quarta-feira, 31 de março de 2010

Os reacionários paulistas no golpe de 64

Como o general Olympio Mourão Filho, resolvi antecipar o golpe de 1964, melhor dizendo, sua comemoração. O correto seria escrever amanhã, data verdadeira da efeméride, mas preferi fazer coro aos militares e não sugerir que o dia da tão gloriosa revolução redentora coincida com o primeiro de abril. É, mas o que poderia ser uma mera piada de mau gosto, própria ao dia da mentira, resultou para o país numa tragédia que perdurou por mais de duas décadas. Não vale, então, qualquer brincadeira.
Hoje, que Serra deixou o Palácio dos Bandeirantes todo pomposo para a campanha presidencial, é bom lembrar aos brasileiros, e particularmente aos paulistas defensores do progresso e da justiça social, que ele representa exatamente aquele setor conservador que pediu e apoiou o golpe militar contra João Goulart. Embora ele estivesse, naquela altura, no palanque em que o presidente da República defendera as reformas de base - muitas das quais tiveram que ser retomadas por Lula quarenta anos depois -, sua posterior carreira política estabeleceu sólidos vínculos com os setores reacionários e conservadores de São Paulo.
Nesta terra, minha gente, formou-se uma burguesia que tomou de assalto a República até 1930 e, desde então, mesmo tendo perdido o controle do poder central, sempre significou uma força contrária aos projetos de distribuição da riqueza social. Em 1932, ela tentou derrubar Vargas pelas armas, e dai em diante nunca titubeou quando se tratava de defender interesses mesquinhos. A ideologia da democracia paulista, da locomotiva do Brasil, da epopéia bandeirante - cuja formação estudei detidamente no livro com idêntico título -, serviu de suporte interno para a garantia do apoio das classes médias e dos grupos imigrantes ascendentes aos seus propósitos políticos.
Em 19 de março de 1964, com o apoio da FIESP, do clero católico local, do governo de Adhemar de Barros, dos deputados estaduais e federais e, principalmente, da União Cívica Feminina, os reacionários paulistas (assim mesmo autoproclamados) realizaram a Marcha da Família com Deus pela liberdade, de fato, uma manifestação golpista que deu ânimo aos militares para apressarem sua conspiração. Tiveram amplo apoio da mesma imprensa, que hoje chamamos de PIG -, de Carlos Lacerda, o corvo, do presidente do Senado e toda uma corja que em breve seria varrida pelos generais, à parte aqueles que não representavam nenhum perigo e podiam ser facilmente cooptados em troca de banana.
Da Praça da República à Praça da Sé, os paulistas e as paulistas reacionárias da classe média gritaram Um, dois, três, Brizola no xadrez, Trinta e dois mais trinta e quatro é sessenta e quatro (sic), Nossa Senhora Aparecida, iluminai os reacionários e outros slogans travestidos de democráticos. Coroaram sua odienda manifestação com uma missa campal rogando que Deus livrasse o Brasil dos comunistas.
É essa mesma classe média que constitui o eleitorado de José Serra, aquele que traiu o ideal das reformas de base e hoje representa o que há de mais anacrônico do poder conservador paulista. Os brasileiros devem ficar alertas para a imensa batalha que virá pela frente . Os velhos reacionários de 1932 e de 1964 estão de volta.

terça-feira, 30 de março de 2010

Música barata

Um amigo meu, que se preparava para ir ao show de um famoso astro da MPB, me perguntou dias atrás como eram as apresentações musicais nos anos 70. Achei estranha a indagação, ainda mais porque me colocava na posição de fonte histórica do passado. Além disso, porque não gosto muito desse negócio de depoimento, que lembra polícia, testemunho de igreja neopentecostal ou confissão de alcóolico anônimo, compulsivo de sexo e outros.
O fato é que a pergunta veio mesmo a calhar, pois, coincidiu com uma das leituras que eu fazia sobre a cultura jovem dos anos 60 e 70, tema que começo a pesquisar para um próximo livro. A leitura em questão era Tropicália, organizado por Sérgio Cohn e Frederico Coelho, que contém um extenso conjunto - também de depoimentos, só que dados no calor da hora, isto é de 1967 a 1972 -, do que de mais significativo havia na cena cultural da época. A obra traz registros de um time de primeira, formado por compositores, críticos, cineastas, dramaturgos, maestros e arranjadores, escritores e poetas, como por exemplo: Torquato Neto, Gilberto Gil, Nelson Motta, Zé Celso, Augusto Campos, Hélio Hoiticica, Caetano Veloso, Rogério Duprat, Chico Buarque, Capinam, Tom Zé, José Agripino de Paula, Rogério Sganzerla e Glauber Rocha.
Os textos demonstram a grande importância que então se depositava na cultura, particularmente na música, para o desenvolvimento do país. Debatia-se se havia um MPB verdadeira, como ela podia incorporar a produção internacional sem se descaracterizar, qual o seu papel na formação dos jovens, como fazer arte no mundo industrial, pronto a transformá-la em simples mercadoria. O próprio artista se sentia - um tanto constrangido, é verdade -, como portador de uma palavra de extremo valor junto ao público. Especialmente, de um público impossibilitado de se expressar de outras maneiras pelo regime ditatorial.
E nisso não estava errado. Aguardávamos o disco do ano de Chico Buarque como o fiel esperava o sermão na missa de domingo. Tudo parecia ter um significado especial: que mensagem cifrada estava lá naquela capa, como decifrar as entrelinhas da letra da canção? Ou, no caso de Caetano Veloso, que coisa inovadora, irreverente, inusitada, que ruptura viria em seu próximo disco? Mesmo na época da grande desilusão, ou do grande desbunde, era a palavra underground que continuava a soar como profecia. E assim os astros conservavam sua aura.
Sei que me desviei da pergunta inicial, por impossibilidade de respondê-la. A única coisa que posso dizer é que o artista daqueles tempos, seja nos discos ou nos shows, era objeto de reverência e respeito quase religiosos. Diferentemente da profanação a que é hoje submetido, meu amigo, profanação que envolve toda mercadoria. Não estranhe, portanto, que aquele astro famoso e cult do show que você assistiu seja desafiado pelos jovens universitários a dançar um créu. Ele não tem nada a dizer, nem o público quer ouvir.

E como homenagem àqueles artistas-profetas, deixo este belo clipe de Vapor Barato (Jards Macalé e Wally Salomão):

domingo, 28 de março de 2010

Serra no divã

Acho que andei lendo Freud além da conta. Minutos atrás fechei a última página de Leonardo da Vinci e uma lembrança da infância/ O Moisés de Michelângelo, obra que mais uma vez revela a inteligência, a intuição e a clareza analítica do pai da psicanálise.
Mas enquanto seguia essa pesquisa da subjetividade dos dois grandes artistas do Renascimento, me indagava se o mesmo método poderia ser aplicado para compreender os fatos psicológicos de um personagem mais próximo de nós, cuja ação nos afeta diretamente: José Serra, atual governador do Estado de São Paulo e candidato a presidente do Brasil.
Com um olho no livro e outro no noticiário da tv e do twitter, me indagava que forças desconhecidas atuam na cabeça desse homem sabidamente movido por uma extrema ambição política que o leva a usar meios vis e cruéis para atingir seus objetivos, tais como o conluio com a mídia golpista e a fabricação de dossiês infamantes? O que acontece na mente desse sujeito conhecido ainda por lidar com enorme frieza em face da impopularidade e das situações políticas desfavoráveis ao seu projeto maior? Como é que se moldou tal personalidade, que conflitos infantis, que espécie de gozo perverso ele repete em seus atos?
Nada se conhece desse território obscuro. O que não se ignora, porém, é a metamorfose radical do seu perfil político, marcado por passagens de um pólo ideológico a outro: da presidência da UNE ao Palácio Neoliberal Bandeirante, do exílio subversivo ao poder conservador, da esquerda radical à direita truculenta. O que não é possível esconder é sua defesa, 46 anos atrás, de propostas políticas, valores sociais e princípios éticos inteiramente distintos dos que defende atualmente. O que é transparente é seu atual divórcio do compromisso com os desfavorecidos e a justiça social, proclamados na tribuna em 13 de março de 1964, ao lado de Jango, Miguel Arraes e Leonel Brizola. O que salta aos olhos é sua capacidade de reprimir violentamente uma manifestação de professores e alunos, na qual marchava, entre outros, o presidente daquela mesma entidade estudantil que presidira, seu sucessor na história das lutas pela melhoria do ensino.
Quem era e quem é o verdadeiro Serra? Ora, Antonio Celso, que ingenuidade! Leia um pouco de Maquiavel. Largue mão desse idealismo babaca, desse cristianismo hipócrita. Política é assim mesmo! Coerência, que besteira estapafúrdia!
Sei lá. Pode ser. Acho mesmo que andei lendo Freud demais. E que talvez não valha a pena gastar vela com defundo pagão, melhor é voltar para grandes homens como Da Vinci e Michelângelo, cujas contradições, incoerências e conflitos internos se manifestavam através da arte - sublime arte. Mas que tem coisa escondida naquela personalidade desumana, insensível e ambiciosa, ah, disso não tenho dúvida.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Da monstruosidade humana e outros espetáculos

Neste exílio para recuperaçâo da saúde, o mundo real parece absurdo e delirante. A começar pela tv, que se tornou a expressâo mais acabada e hiperbólica daquilo que Guy Debord chamou de sociedade do espetáculo. E nem me refiro ao BBB, aos pastores eletrônicos, ao noticiário político sob controle do PIG, ou à ausência de informaçôes a respeito da greve dos professores e da situaçâo da escola pública. O espetáculo do dia é o caso Nardoni, que demonstra cabalmente como uma tragédia é banalizada pelo bombardeio mercadológico, e assim esvaziada da sua funçâo catártica, necessária ao trabalho de luto e à reflexâo sobre a condiçâo humana - uma das bases constitutivas do Direito.
Mas nâo é hora de falar desse tipo de mídia. Minha cabeça prefere estar em outros lugares, ainda que integrantes do universo espetacular. Pois é: terminei de ler o livro  Como a geraçâo sexo-drogas-e rock'n'roll salvou Hollywood, de Peter Biskind, anunciado em post anterior. Fiquei satisfeito com o trabalho, que mostra como um punhado de jovens talentosos, ousados e sonhadores tentaram criar uma nova cinematografia nos Estados Unidos, mas foram destruídos pelo sistema - velho jargâo esquerdista que, acredito, ainda vale como categoria de crítica. 
O autor acompanha passo a passo a carreira, a vida e os filmes de diretores que, inspirados na melhor experiência européia, pretenderam desenvolver o cinema autoral na Hollywood dos anos 60 e 70. Deram, evidentemente, como os burros n'água, apesar dos antológicos filmes que deixaram e dos milhôes de dólares que, eventualmente, ganharam e investiram em cocaína e orgias. Os principais foram Robert Altman (M*A*S*H, Voar é com os pássaros, Nashville), Peter Bognadovich (A última sessâo de cinema, Lua de papel), Francis Ford Coppolla (Caminhos mal traçados, O poderoso chefâo, Apocalipse Now), Dennis Hopper (Sem destino, The last movie), Paul Schrader (Vivendo na corda bamba, Gigolô americano), Martin Scorsese (Caminhos perigosos, Alice nâo mora mais aqui, Taxi driver, Touro indomável), Warren Beatty (O céu pode esperar, Reds), Hal Ashby (Ensina-me a viver, Amargo regresso, Muito além do jardim). Desta lista ainda poderiam fazer parte amigos de uma mesma geraçâo sonhadora, como George Lucas e Steven Spielberg, que embora talentosos, sucumbiram mais facilmente, sobretudo o último, aos encantos do sistema.
Longe de mim a presunçâo de analisar o conteúdo e a forma dessas obras, ou ainda suas mensagens críticas, expressâo comum àquela época. De qualquer modo, e segundo Peter Biskind, elas participaram do esforço de rebeldia de toda uma geraçâo de artistas que se viram, nas décadas seguintes, atolados no cinema meramente comercial, outra vez triunfante até nossos dias. 
Apocalipse Now talvez seja a obra emblemática dessa safra de criadores. Projetada como um registro surrealista - nas palavras do seu diretor -, realizada nas Filipinas com o dispêndio de cifras astronômicas e praticamente sem roteiro, o filme expressa o delírio de um diretor que buscou, a todo custo, deixar uma marca pessoal, mesmo que contraditória, da sua existência alucinada no universo alucinado dos espetáculos de alta reprodutibilidade técnica.
Os megalomaníacos Coppola, Coronel Kurt e Marlon Brando sâo os mesmos do espelho de um mundo delirante, maior que a tv e o caso Nardoni. Retiro-me ao exílio para rever este que ficou como o exemplo máximo da artística monstruosidade humana:

quarta-feira, 24 de março de 2010

O bandido da cadeira de rodas

O cadeirante chega para fazer o chek-in. A loira entediada, com cara de poucos amigos: -o senhor foi operado? Diante da resposta afirmativa: - entâo preciso da declaraçâo do médico liberando o sr. para viajar. - Nâo tenho, na hora nâo pensei nisso, só conversei com ele uma vez no pós-operatório, conversa de um minuto quando ele me deu alta, nem o médico prescreveu coisa em contrário. Na hora da compra da passagem falei da cirurgia, pedi cadeira de rodas, ninguém exigiu tal papel. Faltam 45 minutos para o vôo. A loira tingida, de novo - Nâo posso fazer nada, sâo os procedimentos. O cadeirante: minha senhora, foi uma cirurgia simples, o vôo será de 40 minutos, nâo há problema, estou bem, sou forte, nâo sinto nada. Posso assinar uma declaraçâo me responsabilizando por tudo. A loira entediada: - Sâo os procedimentos, senhor! O cadeirante: - por favor, quero falar com o gerente, algum superior. A loira entediada: - Os procedimentos sâo esses sr. O cadeirante: - O que vocês vâo fazer comigo? Terei de voltar para o apartamento? Quem vai cuidar de mim já que nâo posso andar? O tempo tá passando, chame o seu superior - e já irritado - nâo quero falar com a senhora que parece um robô com esses procedimentos. Já fui chefe, sei que sempre há uma soluçâo, seja humana, o meu caso nâo é grave. A loira entediada: Nâo posso fazer nada, senhor! O ódio já crescia nas entranhas do cara, ele que conhecia bem funcionários subalternos, mais realistas que o próprio rei, ele que quando diretor teve trezentas vezes de resolver conflitos criados por subchefetes cheios de pequenos poderes, ociosos, sempre de tpm. Queria gritar "loira burra de tpm", mas nâo podia. Era contra os procedimentos politicamente corretos do sistema incógnito. Era contra as convicçôes políticas generosas que carregava consigo, lembrou sua irmâ que o levara ao aeroporto e tinha de voltar ao trabalho, já em prantos diante da dureza da loira burra entediada de tpm e do poste da TAM, seu par ao lado, funcionário impassível também treinado para repetir - Senhor, vamos estar tentando resolver seu problema, aguarde o supervisor. Do fundo da sua racionalidade, o cara queria ser generoso politicamente, afinal, eles trabalham muito e ganham pouco, nâo tem culpa do sistema, como relembrou sua irmâ. Mas eu odeio o gerundismo desses pobres poderosos robôs de tpm, disse seu instinto de defesa! Dez minutos depois, e em face de mil argumentos, vou chamar a polícia, vou processar a TAM, o chefete finalmente chega e pede ao cadeirante o telefone do médico. Volta para o interior do escritório com o papel retirado da mala aberta diante do público, estendida ao châo com cuecas, meias, bermudas e outras intimidades, e 30 minutos depois retorna: - nâo encontro os médicos, um está num congresso em Londres, outro em congresso no Recife. Sinto muito, o sr. nâo poderá embarcar. O ódio cresce no peito. A barata de Kafka sobrevoa o balcâo. O insustentável peso do ser invade o corpo como um kundera cruel. A voz já é grito, a pressâo sobe. O mundo já é um triller de um dia de câo. O cadeirante já é um bandido de luz vermelha. Um pequeno tumulto se forma torno do cadeirante. Uma perua e um peru de classe média querem que a fila avance, ela quase pisa na perna quebrada do aleijado. O tempo se esgota cada vez mais rápido. A cena ainda é presenciada por uma amiga do cara, no tempo da graduaçâo, hoje celebridade acadêmica, que ele nâo via tem dez anos. Mico. Ódio terrorista. - Quero água, quero mijar! pede o cadeirante. - Sou livre, cês nâo podem me deter desse modo, nâo sou propriedade de nenhum médico......Afinal, um carregador empurra o cara ao ambulatório médico às pressas para uma avaliaçâo do plantonista. A palavra final será dele, o poder médico, o biopoder foucaultiano. Corre com aquele corpo no meio da aglomeraçâo, berra, pede passagem em meio a malas e badulaques dos viajantes, percorre os infinitos corredores lotados. E sussurra ao cadeirante: - minta, nâo diga ao médico que o sr. foi operado, diga apenas que tem a perna engessada! E na corrida louca, o cara e sua perna aríete, sua perna fálica apontada como uma bazuca, uma bomba de alto poder, uma metralhadora giratória pronta a destruir o sistema inteiro: a loira burra tingida de tpm entediada robótica, o poste desumano impassível e impávido colosso, os procedimentos do politicamente correto, a frota inteira da aviaçâo, todos os gerúndios copiados dos americanos e suas torres gêmeas...fuck you fuck you... e o cadeirante bandido sorri de amor por bin laden, por todos os terroristas sem propósito, senâo essa vontade louca de explodir aeroportos e prédios, as malditas estruturas que impedem o homem de voar.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Avulsos 2

Grandes Camila, André, M. Caleiro, Roelf (que reencontrei em texto), P. Laurindo, Tauamng e todos os parceiros da nossa inteligência coletiva, que ainda apenas dá os seus primeiros passos, mesmo com pernas quebradas e com outras dores tipo Leminsky, e outras sacanagens, tipo macunaima, ou outras utopias meio muletas sem pé no châo, e mais outros e outras grandes que dâo as caras como seguidores neste circuito estratosférico e cibernético chamado blogosfera, diluidor das hierarquias dos seguidores-seguidos, líderes-liderados, todos e todas comuno-anarco-socialistas-cristo-budistas, meu muito obrigado e grande abraço, enquanto vou pensando noutro post sobre livros e filmes que farâo minha cabeça enquanto descanso e sigo o caso Nardoni, enquanto nâo posso ir à passeata dos professores marcada para a próxima semana diante do Palácio dos Bandeirantes, aos quais deixo minha solidariedade e etc e tal neste post desistilizado de um minuto ...

domingo, 21 de março de 2010

Blog no hospital

Amigos e amigas. Por esta eu nâo esperava, na verdade ninguém espera. Um escorregâo na calçada, uma queda, dores horríveis.... pronto....fraturei o tornozelo esquerdo. Com a ajuda da familia, fui levado ao hospital, donde vos escrevo depois de uma cirurgia.
Já estou bem, espero ter alta em breve, mas, como será a recuperaçâo? Quando poderei andar, trabalhar, viajar? Por quanto tempo usarei muleta? O terrível desta experiênciência é que, de um instante para outro a pessoa se percebe dependente de outros, vulnerável, incapaz de definir o rumo da própria vida. Toda onipotência esmigalha como um osso qualquer.
Felizmente tenho este blog, que ficará aqui do meu lado como um câo fiel. Até mesmo no hospital 

sexta-feira, 19 de março de 2010

A herança de Elis



Ela estava lá pela milésima vez. E pela milésima vez vi ontem a reprise de Elis Regina na TV Cultura. Com uma ponta de saudade, embora em luta contra toda forma de saudosismo, que racionalmente abomino. Sei que nenhum passado é melhor que o presente, nem o contrário. São tempos sempre incomparáveis entre si, só isso. Mas que Elis era melhor, não tenho a menor dúvida. Sobretudo a Elis já refinada pelo tempo, pelo jazz, pela vida e pela cocaína. Aquela capaz de cantar para um futuro redimido, sabendo, do fundo do coração, que ele também seria apenas o palco de um outro tipo de falta. Que esta será a herança inescapável.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Sarney também dá arte

A figura de José Sarney é inseparável do mundo da política e das artes, ou melhor, das artes institucionais. Pouco se sabe das suas origens, a nâo ser que nada tinham de aristocráticas. Reza a lenda que o sobrenome Sarney, oficialmente incorporado por ele como homenagem a seu pai, deriva da pronúncia popular enviezada de Sir Ney - um inglês que teria deixado amplo ramo bastardo no Maranhâo, do qual o imortal descenderia. 
Assim como outros homens de berço humilde, José abriu seus caminhos rumo à notoriedade através das letras. Na década de 1950, fez parte de um grupo modernista que pretendia nâo só renovar a literatura local, equiparando-a à moderna literatura nacional, como também restaurar o prestígio intelectual de Sâo Luís do Maranhâo, que no final do século XIX fôra chamada de Atenas brasileira. Outro dos expoentes desse grupo foi Ferreira Gullar, poeta de inegável qualidade e hoje um conservador em matéria de política, como a maioria dos seus parceiros do antigo PCB, atualmente PPS.
A carreira política de Sarney confirma bem o ditado popular: em terra de cego quem tem um olho é rei. Com sua boa retórica em terra de iletrados, ele logo ganhou popularidade, tanto que, depois de algumas legislaturas, elegeu-se governador. Bem relacionado com artistas e intelectuais, contratou Glauber Rocha, um esquerdista insuspeito, para documentar sua posse no Palácio dos Leôes. Naquela época, seu nome ainda era associado à luta das novas geraçôes para destronar os velhos coronéis da política local - Vitorino Freire, no caso do Maranhâo.
Quem conta esta estória com detalhes e competência é meu amigo maranhense - ex-orientando - José Henrique de Paula Borralho, em sua tese Terra de céu e nostalgia. Seu trabalho vai até os anos 50, nâo acompanhando, portanto, os tempos em que Sarney passaria do PSD à UDN, desta à Arena até chegar ao PMDB. E que também o veriam na presidência da República, por sorte ou macumba, no Senado, no noticiário da corrupçâo, como imortal da AML e da ABL e mecenas cultuado por vários artistas populares, entre eles, Alcione. Triste ironia na estória de quem, sob a bandeira do anticoronelismo, se tornou um coronel.
Mas este nâo é um preâmbulo para uma análise de suas artes literárias (quanto às suas artes políticas, já sâo bastante conhecidas, o que dispensa a necessidade de qualquer comentário). Aliás, confesso que nem li seus romances e contos, os quais, segundo os críticos, nada inovam em relaçâo ao velho regionalismo dos anos 30.
Aqui, Sarney é só um mote para falar de uma outra arte que tem o poder de purificar essas mazelas do poder pelo simples exercício poético. Alguém já ouviu a cançâo Boi Dono do Mar, de Zeca Baleiro? Pois bem, ai está um bom exemplo disso e nem é necessário recorrer às sofisticadas metodologias de crítica literária para chegar a tal conclusâo. É tudo muito simples.
No poema do compositor maranhense, todo poder, toda riqueza e toda pretensâo beletrista que formam o retrato de Sarney se desmilinguam com humor, beleza e amor. Na letra de Zeca Baleiro, os leôes do palácio do governo de Sâo Luís, símbolos do poder que se quer monumental, se transformam em singelos presentes para a amada, tal como a língua e o sotaque regional, instrumentos tâo utilizados na literatura envelhecida do dono do mar - anhâo.
Nenhuma crítica política terá a contundência deste poema despretencioso: 

(pena que nâo haja na net o vídeo com a música para baixar neste blog): 

Morena toma o meu braço
minha dança meu passo
É tudo que eu posso te dar
Morena leva o meu beijo
Meu carinho meu desejo
Meu amor meu maracá
Se eu pudesse eu te dava toda a riqueza
Luxo glória e beleza remédio pra toda dor
Ah eu te dava os leôes do meu palácio
Tudo quanto é rima fácil meu jardim crivado de flor

Te dava a minha língua e o meu coraçâo
Se eu fosse dono do mar
Se eu fosse dono do maranhâo (...)


segunda-feira, 15 de março de 2010

Aquém e além da alma

Freud - além da alma é sempre um bom programa para os interessados em enveredar pela obscura mente humana. O filme, de 1962, foi dirigido por John Huston (1906-1987), mestre em assunto de cinema que legou uma filmografia fabulosa. Só para lembrar algumas de suas obras-primas, cito aqui: Relíquia Macabra, O pecado de todos nós, O homem que queria ser rei, Os desajustados e O segredo das jóias, entre muitas outras.
A realização do filme coincide com aquela fase de decadência dos grandes estúdios de Hollywood e de surgimento de uma nova geração de atores e diretores (vide post anterior). Huston era da velha guarda, dono de um estilo acadêmico, mas exemplar. Para levar a cabo a história do criador da psicanálise, ele recorreu a um roteiro, nada mais nada menos, escrito por Jean-Paul Sartre, àquela altura no auge de sua fama como existencialista e companheiro do marxismo.
A psicanálise também estava na moda nos Estados Unidos - basta lembrar do enorme sucesso de que então desfrutava Marcuse, tanto entre intelectuais e estudantes, quanto no circuito artístico da Califórnia. Que o diga Marylin Monroe, morta no mesmo ano da divulgação do filme, uma frequentadora assídua de divãs, e não apenas para fazer sexo.
Embora readaptado do roteiro original para ganhar sabor mais palatável e didático (obra de Wolfang Reinhart e Charles Kaufman), o filme não distorce as principais descobertas de Freud nem o contexto em que elas surgiram: do seu contato com Charcot ao relacionamento com Breuer, suas primeiras formulações a respeito da histeria, do uso da hipnose à associação livre durante as sessões de análise, a interpretação dos sonhos (dos pacientes e dele mesmo), o tremendo impacto provocado na psiquiatria por seus escritos sobre o complexo de Édipo e a sexualidade infantil.
John Huston ainda se vale do branco e preto para criar a atmosfera sombria necessária ao enredo. Além disso, tranpôs de forma magistral para a tela o universo onírico das primeiras experiências freudianas, embora seus efeitos especiais talvez provoquem gargalhadas nas platéias de hoje, já tão acostumadas a se deleitar com recursos hiper-reais dia a dia mais sofisticados.
Finalmente, o filme não seria o que é sem a presença de um time de estrelas de primeiríssima grandeza, dentre as quais, Susannah York e Montgomery Clift. A primeira interpreta a famosa paciente histérica de Freud, impedida de andar por suas fantasias incestuosas em relação ao pai. O segundo dá vida ao próprio Sigmund Freud, com sutileza e competência. Ele, que na vida real, também passou por experiências subjetivas conturbadas, causadoras do uso excessivo de álcool e drogas e da sua morte aos 45 anos. E que se tornaria logo depois, ao lado de James Dean, um mito cultuado pela nova geração de consumidores de drogas, ansiedade, angústia e sonhos.
Nada de novo nessas sucessões de pais e filhos, seja no cinema seja na vida real. Como na permanência desse obscuro além da alma em cada um de nós.

sábado, 13 de março de 2010

Uma rajada de cinema


Não é só um fantasma dos cinquentões. Por mais que se busque noutras direções, o fato é que os anos 60 e 70 foram um grande celeiro, cujos frutos ainda não desapareceram de todo na cultura morna dos nossos dias. Um celeiro marcado por experiências de ruptura política, comportamental e artística, muito faladas e hoje mais folclorizadas do que compreendidas. Certas figuras condensaram todas as extravagâncias daquela época, como Lennon, em sua busca ininterrupta por alguma transcendência através das drogas, das meditações, do útero de Yoko, do engajamento político, da psicanálise e, sobretudo, da música. 
Mas nem bem terminei de ler a biografia deste último astro, e já estou atolado noutro livro sobre o mesmo período: Como a geração sexo-drogas-e-rock'n'roll salvou Hollywood: easy riders, raging bulls, escrito pelo jornalista nova-yorkino Peter Biskind. Como o título quilométrico anuncia, trata-se de um inventário do surgimento de uma geração de novos diretores nos Estados Unidos, àquela altura jovens e à margem do sistema cinematográfico, que invadiram a então obsoleta e conservadora Hollywood.
Comprei a obra numa livraria de rodoviária, ao perceber que ela seria bem apropriada para ler durante uma viagem (no sentido estrito da palavra). Mas não é só destas viagens geográficas que o livro fala, e sim das alucinógenas, sexuais e criativas, realizadas por muita gente já devidamente sacralizada hoje em dia, como Denis Hopper, Francis Ford Coppola, George Lucas, Jack Nicholson, Paul Schrader, Peter Bogdanovich, Peter Fonda, Robert Altman, De Niro, Polanski, Spielberg, Faye Dunaway, Julie Christie, Candice Bergen e Warren Beatty, dentre inúmeros outros diretores e estrelas. 
Cada capítulo contém tudo aquilo que os escritores-jornalistas norte-americanos sabem fazer muito bem para satisfazer os leitores curiosos, como é meu caso: confidências extraídas de centenas de entrevistados; fofocas sobre casamentos e traições; confissões de bebedeiras e consumo de drogas; revelações bombásticas de brigas nos lares e nos estúdios, e assim por diante. Esta é só a parte apetitosa de um relato muito mais proveitoso para se entender como o cinema de Hollywood foi capaz de superar as produções água-com-açúcar protagonizadas por Doris Day ou as estórias moralistas de mocinhos e vilões, típicas do pós-guerra. E assim de se adaptar aos novos tempos da rebeldia jovem, da luta pelos direitos civis, dos panteras negras, dos hippies, das passeatas contra a Guerra do Vietnã, da nouvelle vague, de Godart, Felline ou outros europeus, sem falar do nosso Cinema Novo, que provavelmente eles ignorassem.
Novos tempos, aliás, que se traduziram numa sequência de filmes memoráveis, acompanhados passo a passo no livro, cujos enredos se mesclam ao próprio ambiente vivido naqueles tempos: entre os quais, Bonnie e Clyde - uma rajada de balas, A primeira noite de um homem, 2001: uma odisséia no espaço, O bebê de Rosemary, Perdidos na noite, Sem destino, A última sessão de cinema.  
Ainda estou no começo da leitura, mas já fui fisgado pela narrativa de Biskind. Vou continuar, porque nossa longa sessão de cinema do império ocidental ainda não terminou, malgrado suas caretices recentes.

 

quinta-feira, 11 de março de 2010

Volver a Piazzolla


Há coincidências inexplicáveis. Antes de ontem, em Assis, ouvi no carro de um amigo músicas de Astor Piazzolla, compositor ao qual volvo de vez em quando à procura da minha alma perdida. O  Cd tocava vários outros dos seus tangos, mas me lembrei de um que sempre me emociona: Vuelvo al sur. E como estava em atraso nas postagens do blog, sem muita idéia do que escrever, decidi, ao voltar a Sâo Paulo no dia seguinte, baixar nesta página um vídeo com tal música. Foi o que fiz hoje de manhâ. Abaixo dele, só fui capaz de acrescentar um elogio banal, composto apenas de duas palavras, uma das quais o nome do artista.
Ainda descontente com minha falta de inspiraçâo para compor um texto, andei peregrinando, instantes atrás, em busca de informaçôes sobre esse artista de que gosto tanto, ouço sempre, mas cuja biografia pouco conheço. Fui à inevitável Wikipédia, onde encontrei breves indicaçôes. Visitei ainda alguns blogs, mas nada de substancial achei.
Pensei em fazer algum comentário estético a respeito do tango de Piazzolla, sua modernidade e simultânea imersâo na tradiçâo. Conclui que seria bobagem. Gato velho escaldado, sei muito bem que nenhuma história da arte, nenhuma teoria estética, seja estética da recepçâo, seja sociologia da música ou semiologia será capaz de expressar, nem que num átimo de inteligência, o significado profundo da arte. Profissional cada vez mais cético em relaçâo aos poderes das tecnociências humanas, tenho seguido em vâo no encalço de virtudes artísticas compensadoras, que só encontro fora de mim e do meu círculo de trabalho. Paciência. 
No auge do meu desalento, e já a ponto de desistir da pesquisa, eis que bato o olho num detalhe que até entâo nâo havia percebido: a data de nascimento do compositor. Duvidei por um instante dessa estranha coincidência. Cheguei mesmo a consultar o celular para conferir a data de hoje, 11 de março, já meio ausente da minha memória, que dia a dia fica mais refratária à contagem do tempo. Mas era a mesma data - a do aniversário de Piazzolla. 
Semprei acreditei duvidando dessas coisas esótericas. Sei mesmo que nâo tem nada a ver, embora essa coincidência fortuita tenha me servido de muleta nesta hora de falta de assunto, de falta de inspiraçâo e de olhar (espero que provisório) de esgueio diante da ciência, da educaçâo, da política, da realidade do mundo, dos meus semelhantes viventes.
Apesar disso, prefiro crer, sob a invocaçâo de todas as entidades divinas, mágicas, sobrenaturais, superestruturais, sobrelunares do universo que, de algum lugar do infinito cosmos, Astor Piazzolla emitiu algum sinal ou algum som de bandoneon na minha direçâo. Me ergueu acima do prosaico e  trágico sublunar e me fez volver ao belo sul da irrealidade. E assim me salvou.

Volver ao mistério



PIAZZOLA SEMPRE

segunda-feira, 8 de março de 2010

Avulsos

  • A previsâo se confirmou: os argentinos levaram o Oscar de melhor filme estrangeiro. Premiaçâo merecida. E nem vale a pena estimular ressentimentos nacionalistas, pois a arte nâo tem fronteiras.
  • Depois de muito tempo distante desta página, eis que uma amiga voltou e postou um comentário discordando da minha opiniâo sobre o romance Budapeste. Fiquei muito feliz e prometo que tentarei ultrapassar as primeiras páginas do livro. Mas nâo voltarei a ver o filme.
  • Há vários outros blogs, excelentes, que gostaria de indicar aqui. Ainda nâo tive tempo de fazê-lo, mas assim que puder atualizarei essas sugestôes.
  • Só poderei postar matéria nova no fim desta semana. De segunda a quinta participarei de uma banca fora de SPaulo que me ocupará quase todas as horas. Peço desculpas. 

sábado, 6 de março de 2010

O segredo dos seus olhos: o segredo do cinema argentino

Olha! Sinto muito dizer isto, mas desta vez os hermanos nos venceram. Sem  querer provocar uma guerra em nossas fronteiras do sul, tenho de advertir que eles ganharam a partida em matéria de cinema. Maradona nunca superou nossos craques, no entanto, é bem provável que Juan José Campanella consiga trazer para o seu país o Oscar de melhor filme estrangeiro que tanto cobiçamos.
Vi hoje O segredo dos seus olhos, depois de enfrentar uma fila imensa que promete se repetir na frente de muitos outros cinemas. Tá certo que é uma produçâo argentino-espanhola, realizada com dois milhôes de euros - quantia até pequena para os padrôes norte-americanos. Mas este fato nâo explica a beleza e o sucesso da película, pois Campanella já havia dirigido antes O filho da noiva, igualmente com grande sensibilidade e competência. Desta vez, realizou uma obra-prima. Estrelado por Ricardo Darin e Soledad Villamil (excelentes), o filme lembra o cinema noir, tem toques de humor, roteiro impecável, bela trilha sonora  e outros atributos. Nâo vou contar a estória, digo apenas que foi adaptada do romance La pregunta de sus ojos, de Eduardo Sacheri. 
Nâo pude deixar de compará-lo com o brasileiro Budapeste, recentemente transposto para a tela do livro homônimo de Chico Buarque. Confesso que até li umas cinco páginas desse romance, mas desisti diante de tanto hermetismo. Gosto das músicas do compositor, mas quanto à sua literatura, deixa prá lá! Assisti ao filme até o fim, rezando para que logo terminasse. Tinha fotografia e música boas, uma belíssima protagonista, afora isso, cenas arrastadas, tomadas panorâmicas despropositais, roteiro descosturado e assim por diante.
Por que a comparaçâo? Só pra dizer que o cinema psicológico nâo é o nosso forte. Alguém já viu filmes do Walter Hugo Khoury? Ou o Eu te amo (que só vale pela música de Chico)? Confiram e verâo que tenho razâo. Quando tentamos construir personagens com densidade psicológica, ou caímos na sexualizaçâo rasteira ou numa espécie de melodrama tipo Manoel Carlos.
Nâo quero aqui desprestigiar o cinema nacional, que já rendeu produtos magníficos. Fazemos bem chanchada (a antiga, e nâo coisas horripilantes tais como Carlota Joaquina, de Carla Camurati), road movies (Bye, bye, Brasil e Central do Brasil), cinema boca do lixo e de miséria social (Cidade de Deus), sem falar dos filmes de vanguarda euclides-glauberianos.
Nada de mal nisso. Antonio de Alcântara Machado disse, ainda nos anos vinte, que a literatura brasileira nâo criava personagens com profundidade psicológica. Oswald de Andrade afirmou, uma década depois, que o único escritor brasileiro capaz de falar da alma do indivíduo havia sido Machado de Assis, todos os demais só faziam retratos da paisagem nacional. Tendo a concordar com ambos. Dizem que Clarice é outra exceçâo, mas pouco li dela. Tem alguns novos escritores que tentam enveredar pelo caminho da subjetividade, os que conheço me parecem demasiado artificiais. É bem verdade que tivemos um Nelson Rodrigues no teatro, porém, é pelo grotesco e pela deformaçâo que fixou os tipos humanos. Trata-se de outra linha da nossa identidade cultural, embora de primeiríssima qualidade.
Dá no mesmo no caso do cinema brasileiro. Por isso, façamos bons filmes segundo nossa tradiçâo, que talvez seja explicada por algum componente antropológico próprio. Mas nâo nos aventuremos na criaçâo de personagens densos, como ultimamente se tentou, a exemplo do insuportável Budapeste. Isso é para outros, por enquanto, deixemos com os hermanos. E parabéns a eles.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Conversa com o escritelector

Inauguro aqui um novo espaço para colocar em dia a correspondência com os visitantes do blog.  Primeira conversa:
  •  Paulo Laurindo pergunta o significado das expressões árvore dos conhecimentos e inteligência coletiva, que empreguei no penúltimo post. Ambas são usadas pelo filósofo Pierre Lévy, estudioso da cibercultura (atualmente professor da Universidade de Otawa, Canadá). A primeira forneceria uma modelo aproximado da tendencial disposição  dos saberes contemporâneos, muito diferente da forma como os conhecemos desde a Idade Moderna e que ainda organiza o sistema escolar. A segunda expressaria o modo contemporâneo de criação, circulação e apropriação das informações e dos conhecimentos, sob mediação da internet. Um tal modo que extravasa os espaços institucionais de organização do saber hoje vigentes: disciplinas, currículos, cursos, hierarquias entre especialistas e leigos, ou entre autor e leitor, etc.
  • A brincadeira que inventei no título deste post dá uma idéia disso: escritelector - um termo meio idiota e tardiamente modernista, que serve, pelo menos, para dizer que quem frequenta blogs e coisas semelhantes é meio autor, meio escritor, internauta, navegador e tudo isso junto. A filosofia contemporânea tem mostrado que vivemos uma época de falência dos antigos conceitos explicativos do mundo. Algumas pessoas têm ousado pensar a respeito do problema e até criar teorias e interpretações novas. Não é fácil. Há muito de boa e má utopia nisso tudo. Nem sei se acredito piamente nelas, mas não as ignoro.
  • A propósito disso, eu e Tania de Luca - também historiadora - daremos um curso na pós-graduação em Assis, neste semestre, sobre tais impasses e tentativas de interpretação das mudanças socioculturais contemporâneas. Aliás, o curso já começou. 
  • Vale a pena ler a Carta Capital desta semana. O título da matéria de capa é O plebiscito em marcha: uma equidistante análise dos governos: FHC e Lula. É claro que não é tão equidistante assim: trata-se de um dos poucos periódicos simpáticos ao governo e que, portanto, não integra o PIG. Nem por isso os artigos desse dossier deixam de fazer críticas sérias a algumas políticas adotadas por Lula. Apesar disso, evidenciam, com números e análises bem fundamentadas, o seu inegável sucesso na maioria dos indicadores econômicos e sociais. Demonstram, por outro lado, o inegável fracasso de FHC nesses mesmos itens. Por isso o PSDB quer evitar qualquer tipo de comparação.
  • Hoje foi dia de manifestação dos professores e diretores das escolas estaduais diante da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, na Praça da República. Pude presenciá-la por acaso, ao voltar para casa. Há tempo não via tanta gente e tamanha energia entre os professores. Vem greve por ai, péssima notícia para o candidato Serra. Será que a mídia dará destaque ao fato? Não é preciso responder.
  • Aproveito para dizer que, embora venha falando tanto de política no blog, na verdade, não gosto de política. Minha experiência participativa nesse campo adverte que, salvo poucas exceções, a política (nunca há "a" política, genérica assim) que conheço garante lugar para os medíocres, arrivistas, interesseiros, pragmáticos, sem projetos, sem utopias. Por isso gostaria, isto sim, que o blog fosse só de literatura, música, cinema, outras artes e alguma ciência (desde que aberta). Mas tenho sempre comigo um diabo que me inferniza e estimula minha revolta que vem de longe e nem psicanalista cura. Não posso fazer nada contra isso. Como cantou Maisa, "eu não posso calar dentro em mim, esta chama que não vai passar/ é mais forte que eu e não quero dela me afastar"
  • Mas tenho que ser sincero com o escritelector que visita este espaço: este não é um blog político-partidário. Voto há anos num deles, continuo fiel, no entanto, sou e serei sempre independente. Leal, sobretudo, às minhas convicções. E principalmente às minhas dúvidas que explicam porque, de vez em quando, salpico esta página com ceticismos, absursos, nonsenses, banalidades, obscuridades da alma - e um pouquinho de sensibilidade. Conto com vocês nessa jornada de contradições.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Os muros da escola pública corroídos pelo abandono e pela virtualidade



Não basta ser professor da escola pública. É preciso ver além da sala de aula. O filme Entre os muros da escola, de Laurent Cantet e François Bégaudeau, embora se passe numa delas, consegue olhar mais longe e assim mapear alguns dos dilemas enfrentados por professores, alunos e pais na sociedade atual. E vejam que as estórias contadas nessa fita ocorrem na França, um país que foi modelo de educação pública, cujos alicerces e muros foram construídos de acordo com os princípios estabelecidos desde a grande Revolução: ensino para todos, laico e destinado a formar cidadãos civilizados.
O filme indaga quais as possibilidades de manutenção desse padrão educacional democrático e inclusivo numa França hoje constituída em grande parte por imigrantes vindos de diversas outras partes do globo, com suas culturas tão distintas dos tradicionais valores nacionais. Revela ainda o potencial de violência pronto a explodir numa escola que, além de reunir extratos sociais heterogênos, perde cada vez mais o papel educativo, até então hegemônico, diante dos novos meios tecnológicos de informação e circulação do conhecimento, assim como de formação dos comportamentos e das consciências.
Mas, se o expectador se concentrar em alguns pequenos detalhes dessa ficção nem tanto ficcional (móveis da sala de aula, disposição dos alunos no ambiente escolar, materiais, postura do professor) perceberá que, apesar de corroídos, os muros da escola francesa ainda permanecem de pé. Ninguém consegue responder por quanto tempo, mas não há dúvida de que alguma solidez subsiste. Solidez, aliás, edificada da metade do século XIX ao longo do seguinte. E fundamentada na idéia da educação como programa estratégico nacional.
O que dizer da nossa realidade, brasileira e paulista? Na impossibilidade de falar de algo tão amplo e complexo, tratemos pelo menos do segundo caso. Aceite-se ou não o conteúdo elitizante do republicanismo paulista nos seus primórdios, é preciso admitir que seus principais defensores foram relativamente ousados no que tange à educação. Desde o início do século passado, São Paulo ampliou expressivamente a rede de ensino, na capital e no interior, modernizou a administração das escolas e reformou currículos. Não é gratuito que, principalmente a partir dos anos 20, tenham brotado em nosso Estado idéias inovadoras de reforma educacional, que centralizaram o debate pedagógico brasileiro.
Contudo, as políticas de ensino adotadas nos últimos vinte anos não fazem justiça a esse passado. Nessas duas décadas perdidas, insisto, São Paulo perdeu a liderança que até então mantinha no país no que se refere à excelência do ensino. Não serão os arremedos da escola da família, da escola aberta no fim de semana, das apostilas para integrar os conteúdos ensinados em toda a região, das provas para aquilatar o desempenho do professor ou da ampliação do número de computadores nas escolas que mudarão esse quadro.
O problema é muito mais complexo e exige lideranças educacionais à altura para enfrentá-lo, não políticos coroinhas ou técnicos intratáveis. Desde 2003, em contrapartida, o governo federal, se não foi capaz de colocar em prática um projeto educacional para o país compatível com os dilemas do século XXI (nem sempre visíveis e cuja soluçâo ainda nâo foi encontrada pelo globo afora), ao menos conseguiu efetivar alguns daqueles princípios republicanos mencionados, acertando assim o passo com o século XX. Em São Paulo, ao contrário, e apesar dos sonhos dos pais-fundadores da República local, tais fundamentos foram ignorados ou jogados pela janela, em benefício dos interesses privados mesquinhos. Isto é PSDB, panfletemos! 
O próximo governador paulista, seja quem for, herdará uma escola pública falida. Seu desafio, se bem-intencionado, será imenso: não só restabelecer as bases da escola republicana, mas adaptá-la a um mundo que, dia a dia mais rapidamente, envolve as instituições tradicionais no ritmo dissolvente e instável da cultura virtual. Um mundo que requer uma nova escola, flexível, veloz e democrática, organizada como árvore dos conhecimentos, sem-fronteiras, com maleabilidade para aceitar e participar da inteligência coletiva. Escola que será, e talvez já seja um pouco.

terça-feira, 2 de março de 2010

A escola pública paulista sob a tirania e a caridade

Lecionei apenas cinco anos na rede pública de ensino fundamental e médio do Estado de Sâo Paulo. Foi no final dos anos 70, época em que uma nova geraçâo de professores lutou até onde pode pela melhoria do sistema educacional paulista acreditando que tal luta era parte da batalha pela redemocratizaçâo e pelo desenvolvimento social do Brasil.
Participei da grande greve de 1979, o primeiro protesto significativo do professorado paulista durante o regime militar e talvez o seu derradeiro grito de esperança. A partir de entâo acompanhei a crescente agonia desse sistema pelas raras notícias da imprensa - geralmente em momentos de greve e, o mais das vezes, desfavoráveis aos movimentos docentes -, ou também por testemunhos diretos de amigos e ex-alunos da universidade.
Depois disso numerosas outras greves e manifestaçôes ainda ocorreriam, mas já destinadas ao fracasso diante de uma política de Estado deliberadamente contrária ao setor educacional público. Eram os tempos do longo reinado tucano (Covas, Alckmin, Serra), precedidos pelo indecoroso governo Fleury, do PMDB.
O que esteve em jogo nesses embates socioeducacionais? Desde meados dos anos 60 a escola pública paulista (e brasileira) teve de lidar com o fenômeno da massificaçâo do ensino, impulsionado pela enorme urbanizaçâo em todo o país. Lidou muito mal, tanto no que diz respeito aos (parcos) investimentos em infraestrutura, formaçâo e valorizaçâo docente, quanto naquilo que envolve a pedagogia, principalmente tendo em vista o enfraquecimento do papel ocupado pela escola num mundo velozmente mediado pela seduçâo do consumo cultural e tecnológico - fonte, inclusive, da criminalidade entre seus muros.
Os pobres, os recém-chegados à escola nâo queriam disciplinas enfadonhas, morosas e despregradas do mundo real, salas fechadas como prisôes, aulas de giz e cuspe. Sentiam-se no direito de ter o que viam na televisâo e nas ruas: tênis de griffe, roupas de marca, carros, as meninas queriam ser modelos, os jovens sonhavam com a celebridade das telas. Nada disso era e ainda é possível - para que servia e serve o ensino, perguntavam? Revolta inconsciente e utopia consumista, eis as razôes dos crimes, do desrespeito ao professor e da negaçâo escolar. Professores malremunerados e malformados nas faculdades de fundo de quintal, tâo pobres como eles nâo serviam como modelo. Nem mesmo, salvo poucos, acreditavam e acreditam na escola, na sua missâo. É claro que este breve parágrafo nem de longe explica o complexo processo de transformaçâo pelo qual passamos.
Os tucanos, idólatras do mercado e da competitividade, responderam a esses desafios com as receitas prontas do pensamento neoliberal. Ora com a tirania, ora com a caridade. Os professores sabem muito bem do que falo. Exemplos destas duas tendências opostas e complementares foram personificadas nas figuras de dois secretários da Educaçâo - Rose Neubauer, a ideóloga fria e calculista, a mulher-empresária implacável, e Gabriel Chalita, o cristâo humanista, o homem paternal. Fracasso de ambos.
A escola pública paulista suportará mais quatro ou oito anos dessa maldade bondosa? Creio que nâo. Que sobre Sâo Paulo desça Ciro, o esperado, com sua língua de fogo e sua musa inspiradora. Venha para nos salvar mas venha só, sem o irmâo Chalita e suas palavras consoladoras que nâo movem moinhos.
(peço desculpas ao leitor pelo acento circunflexo indevido em várias palavras: meu teclado espanhol nâo aceita o til a nâo ser de acordo com as normas telefónicas e santanderinas).