quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Esperanças ainda que muito discretas

É bom ler Olgária Matos enquanto vou me recuperando da nova cirurgia no tornozelo. O livro que me ajuda a passar o tempo é Discretas esperanças: reflexões filosóficas sobre o mundo contemporâneo. Publicado em 2006, passou despercebido junto ao público leitor, se é que temos um público leitor no sentido do termo, excetuando é claro, os que compram livros da lista midiática dos mais vendidos e das indicações do Domingão cultural do Faustão. 
Voltando ao livro, não é um texto difícil, em que pese a grande erudição da autora, que convoca a acompanhar uma reflexão exigente sobre as tênues possibilidades de reflorescimento do humanismo na cultura tecnocrática atual. Os dez ensaios da obra tratam do precário lugar da filosofia nesse cenário, do que resta da república na democracia midiática, do estrangeiro que resiste à regra abstrata e racionalizadora da identidade científica moderna, do massacrante fetichismo capitalista, da ciência como parte da sociedade de consumo de massa e do espetáculo, das antigas luzes contra o obscurantismo feérico de hoje, das barricadas de 68 reerguidas nos novos levantes do desejo atuais, do ethos e da amizade no pretenso cosmopolitismo contemporâneo, do corpo maquínico feminino atual.
São ensaios instigantes, para usar um termo usado e abusado nos artigos pseudocientíficos das tecnociências humanas de hoje. Mas, confesso que não pude perceber neles as tais esperanças aludidas no título do livro, se bem que adjetivadas de discretas. Seria incompreensão da minha parte, derivada da minha condição de convalescente? Ou seria porque, eu mesmo, ando cada vez mais desanimado com o universo universitário de resultados do qual faço parte?
Não sei responder. Em todo caso, ao mesmo tempo em que agradeço aos leitores e leitoras pela solidariedade expressa nos comentários anexados nos posts anteriores, lhes deixo aqui um trecho da obra que caracteriza bem o pensamento de Olgária Matos e pode levar à seguinte indagação: se é assim, que esperanças são essas, especialmente para nós, educadores? 

"Sob os auspícios da mídia, aprender foi decretado fastidioso e o esforço intelectual, proscrito. Que se pense na leitura - atenta e concentrada - substituída pelo espontaneísmo da leitura próprio à mídia e o à indústria cultural. Se a televisão utiliza um vocabulário de 'no máximo 300 palavras', o 'Decálogo do Jornalista' prevê um leitor com capacidade intelectual de 'dez anos'. Tais procedimentos visam transmissões que devem ser lidas, vistas e imediatamente compreendidas por todos, segundo o pressuposto de que a cultura autêntica seria inacessível ao grande público. Indivíduos assim mobilizados sentem-se instruídos quando capazes de opinar acerca de assuntos do momento. Tornam-se 'lacaios do instante', 'escravos da manchete do dia'. Reduzidos à condição de consumidores, aceitam, sem resistência, a padronização da cultura.
A mídia não só prescinde a leitura mas a torna demodée. Se a leitura dinâmica, rápida e por saltos, convém a um cartaz publicitário, é inadequada a escritos literários e científicos. Não obstante, sob aquela influência, a educação foi se impregnando com a ideologia da facilidade - com que a indústria cultural banaliza tanto a formação superior quanto a de resistência, produzindo, segundo Adorno, uma espécie de 'barbárie estilizada'. O filósofo critica a indústria cultural não por ser democrática mas por não o ser, pois a luta contra a cultura de massa só pode ser levada adiante se mostrada a conexão entre a cultura massificada e a desigualdade social. A educação retoma à condição do segredo, pois a mídia transmite uma cultura agramatical, desortográfica e iletrada; contorce reflexão em entretenimento, pesquisa em produção - dado o imperativo primeiro e último do mercado consumidor. Se, na perspectiva humanista, as disciplinas são formadoras, na 'cultura de massa' elas são performáticas. (...)
A educação humanista, formadora, encontrava na leitura o procedimento nobre por excelência. Atividade paciente, experiência simbólica que trabalha nosso mundo interior. Que se pense em todas as experiências da cultura que requerem tempo, à distância do cronômetro do dia industrial, da produção e do mercado".

(Dedico este post aos meus colegas das tecnociências, humanas ou não, que já abdicaram definitivamente de todo o pensamento humanista).   

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Pausa no blog

Meus amigos e amigas

Minhas postagens no blog não estão muito assíduas nas últimas semanas. E provavelmente terei de dar uma pausa, espero que por pouco tempo.
A razão é que estou em tratamento médico. Lembram-se do começo do ano, quanto fraturei um tornozelo e passei por uma cirurgia? Pois é: o osso colou bem, mas a cicatrização não funcionou perfeitamente. Um dos pinos se quebrou, provocando inflamação e infecção. Assim que isso for debelado, haverá necessidade de nova cirurgia para retirar os pinos.
E assim ando meio desanimado para escrever. Portanto, os posts serão mais esporádicos. Conto com a compreensão de vocês.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Por causa do ENEM quase assassinei um dentista alienado

Dia sinistro foi hoje. Prá começar, longo trajeto de taxi até o Ipiranga, local do meu novo trabalho. Andar de taxi quase sempre me irrita, mas ainda é melhor do que ir de ônibus, depois pegar o metrô e ainda enfrentar mais uma trecho de busão, ida e volta, todo santo dia. Nem Cristo aguentaria! O jeito, portanto, é suportar o motorista que fala demais, aquele outro barbeiro, o que puxa assunto de política invariavelmente contra minhas convicções, o carro cheirando mal ... Serei eu irritado demais? Ou terei de recorrer a um baseadinho de viagem para relaxar suave na nave diariamente?
Por tudo isso, foi torturante encarar outra vez o impiedoso taxímetro no final da tarde. Mas era a única saída para repor um pedaço de dente quebrado em pleno almoço, dois dias atrás. É verdade que era um dente lá do fundo, fácil de esconder num sorriso fingido. O problema era a língua que não parava de lamber, segundo a segundo, o áspero caco sobrante. E, como todos sabem, não é fácil controlar uma língua. A solução era procurar um dentista de emergência, uma vez que o meu fixo reside no interior, muito longe. Bastou ir ao Google e - pronto - o horário estava marcado.
Acenei mais uma vez para o taxi. Mas o motorista, fatidicamente, não conhecia o endereço, nem tinha GPS e sequer um guia de São Paulo. Fomos nós num trânsito infernal à caça de informações, às cegas. Só depois de muitas idas e vindas chegamos ao destino. Convenhamos, leitor e leitora, justificava-se inteiramente minha ira!
No prédio luxuoso, acesso controlado ao estilo do Pentágono, chego ao 14º andar. Descrevo meu caso à alegre recepcionista que a tudo responde "com certeza", preencho a ficha com meu nome de batismo e profissão de professor, debito duzentos e cinquenta pratas no cartão, ingresso no minúsculo gabinete de luzes brancas. Mais uns minutos e lá estou eu entubado como numa UTI, o sugador na boca, o nariz saturado da respiração artificial, a britadeira a escavar profundamente o pobre e já demasiadamente vivido canal, os olhos esbugalhados a fitar a testa vermelha do dentista.
Eis que, impossibilitado de falar, de gritar, de me defender, ouço o inevitável comentário - a última coisa que esperava ouvir num dia tão sinistro:
- E o exame do ENEM, heim! Que incompetência do PT! Que vergonha! Que prejuízo pros estudantes!
Por um átimo de segundo me vieram à mente a campanha eleitoral do Serra, a cantilena do PIG contra a política educacional de Lula, os comentários torpes e parciais de Mônica Waldvogel, Paulo Renato e Eunice Durham no Entre Aspas de ontem na Globonews, as falácias direitistas de Demétrio Magnoli sobre o sistema de cotas na universidade.
Nesse contexto mental, o rosto do dentista babaca, tão próximo, de repente se transformou num monstro reacionário, conservador, alienado e golpista. Sem poder debater, retrucar, combater, compulsoriamente calado, simplesmente ergui as pernas e levantei um dos braços com ganas de estrangular o homem de branco.
O que de nada adiantou. Ele continuou sua ladainha ignorante e grotesca, alimentada pela Globo, pela Folha de São Paulo e pela Veja, acreditando que meus gestos significavam apenas pânico de consultório:
- Calma, já estou terminando! Um homem desse tamanho com medo de tratamento dentário!
Estranhamente, foi esta fala tranquilizadora que acalmou meu ímpeto assassino. Tenho de admitir: o mundo é assim como ele é, conclui.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

De medo e perseverança

De uns tempos prá cá venho desenvolvendo um medo cada vez maior do correio eletrônico. Digo venho desenvolvendo, com o perdão do gerúndio, porque de uns tempos prá cá  os males têm sido atribuídos unicamente ao indivíduo, em sua infinita solidão e em seu imenso arbítrio. Exemplo disso são algumas pequenas frases, aparentemente insignificantes, que se tornaram comuns na prosa cotidiana. Como estas: fulano fez um câncer, beltrano desenvolveu síndrome de pânico, e assim por diante.
Não muito antes, as doenças, os infortúnios e os pavores eram de responsabilidade transcendental, social, biológica ou cultural: aquele sofria de tuberculose, aquela pegou sarampo ou foi tomada por um encosto. Noutras palavras, o mal sempre vinha de fora, cabendo ao sujeito o papel de vítima, seja por causa divina, seja por razão terrena. Agora, não, vem de dentro do indivíduo, a ele pertence, foda-se!
Seria o caso de especular como se deu esse crescente processo de culpabilização do indivíduo numa escala que em muito ultrapassa a velha moral cristã do pecado. Desconfio que tudo isso seja expressão do poder médico - biopoder, segundo Foucault -, um poder tão avassalador quanto a crença contemporânea na soberania do indivíduo sobre a vida e a morte.
Mas isto não vem ao caso. O que importa é que tenho medo da caixa de correio. Será que alguém mais do universo virtual desenvolve, por responsabilidade própria, tal enfermidade? Será uma doença semelhante à síndrome do pânico, à bulimia ou outras patologias típicas da nossa época, conforme o testemunho televiso noturno dos que descem ao fundo do poço e depois se reerguem pela autoajuda cristã?
Não sei se esse tipo de culpa é só meu, mas o fato é que sinto medo de abrir os emails, assim como, tempos atrás, receava o toque do celular. Não que temesse ouvir do outro lado da linha alguma notícia trágica (pois sei que estas sempre chegam por meios até mais primitivos), e agora tema ler nas mensagens ameaças terroristas ou abrir as portas para algum pirata insidioso.
Nada disso! O que sinto não tem a ver com esses medos enraizados na vida da humanidade dos tempos medievais aos contemporâneos, tão bem descritos por Jean Delumeau e por Yi-Fu Tuan. Afinal, temíamos e sempre temeremos a face da morte, as catástrofes naturais, os surtos de violência e as epidemias. Repetiremos eternamente o temor das forças terríveis, divinas ou naturais,  que não somos capazes de dominar.
Meu medo de emails é de outra natureza, muito mais profano e prosaico. É o medo de algo à primeira vista inteiramente controlável: as mensagens que chegam todo dia de forma inocente, sem esforço, sem carteiro e sem voz, e que em nada se parecem com aquelas trazidas pelos antigos mensageiros, anjos ou demônios. 
O meu medo é das tarefas cada vez maiores nelas contidas e que terei de cumprir para agentes ocultos, modernos e onipotentes: preencher formulário profissional, enviar currículo, emitir parecer, ler projeto, formular projeto, redigir relatório, responder ao orientando, solicitar bolsa (para outro), visitar um novo site imprescindível ... Medo desse sobretrabalho e dessa sobrevalia pós-Marx.
Medo dessas singelas cartas falsas, coloquiais, amigas e íntimas, assinadas com abs e bjs. Ou desses requerimentos rápidos, despidos dos longos prolegômenos da antiga formalidade burocrática, mas, no entanto, tão peremptórios: faça, faça, faça! Medo, enfim, dessas cobranças geralmente gratuitas, enviadas e exigidas nos e para os finais de semana.
Serei eu o único a desenvolver tal pânico? Embora não saiba a resposta, se há descrição clínica dessa patologia, ou alguma estatística disponível sobre os novos enfermos, tomei uma decisão. Já que a responsabilidade sobre o mal é inteiramente minha, decidi desde ontem,  sábado, fazer uso da minha soberania, do meu arbítrio, da minha falta de culpa.
Simplesmente não abri a caixa de correio. E repetirei esse procedimento todo final de semana daqui prá frente. Sei que terei de ter muita fé para enfrentar o mal que é só meu. Mas, como vejo e ouço nos testemunhos da televisão: basta perseverar. Perseverarei!

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Yes, we can(nabis)

Yes, vencemos, yes, we can!
Passada a ressaca eleitoral, temos a garantia de que o programa de desenvolvimento econômico-social e redistribuição de renda está assegurado. Resta avançar em muitas outras áreas, entre elas a saúde e a educação. Resta avançar, sobretudo, na reforma política: criar condições para o fortalecimento de partidos políticos verdadeiros, impedir a proliferação de agremiações de aluguel, expandir a banda larga e a democratização das informações, rever a lei de concessão de canais de tv e de rádio, quebrar o monopólio da imprensa golpista, libertar a república do poder religioso, isto é, recriar a república laica.
O que de pior tivemos no recente processo eleitoral foi a exploração de temas morais e religiosos, que significou um profundo retrocesso político. Há muito tempo não se via no país semelhante apelação hipócrita. Do DEM não se podia esperar outra coisa. Mas a atitude do PSDB e do PV quanto ao assunto foi um verdadeiro espanto. FHC, Serra e Gabeira, notórios agnósticos, para não dizer ateus, se enlamearam no mais profundo primitivismo oportunista. E o que dizer desses homens esclarecidos quanto à exploração da condenação ao aborto, santo deus!
Por mais que o combate a essa hipocrisia não deva figurar como prioridade no novo governo, é preciso dizer que faz falta um choque de antihipocrisia moral. Bons tempos foram aqueles em que o PT dava espaço aos defensores de bandeiras como a da descriminalização do aborto e da maconha, por exemplo. Os petistas devem retomá-las, retirando-as das mãos de oportunistas de carteirinha, como Gabeira e Soninha Francine. O avanço social pressupõe o combate ao conservadorismo em todos os seus aspectos, principalmente, os morais.
Vejam o que acontece em outras plagas, notoriamente puritanas. Nas eleições de meio-termo na Califórnia, hoje, os eleitores também votarão sim ou não à liberação da maconha para fins recreativos (a cannabis já está legalizada para uso medicinal). Embora as pesquisas indiquem que a proposta seja derrotada por 7% dos votos, a realização do plebiscito, por si, já representa uma vitória. Outra é o fato de que personalidades do mundo empresarial, científico, intelectual e artístico têm se manifestado a favor e mostrado a cara. Muito diferente do que ocorre entre nós: conhecidos aborteiros e aborteiras, cocaínomanos e maconheiros se travestindo de bento XVI para angariar votos.
É esse tipo de choque moral antihipocrisia que faz falta por aqui. Porque yes, we can(nabis).