaré apocalíptico do nosso transmundo. É ver e ouvir.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

A vida é tela



O médico me deu alta. Outra vez eu ando pelo mundo. E para comemorar, nada de política, nada de filosofia, nada de história. Lento no espaço da velocidade, meu intróito é esta canção que eu nem imaginava num dueto tão belo. A vida é bela - disse aquele palhaço italiano. Como Adriana Calcanhoto e Renato Russo, prefiro dizer que é uma tela. Por onde passam cores de Almodovar, cores de Frida Kahlo, cores. Ou o escuro das cápsulas protetoras que impedem ouvir os gritos de fora. Então, eu também ando pelo mundo. Só que escrevendo. Dessa pequena tela, dessa grande janela, desse quadro. Desse esquadro, desse remoto controle. Para quem? - eu também pergunto. Nada disso importa pois eu ando. E ainda há alguma poesia neste canto que sigo e espalho na tela:
Eu ando pelo mundo divertindo gente/ Chorando ao telefone/ E vendo doer a fome/ Dos meninos que têm fome/ Pela janela do quarto/ Pela janela do carro/ Pela tela, Pela janela/ Quem é ela, quem é ela?/ Eu vejo tudo enquadrado/ Remoto controle/ Eu ando pelo mundo/ E os automóveis correm para quê?/ E as crianças, correm pra onde/ Transito entre dois lados/ De um lado, eu gosto de opostos/ Exponho o meu modo, me mostro/ Eu canto para quem?/ Eu ando pelo mundo e meus amigos, cadê?/ Minha alegria, meu cansaço?/ Meu amor, cadê você?/ Eu acordei, não tem ninguém ao lado.

sábado, 24 de abril de 2010

O incêndio do ateneu

Raul Pompéia foi profético. Nas páginas finais do seu romance, consumiu em chamas o Ateneu, símbolo de um microcosmo fechado, violento e hipócrita. Era 1888 quando essa narrativa foi publicada no Rio de Janeiro. Mais de um século depois, as escolas ainda continuam a ser campos de internação para jovens viventes de um outro mundo.
O duro é que nossa vã pedagogia segue mais obsoleta do que nunca. Com pequenas atualizações e pretensas democratizações, teima em reproduzir o modelo escolar de duzentos anos atrás, que enfeixa três dispositivos disciplinares falidos: o religioso, herdado do catolicismo medieval; o cívico-militar, criado pelos estados nacionais; e o produtivista, nascido da revolução industrial. Nenhum deles faz hoje sentido para qualquer jovem de celular em punho, seja das favelas comunitárias, seja dos condomínios de luxo.
Alguém poderia objetar que ainda é preciso ampliar o sistema escolar conhecido para absorver contingentes que seguer alcançaram o direito à educação. É verdade, mas pena que seja de acordo com os velhos parâmetros atenêuticos, públicos ou privados.
Ninguém sabe a fórmula para acertar o passo da educação com as novas gerações. Há pouco tempo atrás falou-se de escolas do futuro. Já chegamos ao futuro e nada. Ainda mais no Brasil, terra arrasada por pedagogos que ainda pensam os computadores como máquinas de escrever apostilas supostamente interativas, e a formação de professores como treinamento digitaldatilográfico.
O MEC até que tenta sair do impasse. Em 2008, patrocinou o ciclo de conferências Mutações - A Condição Humana, idealizado por Adauto Novaes, com o objetivo de discutir os impactos da cibernética em nosso cotidiano. Um dos participantes do colóquio foi Pascal Dibie, antropólogo do Laboratório de Antropologia Visual e Sonora do Mundo Contemporâneo, ligado a Universidade de Paris 7 St. Denis Diderot - diga-se de passagem, um centro de estudos muito diferente dos nossos costumeiros cursos curricularmente retrógrados.
Pois bem: em suas pesquisas, Dibie vem acompanhando detidamente as mudanças percebidas nas novas gerações do século XXI. Um dos seus estudos como etnólogo é sobre as crianças de uma pequena cidade da Borgonha. Eis o que diz delas:
"Creio que as crianças não são mais nossas crianças, que elas não são nem mesmo mais crianças como nós imaginamos que devem ser as crianças. Parecem bebês precocemente crescidos para os quais a informática serve de mamadeira".
E é para essas crianças, nascidas num universo com outras escalas, outras inteligências, outras percepções espaciais e temporais, que continuam a ser formados as novas escolas e os novos Aristarcos. Professores e diretores que mal conseguem manusear os ainda poucos computadores distribuídos aos presídios escolares - único programa que os tecnopedagogos do poder parecem ter em mente.
Computadores que em breve também serão consumidos nas chamas do velho ateneu.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Um passarinho em Brasília

Tenho um carinho especial por Brasília, cidade onde vivi no início dos anos 70, quando ela tinha apenas dez anos e eu menos que o dobro disso. Brasília está impregnada na minha memória, e ainda que eu não goste de escrever memórias, senão ler as dos outros, abro aqui uma exceção.
Ali cheguei para cursar a universidade, quase por obra de um acaso que me proporcionou, talvez, a mais rica experiência da vida. Caipira do interior de São Paulo e pouco viajado, a capital federal me pareceu o mais estranho dos lugares. Suas construções monumentais, entremeadas por imensos espaços vazios, lembravam pirâmides inabitáveis do deserto. Gramados secos e pequenas árvores retorcidas, aqui e acolá, completavam a paisagem desoladora para o forasteiro jovem e inexperiente.
Brasília foi, porém, um dos lugares mais acolhedores pelos quais passei. Nem tanto a cidade, onde nos perdíamos em suas lonjuras intermináveis, mas a Universidade de Brasília, aquele empreendimento fantástico do visionário Darcy Ribeiro, a quem nunca o Brasil conseguirá render as homenagens devidas.
Foi na UnB que comecei a conhecer o Brasil e um pouco do mundo. Naquele campus tive contato com um ambiente verdadeiramente universitário, composto por estudantes do sul ao norte. De nenhuma outra universidade eu viria a guardar esse mesmo sentimento, das muitas que conheci desde então. E olha que eram os tempos da mais violenta ditadura - os tempos de Garrastazu Médici. Apesar dele - apesar de você, general -, valia a pena estudar naquela universidade. Ali nós fazíamos nosso próprio mundo, um mundo do contra.
Em Brasília aprendi e fiz política, fui preso e tive medo, mas também alguma coragem. Nos primeiros dias em que estive no alojamento dos estudantes já recebi algumas lições que carrego até hoje. Entre elas, a tarefa de recordar a memória da grande resistência à ditadura em 1968 e de um dos seus principais líderes, Honestino Guimarães, ainda hoje tratado eufemisticamente como desaparecido político. A esse herói, assassinado pelos militares, me curvo aqui. Aprendi bem a lição, companheiros!
Durante a época da graduação me chamavam de passarinho por causa dos cabelos finos e espetados que sobraram do trote universitário. Não gostava nenhum pouco dessa alcunha, já desaparecida como os desaparecidos, mas hoje posso dela me orgulhar. Ao menos por quatro anos também voei pelos céus de Brasília. 
(Homenagem à capital da esperança no seu cinquentenário)       

terça-feira, 20 de abril de 2010

A fantasia de Helena

O título acima não tem nada a ver com a Helena do Manoel Carlos, embora pensando bem até possa ter. Andava eu a procurar algum poema ou alguma canção para dedicar a um amigo precisado, cujo nome, evidentemente, omitirei nesta página.
Foi fácil encontrar a bela canção que eu já conhecia e agora segue abaixo: Helena Helena Helena, composta por Alberto Landi e interpretada magnificamente por Taiguara, ambos já mortos. O primeiro, infelizmente pouco conhecido, foi assassinado no Rio de Janeiro em 2002. O segundo experimentou enorme sucesso com a gravação de Hoje e Universo no teu corpo, mas foi consumido por um câncer (1996) em plena maturidade artística.
Quando se fala de Taiguara, vêm à lembrança sua voz melodiosa e suas letras românticas. Mas ele foi, antes de tudo, um esquerdista combativo inúmeras vezes censurado pela ditadura. Em 1968, foi chamado a defender Helena Helena Helena no Festival de Música da Tupi, que incluiu em seu primeiro LP gravado em estúdio. Alberto Landi, o compositor da canção, era um jovem universitário igualmente romântico.
Daí nada demais, exceto perceber a persistência do romantismo no ambiente de vanguarda dos festivais universitários dos anos 60 e da própria esquerda estudantil. É um dos temas da pesquisa que, coincidentemente, venho fazendo há anos, mas que não interessa absolutamente neste blog.
O que eu queria era apenas dar um toque pra esse amigo e irmão. E se fizer algum sentido também a outros viajantes, sugiro que desliguem a razão e apenas ouçam esse velho sentimento fantasioso, como todo sentimento:

Talvez um dia, por descuido ou fantasia
Helena, Helena, Helena...
Nos meus braços debruçou
Foi por encanto ou desencanto
Ou até mesmo por meu canto ou por meu pranto
Ou foi por sexo ou viu em mim o seu reflexo
Ou quem sabe uma aventura ou até mesmo uma procura
Pra encontrar um grande amor

Mas hoje eu sei que um dia, por faltar telefonema
Helena, Helena, Helena...
Nos meus braços pernoitou
Foi por acaso, por um caso
Ou até mesmo por costume, pra sentir o meu perfume
Dar amor por um programa, dar seu corpo num programa
Hoje vai e nem me chama
Um adeus é o que deixou

Talvez um dia, por esperança ou ser criança
Deixei Helena, Helena...
Com seus braços me guiar
Fui sem destino, tão menino
E hoje eu vejo o desatino, estou perdido numa estrada
Peço ajuda a quem passa, tanto amor pra dar de graça
Todo mundo acha graça
Desse fim que me levou


Maria Helena e seus homens de renome
Entre eles fez seu nome
E entre eles se elevou
Foi sem amor, foi sem pudor
Mas hoje entendo o jeito desses pra salvar seus interesses
Dar seu corpo custa nada e com ar de apaixonada
Em suas rodas elevadas
Seu destino assegurou

Talvez um dia, por desejo de poesia
Helena, Helena, Helena...
Talvez queira dar a mão
Talvez tão tarde, até em vão
Quem saiba eu tenha um rumo à vista ou quem sabe eu nem exista
Ofereço este meu canto a qualquer preço, a qualquer pranto
Não quero amor, não se discute
Eu procuro quem me escute

segunda-feira, 19 de abril de 2010

O presente do gordo maldito

Teimoso como uma mula manca, e manco de verdade, ainda mais dos conselhos da razão, saio a dirigir com o tornozelo incompletamente recuperado. Ligo o toca CD e me surpreendo com um som que não conheço, mas me captura de imediato. Caraca, este disco não é meu, como é que veio parar aqui?
Resolvo deixar rolar esse toque de violão meio gitano, meio tango, que em duas ou três faixas vai acompanhado de uma bela voz masculina, meio blues, meio bolero. Não importa quem seja nem de onde veio. Será a trilha sonora enquanto rodo no intuito de escolher, na profusão dos assuntos que invadem meu espírito, um digno de acrescentar mais palavras vãs ao excessivo multitexto blogosférico.
Lembrei da canção de Chico Buarque e Paulinho da Viola, Sinal FechadoTanta coisa que eu tinha a dizer, mas eu sumi na poeira das ruas. Continuo o trecho: a começar aos amigos e amigas que visitam o blog e que mereceriam uma menção carinhosa. Por que vêm, por que vão? O que lhes dizer, como agradecê-los pelos comentários? ... Prefiro calar, o contrário pareceria pieguice ou chantagem emocional para prendê-los na minha rede.
Estaciono para um rápido café numa loja de conveniência e eis que algo me tira incovenientemente do sério: a capa da Veja com uma fotografia fakemente simpática de um conhecido indivíduo antipático, coroada pela manchete: José Serra e a era pós-lula. Cacete, taí o tema para o novo post. Vou demolir esse absurdo, cair de pau nessa falsidade... Não, não. Hoje a política não me satisfaz. Tou fora da espetaculosa vida real!
Volto, o som do carro continua. Suave, delicado, emocionado. De quem será? Não encontro a capa do CD. Ejeto o disco: é uma cópia pirata, sem identificação, a não ser um garrancho manuscrito: Salinas... Foi então que a memória funcionou. Deve ter sido esquecido aqui por meu filho, a quem emprestei o carro quando ainda não podia dirigir (se é que já posso)... Sim, é dele mesmo, estudioso de violão e de física, e se é dele deve ser bom.
Pronto, agora tenho assunto para o fim do domingão. Retorno ao ninho caseiro, corro à Net tendo em mãos aquela breve indicação manuscrita. Descubro que o tal do músico é Luis Salinas, guitarrista argentino atualmente radicado em Barcelona e considerado um dos grandes no cenário musical internacional. Tava certo meu filho ao incluí-lo no seu repertório de bom-gosto.
Mas o que me chamou a atenção foi um comentário anônimo, entre muitos igualmente elogiosos, deixado logo abaixo do vídeo disponível do músico no Yotube: Que talento tem esse gordo maldito! Tomo como minhas estas palavras. E por falta de outro assunto de maior relevância neste dia, só resta compartilhar com vocês o presente que esse gordo maldito, involuntariamente, me deixou ao cantar o bolero Cuenta conmigo. Faço coro a ele: contem também comigo!


sexta-feira, 16 de abril de 2010

Dez passos imortais

Decidi andar. Não esperei o novo exame médico marcado para a próxima semana. Empurrei a cadeira de rodas para longe, joguei uma das muletas e dei meus primeiros passos, embora devagarinho. E nem foi preciso apelar para o milagre do pastor da Igreja da Graça.
Simplesmente sai andando, como Roosevelt no filme Dez passos imortais (Sunrise at Campobello, EUA, 1960), que vi há muito tempo, acho que na televisão. Adaptada de uma peça da Broadway, a fita trata da biografia do lider norte-americano, vítima da pólio, durante o período da sua campanha para a presidência da república. Na convenção do partido, o paralítico Roosevelt se levantou e caminhou solenemente em direção ao microfone para o seu discurso triunfal. É o ápice do filme - me desculpem por contar o final.
Mas o meu objetivo, ao levantar, foi menos heróico. Fui ao shopping, como bom filho da sociedade do consumo espetacular. É verdade que por uma meta nobre: comprar livros, já que li todos os que tinha por perto durante esta longa convalescença. Esgotei os poucos volumes disponíveis de Freud ou sobre Freud, inclusive um intitulado Freud e Édipo (Peter L. Rudnytsky), instigante, porém, erudito demais para meus pobres conhecimentos. Larguei nas primeiras páginas o Vou chamar a polícia, de Irvin D. Yalom, um psicanalista que começou bem com Quando Nietzche chorou, mas caiu no lugar-comum depois do sucesso.
Quanto aos livros da bibliografia do curso, de sofrida filosofia, como mostrei nos posts anteriores, também já os havia devorado. E o único romance que restava no quarto, um não romance, acabara de fechar sua última página - o magnífico Quase memória, de Carlos Heitor Cony. Não sobrou nada nem para limpar os dentes deste leitor compulsivo, que além de tudo, fica impaciente com os textos breves dos blogs e os brevíssmimos (140 caracteres) do twitter.
Pois, então, lá fui ao shopping com meus lentos passos mortais, imaginando maravilhas literárias, filosóficas, psicanalíticas, históricas ou afins a jorrar das prateleiras como leite no deserto. Exatamente numa sexta-feira, dia de frenesi nesta califórnia sertaneja e em todas as califórnias globais onde fervem as megastores culturais. Quando perus e peruas da classe média, com seus gordos adolescentes enfastiados, desfilam celulares de última geração em busca dos vampiros crepusculares. Quando as desocupadas correm sofregamente atrás de receitas self-service para o corpo e a alma descalibrados. 
Não me importei com o festival de horrores. Nada seria capaz de desfazer esse momento de conquista. Ainda que manco e apoiado na muleta que sobrou, vaguei entre Zibias Gasparettos e seus espíritos se abrindo para a vida (além do mais, iletrados), abri e fechei best-sellers, os únicos produtos culturais adorados pelas massas cinzentas do progresso.
Eu mesmo apanhei um, o mais volumoso, e me diriji ao caixa entre pisões apressados das crianças mal-criadas. E assim tive meu entretenimento para os próximos dias: A vida secreta de Marilyn Monroe, de J. Randy Taraborrelli, sucesso total de vendas nos Estados Unidos de Roosevelt - aquele homem da cadeira de rodas que deu passos decisivos para a reestruturação do capitalismo.
Que bom. Um país se faz com livros.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Paixão e rebelião

"Nada pode dispensar a vida de ser absolutamente apaixonante" (G. Debord)

Prossigo na necropsia dos incorformistas. O corpo/espírito do dia é Guy Debord (1931-1994), autor do célebre livro A sociedade do espetáculo (1967), que também será discutido no meu curso da pós-graduação. A leitura de sua obra, juntamente com a de pensadores vindos por outros caminhos - como Hannah Arendt, Paul Virilio e Jean Baudrillard (ver posts anteriores)-, possibilita compreender o mais corrosivo diagnóstico já feito da sociedade contemporânea.
Embora a procedência e a decorrência das idéias de cada um sejam muito diferentes, o quarteto coincide na visão de uma humanidade contemporânea inteiramente alienada entre os artefatos da sua própria fabricação. Dessa verdade extraíram, no entanto, soluções bem díspares: a democracia inspirada no modelo grego antigo, sonhada pela discípula de Heidegger; o pacifismo como única alternativa à guerra total, para o urbanista francês; e o profundo niilismo, no caso do teórico do simulacro universal.
Debord, por sua vez, buscou incansavelmente encontrar brechas de rebeldia vital entre os entediados contempladores das imagens políticas, produtivas e de lazer pelo globo afora. Foi o único dos citados a partir da herança de Marx, o Marx hegeliano, relido à luz de Lukács. Permaneceu, porém, estranho e marginal não só às correntes políticas da sua época (os comunistas do P.C.F, os trotskistas, os maoístas, os anarquistas), como também ao circuito acadêmico e editorial francês.
Criou a Internacional Situacionista, sempre composta de grupos minúsculos que, entretanto, provocou numerosos escândalos políticos, situações de caso pensado, antes, durante e depois de 1968. Fez questão de se manter no anonimato, mas foi recuperado, a posteriori, como profeta e artífice da rebelião estudantil daquele ano, ainda que nem estudante tivesse sido. Foi, essencialmente, um expoente da rebeldia boêmia que marcou época e deixou sérias sequelas numa cultura que separa vida e aparência.
Se estranho foi, mais estranho ainda será a exposição da sua paixão na sociedade do espetáculo universitário.



segunda-feira, 12 de abril de 2010

O bruxo de Matrix

Outro dos meus pensadores prediletos, também escolhido para debater no curso, é o bruxo Jean Baudrillard, que já partiu para o inferno sideral (2007), mas enquanto vivo assustou muitas criancinhas ingênuas e bem-intencionadas do nosso mundo acadêmico.
Suas idéias são próximas às de Paul Virilio, embora o iconoclasta fosse ainda mais pessimista que o primeiro. Enquanto o teórico da velocidade aposta(va) no pacifismo como forma de deter a máquina tecnológica descontrolada, Baudrillard não oferecia qualquer alternativa de redenção ao mundo tecnocrático.
Sociólogo, poeta e fotógrafo, seu primeiro estudo foi O sistema dos objetos (1968), inspirado na obra de Roland Barthes. A partir desse livro ele ampliou sua reflexão sobre a a perda de referência do real na cultura contemporânea. Pensador eclético e profético, Baudrillard não deixou pedra sobre pedra. Demoliu tudo o que forma nossa vã filosofia fim de século XX: democracia representativa, comunismo, crença no social e na tecnociência, maravilhas da internet, espetáculos de guerra e do terrorismo. Reduziu as instituições e o imaginário moderno ao universo da pura simulação. Bem ou mal, sua obra gerou até Matrix, um dos nossos últimos cults cinematográficos, igualmente reduzido às cinzas do simulacro universal.
Prá que discutir sua obra, especialmente a que fala do fim do social, caraca? Ainda mais em ano eleitoral, quando eu mesmo estou mais que contraditoriamente engajado no debate político em curso? Que figura confusa sou? Ora, não me peçam coerência. Estarei sempre dividido entre o otimismo da vontade e o pessimismo da razão. É o que posso.

"Todo o confuso amontoado do social se move em torno desse referente esponjoso, dessa realidade ao mesmo tempo opaca e translúcida, desse nada: as massas. Bola de cristal das estatísticas, elas são ‘atravessadas por correntes e fluxos’, à semelhança da matéria e dos elementos naturais. Pelo menos é assim que elas nos são representadas. Elas podem ser ‘magnetizadas’, o social as rodeia como uma eletricidade estática, mas a maior parte do tempo se comportam precisamente como ‘massa’, o que quer dizer que elas absorvem toda a eletricidade do social e do político e as neutralizam, sem retorno. Não são boas condutoras do político, nem boas condutoras do social, nem boas condutoras do sentido em geral. Tudo as atravessa, tudo as magnetiza, mas nelas se dilui sem deixar traços. E na realidade o apelo às massas sempre ficou sem resposta. Elas não irradiam, ao contrário, absorvem toda a irradiação das constelações periféricas do Estado, da História, da Cultura, do Sentido. Elas são a inércia, a força da inércia, a força do neutro. É nesse sentido que a massa é característica da nossa modernidade, na qualidade de fenômeno altamente implosivo, irredutível a qualquer prática e teoria tradicionais, talvez mesmo irredutível a qualquer prática e a qualquer teoria simplesmente. Na representação imaginária, as massas flutuam em algum ponto entre a passividade e a espontaneidade selvagem, mas sempre como uma energia potencial, como um estoque de social e de energia social, hoje referente mudo, amanhã protagonista da história, quando elas tomarão a palavra e deixarão de ser a ‘maioria silenciosa’ – ora, justamente as massas não têm história a escrever, nem passado, nem futuro, elas não têm energias virtuais para liberar, nem desejo a realizar: sua força é atual, toda ela está aqui, e é a do seu silêncio. Força de absorção e de neutralização, desde já superior a todas as que se exercem sobre elas. Força de inércia especifica, cuja eficácia é diferente da de todos os esquemas de produção, de irradiação e de expansão sobre os quais funciona nosso imaginário, incluindo a vontade de destruí-los. Figura inaceitável e ininteligível da implosão (trata-se ainda de um processo?), base de todos os nossos sistemas de significações e contra a qual eles se armam com todas as suas resistências, ocultando o desabamento central do sentido com uma recrudescência de todas as significações e com uma dissipação de todos os significantes, O vácuo social é atravessado por objetos intersticiais e acumulações cristalinas que rodopiam e se cruzam num claro-escuro cerebral. Tal é a massa, um conjunto no vácuo de partículas individuais, de resíduos do social e de impulsos indiretos: opaca nebulosa cuja densidade crescente absorve todas as energias e os feixes luminosos circundantes, para finalmente desabar sob seu próprio peso. Buraco negro em que o social se precipita.”
Jean Baudrillard – À sombra das maiorias silenciosas

sábado, 10 de abril de 2010

Janela indiscreta

Esta parada imprevista que a sorte me destinou tem sido providencial para reler um dos meus pensadores prediletos desde os anos 80: Paul Virilio, autor, dentre outros, do livro Guerra e cinema, que selecionei para discussão no curso em Assis. Teórico das conexões entre velocidade, tecnologia, política e guerra, este arquiteto, urbanista e pacifista francês, nascido em 1932, desvenda em sua obra a vertigem absurda da vida contemporânea. Vertigem desencadeada pela aceleração de todos os processos artificiais criados pelo homem.
E é engraçado perceber como a fratura de um simples tornozelo nos torna, por uns dias, inteiramente estranhos a esse mundo desenfreado. Inesperadamente, somos relegados à imobilidade, situação que, entretanto, não proporciona a quietude da contemplação do cosmo, como os gregos pregavam, nem a fuga eremita para o deserto, como aquela que os cristãos antigos empreendiam. Deserto e cosmos são hoje espaços saturados de máquinas e imagens invasoras, espiados pelos milhões de satélites espalhados na terra e nos ares. Eu mesmo sou um desses espiões. Estrategicamente postado neste laptop bélico, sou fadado a transformar minha meditação solitária numa viagem coletiva alucinada por lugares ininterruptamente devassados.
Resta apenas o estranhamento, a perplexidade, a ausência de uma resposta para o inevitável e daí. Sei que Virilio é um pensador cético em relação à tecnologia moderna, nela incluindo a internet. Sua aparição, segundo ele, é uma das mais eloquentes expressões da guerra total que nos move e mobiliza a uma espécie de precipício. Sei também que outros autores do curso verão na tecnologia moderna exatamente o contrário disso - um veículo para a reinstauração das utopias democráticas universais. Dirão ainda que o urbanista francês é apenas mais um dos apocalípticos na cena filosófica desde o final do século passado.
Caros alunos, se lerem este post, só posso dizer que não facilitarei o problema com alguma conclusão. A única coisa que consigo deduzir é que, pelo menos uma vez na vida, quebrar o tornozelo tem a vantagem de dar um tempo para leituras como a que ora faço, mesmo que elas não ofereçam qualquer resposta. Aconselho a todos. 


quinta-feira, 8 de abril de 2010

Filosofia de muletas

Dia 22 deste mês começo minha parte no curso de pós-graduação em História (Assis) sobre o ler, o escrever e o pensar no mundo da cibercultura (título que ficou meio bobo diante do que foi, posteriormente, proposto para debate). A primeira parte do programa foi dada pela minha colega Tania Regina de Luca, que optou por uma abordagem mais propriamente histórica da questão. Quanto a mim, que sou um tanto cético em relação à capacidade reflexiva do saber histórico, malgrado seja profissionalmente um historiador, escapei para uma ênfase filosófica, se é que se possa chamar por esta designação a filosofia de pés quebrados, precária e transitória, característica da atualidade. E para bem representar nossa condição humana no presente momento lecionarei também de muletas.
Por falar em condição humana, este é o nome da primeira obra a ser discutida no curso, pela qual Hannah Arendt trouxe à luz, de forma pioneira, uma reflexão decisiva sobre o mundo inteiramente artificial profuzido pelo homem moderno. Um mundo rebelde à própria existência humana, do qual o ciberespaço é uma das suas manifestações. Segundo a filósofa, "o mundo - artifício humano - separa o homem de todo ambiente meramente natural; mas a vida, em si, permanece fora desse mundo artificial, e através da vida o homem permanece ligado a todos os outros organismos vivos. Recentemente, a ciência vem se esforçando por tornar artificial a própria vida, por cortar o último laço que faz do próprio homem um filho da natureza".
Estas palavras proféticas foram escritas em 1958, quando o homem ainda não chegara à lua e nem os bebês de proveta à terra. De lá para cá, a tecnociência avançou de forma avassaladora na criação do mundo artificial, a ponto de se falar, nos dias de hoje, não mais da condição humana, mas da geração de uma pós-humanidade.
É isso que pretendemos sondar apelando à nossa atual filosofia de muletas, notoriamente aquém dos desafios da hiperrealidade presente. Teremos de ler vários outros textos, ora otimistas ora pessismistas quanto ao futuro/que já é, mas não sei aonde poderemos ir. Apesar disso, vamos juntos debater, ainda que apoiados em rudimentares aparelhos ortopédicos enquanto sonhamos com as próteses modernas dos cyborgs.
E embora este não seja, como tantas vezes tenho dito, um blog institucional ou acadêmico, divulgo excepcionalmente aqui a bibliografia do curso para quem quiser fazer bom uso dela no ciberespaço:

VIRILIO. Paul. Guerra e cinema. São Paulo: Scritta Editorial, 1993.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1983.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
BAUDRILLARD, Jean: À sombra das maiorias silenciosas: o fim do social e o surgimento das massas. São Paulo: Brasiliense, 1985.
LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola, 1998
NOVAES, Adauto (org.). A condição humana: as aventuras do homem em tempos de mutações. Rio de Janeiro: Agir; São Paulo: Edições SESC SP, 2009.

terça-feira, 6 de abril de 2010

segunda-feira, 5 de abril de 2010

O cara e a coroa

A entrevista do cara quebrou o tom mornofantástico do domingo de Páscoa. Diante do semblante estupefato, surpreso e um tanto baboso de um grupo de jornalistas experientes, Lula brilhou com desenvoltura e segurança na tela da Band. Em final de mandato, dono de imensa popularidade, tratou de temas difíceis e espinhosos: finanças globais, economia nacional, política externa e interna, democracia, sindicalismo, educação, questões sociais e outros.
Esse é o cara. Muito diferente do outro cara, com cara mais de coroa (que imagina ter na cabeça) e suas choramingas tradicionais líberopaulistas, mais uma vez expostas nos jornais no mesmo final de semana.
Os textos indicados a seguir, publicados em blogs parceiros, analisam muito bem o conteúdo dessas duas entrevistas recentes e os distintos projetos em disputa no cenário eleitoral de 2010. Vale a pena conferir:

http://blogdeumsem-mdia.blogspot.com/2010/04/politica-entrevista-do-lula.html
http://botekovermelho.blogspot.com/2010/04/lula-da-aula-de-politica-e-democracia.html
http://saraiva13.blogspot.com/2010/04/politica-fhc-o-neoliberalismo-dos.html
http://contrapontopig.blogspot.com/2010/04/contraponto-1823-fhc-o-neoliberalismo.html

domingo, 4 de abril de 2010

Disritmia

Hoje não tem texto. Texto exige assunto. E assunto exige movimento, acontecimento, um evento qualquer capaz de quebrar a repetição do mesmo. Neste domingo o mundo parece ter parado.  A Páscoa parou o mundo. Num silêncio que só é quebrado pelo farfalhar das folhas dos ovos de chocolate. 
Em verdade, não há silêncio. Há, sim, muito ruído, muito movimento, eventos demais, só que regidos por certa irregularidade epiléptica, difícil de definir, descrever, caracterizar.
Nos anos 70, Martinho da Vila compôs uma canção denominada Disritmia. Gostava demais dessa música, agora regravada por Zeca Baleiro com um arranjo igualmente disritímico. Linda, linda, que deixo para quebrar o silêncio e o ritmo de vocês:

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Cristo, o demasiado humano?

Desde a morte de Deus, no século XIX, Cristo vem sendo progressivamente despojado do seu império e reduzido à condição humana vulnerável e insatisfeita. Uma projeção do próprio homem que o criou e contra ele se rebelou. Não há saída, o criador sempre assassina sua criatura. Do vulto soberano de Cristo só restaram as imagens aterrorizantes de Mel Gibson e o Jesus eletrônico, terapeuta espetacular, na tela da Record a cada sexta-feira santa.
O simulacro da vida diária dispensa vidas tormentosas e mistérios gozozos. No mundo já revelado pelo indivíduo - e não por qualquer entidade suprassolar -, o gozo nada tem de sagrado, doloroso ou secreto. A não ser na pena de eventuais e solitários neo-evangelistas, do tipo Saramago, Pasolini ou Scorsese, que de vez em quando, ainda tentam cobrir de véus sua carne nua.
Nos rituais e discursos sobreviventes da Idade Média, o ser Cristo nascera na terra para experimentar e expiar os pecados da humanidade. Conservava-se, porém, acima de todas as tentações dos seres comuns, nós, que éramos, sim, os culpados da sua paixão. A partir dos tempos modernos não temos mais esse álibi: somos os responsáveis por nossas paixões, por nossos erros, por nossos pecados. E o próprio Cristo restou só, como todo homem.
Tal drama é retratado em três filmes, três diferentes interpretações do drama bíblico, todos fascinantes: O evangelho segundo São Mateus, de Pasolini (1964), Jesus Cristo superstar, de Ted Neeley (1973) e A última tentação de Cristo, de Martin Scorsese (1988), baseado na novela homônima do grego Nikos Kazantizakis. O Cristo de Pasolini é revolucionário, como comunista era o seu inventor. O segundo é hippie, como era hippie a última utopia do nosso tempo. O terceiro é só um indivíduo, destronado de ideologias, cético das doutrinas, como é a nossa época. Cristo tornou-se, assim, apenas o espelho de determinadas circunstâncias históricas.
Prefiro o último Jesus, o Jesus das nossas tentações, mas não creio em sua salvação nem na nossa.