segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Crackapitalismo

O fio da navalha é um belíssimo filme baseado na obra homônima, igualmente belíssima, de Somerset Maugham. Na verdade, foram duas as principais versões cinematográficas desse romance: a de 1946, com Tyrone Power como protagonista, e a de 1984, estrelada por Bill Murray (a que assisti).
O personagem central da ficção de Maugham é Larry Darrell, um jovem burguês americano, obviamente alienado, que tem um choque de realidade nos campos de batalha da Primeira Guerra na Europa. Ao voltar para Chicago, sua terra natal, ele então decide abandonar os confortos materiais e buscar o sentido da vida. Segue para Paris, Marselha e Índia, trabalha como operário, convive com outras figuras do submundo, apaixona-se por uma prostituta drogada, procura a iluminação espiritual entre os monges budistas. 
A ação transcorre até o final da década de 1920, marcada pela euforia capitalista norteamericana. Naqueles anos loucos, estancados com a crise de 1929, muitos outros magnatas, escritores e artistas conterrâneos de Darrell também participaram do clima de dissolução e angústia numa Europa ainda em reconstrução, mas às vésperas do nazifascismo. Larry Darrell, porém, procurou o autoconhecimento. Nem todos o fizeram.
As cenas mais deprimentes do filme se passam nas casas de ópio onde os aflitos buscavam algum alívio para a ausência de realização pessoal num mundo de misérias e oportunidades capitalistas.
Mas, por que me lembrei dessa história que li e vi faz tanto tempo? Será porque passei hoje de carro pela cracolândia do centro? Será porque li uma matéria não sei aonde sobre o projeto de revitalização (diga-se recapitalização) daquela área? Ou porque assisti no Domingo Espetacular a uma reportagem sobre o exército de mortovivos criado pelo narcotráfico?
Chego à conclusão de que por tudo isso e mais - pela convicção de que estamos todos entorpecidos, drogados. Os viciados em crack formam apenas a parte mais visível do nosso ópio: o consumo capitalista. Eles morrem porque não podem consumir as bugigangas que nosotros compramos. E assim se refugiam na única de que dispõem. A epidemia de crack é, portanto, o resultado natural da má distribuição das drogas de consumo. Nós, os beneficiados, morreremos de forma mais lenta porque ainda temos outras mercadorias às quais conferimos significados transcendentais.
Antes que me esqueça, escrevi este texto apenas para dizer que sou pela liberação e o controle estatal das drogas e dos bancos. Droga também é capital.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Detrito das palavras

A tela em branco, arrisco, mancho a pureza da página, deleto, nada, nenhuma palavra, nenhuma sílaba me encanta ou faz sentido, a vírgula, o ponto, apenas desenhos abstratos, e todos esses textos que ainda sem nascer pendem em clips nas folhas da agenda, previstamente e nos contratos, antecipações do calendário, agosto, setembro, outubro, dezembro, não, repetições de tantos outros momentos de dor, sim, de toda dor da escrita se ela for sincera, sofrerão os verdadeiros escritores, pergunto, sofrem e gozam, extraem suas palavras a forceps como eu, indago, e se ainda fossem palavras poéticas, merda, são apenas junções tipográficas sem alma, artigos sem subjetividade, textos da semvida acadêmica, coisas de teses, resenhas, e ainda assim sinto, dilacero, desvio o olho para o sorriso forçado do Geraldo na televisão, fujo da torpeza e me refugio aqui onde jogo meus detritos mais honestos, luto como Carlos Drummond mas só, sem sua musa imortal:

"Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida".

terça-feira, 24 de agosto de 2010

O estranho mundo das vacas

Quando criança, no sítio onde morávamos, eu gastava longas horas empoleirado no alto do curral para ver as vacas no pasto. Digo vacas, mas também havia evidentemente bois, embora em número minoritário.
Gostava de ver o lento ir e vir bovino, as rezes deitadas à sombra das árvores a ruminar repetidamente. E, principalmente, a ordem tranquila e indiferente com que seguiam em fila rumo ao curral no cair da tarde, comandadas por cavaleiros. A cena me lembrava uma procissão católica, tanto que na minha fantasia idílica eu chegava mesmo a santificar as vacas. Muito antes de saber da existência das vacas sagradas indianas.
Nem tudo do universo bovino se limitava, porém, ao plano da elevação espiritual. Havia também uma parte mais baixa que me intrigava. Por exemplo, o comportamento de cagar várias vezes em público sem o menor constrangimento. Apesar disso, foi com o gado que pude presenciar um aspecto da natureza que os humanos escondiam: o intercurso sexual. Creio que o espetáculo não me traumatizou.
Na ausência de outro modelo para entender aquele estranho mundo, nada me restava se não humanizá-lo. Dentre outras coisas, costumava dar nome, geralmente familiar, a cada uma das vacas, preservando é claro, o nome da minha mãe. Até que um dia, ao encarar mais de perto o olhar roxamente esbugalhado de uma delas, me ocorreu perguntar o que aquele grupo animal pensaria dos humanos. A que modelo recorreria para nos entender? Nos avacalharia?
Muito tempo depois, aquela indagação infantil ainda me vem à mente, agora mesmo que só posso ver vacas pela televisão (refiro-me apenas às quadrúpedes), é bem verdade que algumas ao vivo no canal dos leilões bovinos. Foi o que aconteceu hoje, quando eu ia de taxi da rua Augusta à Praça de Sé e, de repente, fiquei preso num imenso engarrafamento que me custou quase uma hora para percorrer o pequeno trecho.
Dentro do carro, aquela situação seria propícia à evocação da canção Sinal Fechado, de Chico Buarque e Paulinho da Viola, cujo título metafórico alude ao claustrafóbico ambiente humano num sistema ditatorial (em nossa época, a ditadura do mercado automobilístico). Ou do Admirável Gado Novo, em que Zé Ramalho denuncia as condições sociais que transformam os humanos em bovinos resignados. Nada disso entretanto me acometeu.
Simplesmente imaginei a indagação contida nos olhos esbugalhados da antiga vaca em face do bizarro espetáculo - a longa fileira de humanos presos em latas quentes com a vista dirigida para um alvo invisível.
Terminou o dia, mas essa idéia continuou na minha cabeça, de tal forma que cheguei a pensar em substituir o anjo do alto da página do blog por uma vaca-anjo contempladora do mundo. A única ilustração que encontrei na internet é a que reproduzo abaixo, embora saiba que ela é humorística demais para cumprir um papel de tamanha profundidade filosófica. 


segunda-feira, 23 de agosto de 2010

É apenas cinema!

Hoje tomo a liberdade de me dirigir a um público específico: virgens e cabaços da política, saudosos da ditadura militar, classes médias serristas, pacifistas de shopping e outros tipos desse segmento tão piedoso, horrorizado com a possibilidade de ter como presidenta uma ex-guerrilheira.
Sugiro a todos que vejam A Batalha de Argel (1965), filme que narra a luta do povo argelino, entre 1954 e 1957, por sua libertação do colonialismo francês. Dirigido pelo italiano Gillo Pontecorvo, tem como fio condutor a história de integrantes da Frente de Libertação Nacional (FLN), Ali-la-Pointe e seus companheiros que resistem na Casbah, o maior bairro popular da capital Argel. Trata-se de um clássico do cinema que mistura ficção e fatos reais para narrar a aguerrida resistência argelina e a violência do exército francês.

Outros detalhes sobre a obra são dados no vídeo abaixo pelo crítico Marcelo Janot. Junto-me a ele para desejar a todos um bom filme. Mas não se assustem com as cenas de violência e sangue. É apenas cinema. E em branco e preto.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Sobre o amor, o desejo e o desassossego

Reimaginei o blog. Agora as impertinências não são minhas mas do próprio mundo. E o abri com outra imagem - que dispensa apresentação, imaginando que Asas do desejo, de Win Wenders, já seja obra universal. As impertinências do mundo são a causa de toda arte e de toda ciência. Melhor, de todo desassossego, de todo desejo, de todas paixões, de todo amor. Lacan chamou essa coisa de buraco. Com outras palavras, Saramago, o mais recente falecido na investigação da natureza humana, disse o mesmo: Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos. E para reiniciar a vocação deste blog, vou mais longe nessa procura do inexplicável. Com vocês o comediante Aristófanes:

"Tentarei eu portanto iniciar-vos (...) e vós ensinareis aos outros. Mas é peciso primeiro aprendertes a natureza humana e as vicissitudes. Com efeito, nossa natureza outrora não era a mesma que a de agora, mas diferente. Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade, não dois como agora, o masculino e o feminino, comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa; andrógino era então um gênero distinto (...). Depois, inteiriça era a forma de cada homem (...) Eram por conseguinte de uma força e de um vigor terríveis, e uma grande presunção eles tinham; mas voltaram-se contra os deuses (...). Depois de laboriosa reflexão, diz Zeus: 'Acho que tenho um meio de fazer com que os homens possam existir, mas parem com a intemperança, tornados mais fracos. Agora (...) eu os cortarei a cada um em dois, e ao mesmo tempo eles serão mais fracos e também mais úteis para nós, pelo fato de terem se tornado mais numerosos (...). Por conseguinte, desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a ela se unia (...) no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do outro (...). Tomado de compaixão, Zeus consegue outro expediente, e lhes muda o sexo para frente - pois até então eles o tinham para fora e geravam e reproduziam não um no outro, mas na terra, como as cigarras. ; pondo-se assim o sexo na frente deles fez com que através dele se processasse a geração um no outro, o macho na fêmea, pelo seguinte, para que no enlace, se fosse um homem a encontrar uma mulher, que ao mesmo tempo gerassem e se fosse constituindo a raça, mas se fosse um homem com um homem, que pelo menos houvesse saciedade em seu convívio e pudessem repousar, voltar ao trabalho e ocupar-se pelo resto da vida. É então de há tanto tempo que o amor de um pelo outro está implantado nos homens, restaurador da nossa antiga natureza, em sua tentativa de fazer um só de dois e de curar a natureza humana. Cada um de nós portanto é uma téssera complementar de um homem, porque cortado como os linguados, de um só em dois; e procura então cada um o seu próprio complemento. Por conseguinte, todos os homens que são um corte do tipo comum, o que então se chamava andrógino, gostam de mulheres, e a maioria dos adultérios provém deste tipo, assim como também todas as mulheres que gostam de homens e são adúlteras, é deste tipo que provêm. Todas as mulheres que são o corte de uma mulher não dirigem muito sua atenção aos homens, mas antes estão voltadas para as mulheres e as amiguinhas provêm deste tipo".

Aristófanes no Banquete de Platão.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Quando teremos uma virada paulista de verdade?

Bem que o Estado de São Paulo merecia uma virada de verdade! Já tem décadas que a política paulista segue arrastada num lenga-lenga regido por um único projeto: deixar as coisas como estão, manter os mesmos grupos no poder, satisfazer  a fome insaciável das panelinhas de sempre. Geraldo Alckmin - o insípido - é o cara perfeito para desempenhar esse papel de não-líder das elites e da classe média de São Paulo. Será o seu gerente, mas nem por isso alguém morrerá de amor por ele.
Passam os anos e os políticos locais repetem a antiga ladainha dos arcaicos liberais paulistas. Ladainha criada nos confins do século XIX e que na época podia até fazer algum sentido. São Paulo, diziam, é uma ilha de progresso no imenso território da preguiça nacional. Em vista disso foi até comparada à pujante nação yankee. Os próprios paulistas se viam racialmente superiores aos indolentes brasileiros. E chegaram até a pensar em separatismo.
Mas veio a República e com ela a oportunidade de impor os interesses de São Paulo ao restante do país. Aliados às forças oligárquicas decadentes dos outros estados, as elites paulistas venceram os verdadeiros republicanos - os militares positivistas cujos sonhos, ainda que quixotescos, eram, ao menos, decentes e patrióticos. E por trinta anos, então, impuseram seu império liberal particularista. Até que um novo exército patriótico, nacionalista e reformista, tendo à frente um civil gaúcho baixinho, botou prá correr o último presidente da orgulhosa burguesia bandeirante.
De lá para cá a política paulista foi um contínuo desandar. Tentaram 32, foram derrotados. A saída foi simular uma composição com o baixinho gaúcho até a hora em que fosse possível dar outro bote. Mas quem seriam os novos líderes de São Paulo? Teve de tudo: o corrupto Ademar, do rouba mas faz, o Jânio maluco e um ou outro cristão constrito cheira-não-fede, como Carvalho Pinto, espécie pré-Alckmin. Até o golpe de 64, realizado em nome do anticomunismo - que a elite e a classe média locais apoiaram entusiasticamente - a política paulista oscilou entre a demagogia, o golpismo e o semsaborismo cristão, personificados por aquelas três figuras patéticas.
Diante dessa tacanheza, os truculentos generais não tiveram qualquer dificuldade em São Paulo. Designaram Maluf para interpretar a alma paulista e este representou o papel com esmero, sempre aplaudido de pé pela platéia eleitora local. Tão bem que continuou no palco até mesmo depois da queda dos ditadores.
A história recente continuou na mesma toada depressiva. A única novidade foi o surgimento de uma nova força política no ABC: o petismo que, embora apoiado numa ampla base social, em escala nacional, não foi até o momento capaz de furar o cerco conservador estadual. Na ponta oposta, Montoro e Covas tentaram sem sucesso reanimar o espírito dos seus conterrâneos com um arremedo de socialdemocracia, que rapidamente retornou aos seus princípios ideológicos de origem: o velho liberalismo, rebatizado de neoliberalismo. Criado nos laboratórios de ciência política da USP, ele teria FHC como seu mentor e logo seu executor nacional.
Hoje tal projeto se encontra liquidado na maior parte do país em face do novo ímpeto de reforma social encabeçado pelo PT. Mas teima em sobreviver em São Paulo, cuja população, até agora parece dormir ao som tedioso do seu líder sem projeto. Quando será a hora da virada?

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Freud, a mãe e as outras

Não é raro ouvir dizer que Freud era um patriarca misógino, incapaz de compreender a feminilidade e a sexualidade da mulher. No fim do século XX, especialmente, tal senso comum se expandiu paralelamente ao avanço da neurobiologia e das ciências cognitivas, que prometiam jogar por terra as teses psicanalíticas, consideradas precientíficas e farsescas.
Proliferaram, nesse contexto, os livros negros recheados de escândalos envolvendo as relações entre Freud e as mulheres, tanto suas pacientes quanto as de sua família.  E para completar a cena, alguns grupos feministas também se juntaram na intensa campanha difamatória contra aquele pensador seminal.
O livro As mulheres de Freud, de Lisa Appignanesi (romancista e escritora) e John Forrester (professor de história e filosofia da ciência da Universidade de Cambridge) - publicado originalmente em 1992, na Inglaterra, e neste ano no Brasil -, ao fugir desse padrão raso, espalhafatoso e maniqueísta, contribui para repor de maneira criteriosa o lugar feminino no nascedouro da psicanálise. Elaborado a quatro mãos como um conjunto de biografias intelectuais das mulheres com quem Freud conviveu, trata do assunto com profundidade, inteligência e sensibilidade. Fartamente documentado, combina biografia com investigação psicanalítica e histórica.
As mulheres de Freud são personagens reais, cada uma com seu peso na constituição das próprias teorias psicanalíticas: as mulheres-chave da sua família (a mãe, a esposa, as filhas, particularmente a herdeira Anna), as famosas pacientes histéricas e as primeiras analistas do seu círculo (Lou Andreas-Salomé, Helene Deutsch, Marie Bonaparte, entre outras). 
Ao narrar e analisar essas trajetórias cheias de conflitos e criatividade intelectual, o livro permite entrever não só a sombra do talentoso médico judeu em suas vidas, como também o vulto delas na vida e na obra de Freud. E o quanto o surgimento da psicanálise foi um empreendimento igualmente feminino, ao contrário do que dizem seus detratores, feministas ou não.
A última parte dessa bela obra discorre sobre os desdobramentos da questão feminina das primeiras décadas do século XX aos tempos recentes. Traz instigantes incursões teóricas sobre a feminilidade em Freud - a construção do conceito de mulher, suas contradições e transformações; o debate sobre a feminilidade no campo psicanalítico de Melanie Klein a Lacan; e as controversas relações entre feminismo e psicanálise.
Faltam apenas alguns pedaços para o fim da minha leitura do livro. Uma pena que suas setecentas e tantas páginas tenham passado tão rápido.

domingo, 15 de agosto de 2010

Maria da Conceição Tavares, lúcida economista aos 80 anos

O que é bom deve ser divulgado. É o caso da entrevista com Maria da Conceição Tavares, reproduzida na revista Carta Capital desta semana (e preparada para uma coletânea sobre a vida e obra dessa polêmica e respeitada economista, a ser lançada ainda neste mês na comemoração dos seus 80 anos).
Alguém se lembra dela depois de duas décadas de hegemonia do pensamento neoliberal? Acho que pouca gente, inclusive entre os estudantes e novos profissionais da área. Mas vale a pena retomar as idéias dessa pensadora que formou os melhores e mais generosos quadros da economia política brasileira, lamentavelmente isolados durante os longos anos da ditadura militar e do reinado tucano nos anos 90.
Lúcida e direta em suas respostas, ela se reconhece influenciada pelas idéias de Darcy Ribeiro e Celso Furtado, dentre outros intelectuais provenientes do ISEB, da CEPAL e do marxismo. Combate vigorosamente as teses de Fernando Henrique Cardoso nos tempos em que ele e outros intelectuais uspianos paulistas formularam a teoria da dependência e a crítica ao suposto populismo de Vargas. Teses que fundamentaram, aliás, a política neoliberal de FHC, armada para demolir a herança do nacional desenvolvimentismo que àquela época parecia ainda ecoar nas vozes de Brizola e Lula. Eis o que Conceição Tavares diz sobre o presidente príncipe dos sociólogos:

"Nao esperava que um intelectual do porte de FHC desmontasse a Constituição, sobretudo nos aspectos do Estado do bem-estar e da soberania nacional. Houve muitos prejuízos à republicanização do Brasil, sobretudo por causa da privatização, do endividamento explosivo (...) da política de repressão aos movimentos sociais e da submissão ao Fundo Monetário Internacional (...). A regressividade distributiva da política fiscal, tanto do lado da receita quanto da despesa, foi agravada pela política monetária (...). Assim, em vez de encaminhar-se pelas aspirações e lutas econômicas e sociais da década de 80, o Estado brasileiro converteu-se em um Estado do mal-estar social".

E já que estamos falando de engajamento político, imprescindível no momento eleitoral que atravessamos, não custa prestar atenção, igualmente, no que essa velha senhora reformista diz sobre a candidata Dilma Roussef. Arrebenta, Maria da Conceição!



quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Uma noite incendiada

E depois disso (vejam post anterior) ainda fui ao cinema assistir ao belíssimo documentário de Renato Terra e Ricardo Calil sobre o festival de música popular brasileira de 1967, organizado pela TV Record. 
Estão todos lá os ídolos da minha geração: Chico, Caetano, Gil, Edu, Os Mutantes, Marília Medalha, MPB4 e até Sérgio Ricardo, aquele que quebrou o violão. Em cenas recuperadas da época e em depoimentos recentes para o filme. Sem nenhuma melancolia, nenhum saudosismo ou ressentimento. Mais vivos do que nunca, livres do peso do passado e, ao mesmo tempo, reconciliados com o tempo histórico.
Experimentei o mesmo sentimento. Entretanto, uma coisa me provocou algo estranho: não tanto uma tristeza, nem mesmo uma desilusão, mas talvez um pouco de raiva, de ira... uma coisa desse tipo. Qual a razão disso? Só após sair do cinema me dei conta da origem dessa sensação de desagrado.
Confiram vocês também caso vejam o espetáculo. Não há uma cena, uma tomada da multidão no teatro, um close dos artistas ou mesmo dos apresentadores e repórteres, em que não se note um cigarrinho bem aceso nas mãos. Uma densa fumaça pelos ares, muitos tocos pelo chão, brasinhas a crepitar na ponta das bitucas.... Tudo tão natural quanto provavelmente (nem tanto) era natural um baseado quando este ainda não estava ligado ao pecado do tráfico. Um baseado do paraíso.
Tal foi o desagrado. Não com 1967, no que eu fui e no que fomos, mas no que nos transformamos. Inocentes decaídos, paranóicos hipocondríacos da máquina biopolítica global.
Com esse sentimento, ainda acendo um e grito: Arreda-te Serra! Não passarás!

Filósofos reclamões

Hoje fui ver um debate sobre as perspectivas da universidade pública para o próximo decênio. Debate organizado por dirigentes universitários paulistas e, embora dirigido à comunidade universitária em geral, teve como público dominante os próprios dirigentes e seus assessores. E é bom que se diga, na maioria ligados às áreas de aplicação tecnológica, atualmente hegemônicas nas ciências exatas e biológicas.
Dos três palestrantes, dois eram das ciências humanas e o outro médico, todos experientes e no topo da carreira acadêmica. As exposições foram de altíssimo nível e poderiam, certamente, estimular a reflexão sobre os impasses e possibilidades da universidade no mundo mercadológico-midiático contemporâneo. Eu disse poderiam, pois duvido que tiveram ou terão tal efeito entre os presentes.
Tomo o caso da palestra da filósofa Olgária Matos, ponto alto do debate. Ao discorrer sobre as diferenças entre a universidade moderna - aquela que morreu lá pelos anos 70 do século passado - e a universidade pós-moderna - emergente desde então, seu balanço do que ganhamos foi melancólico, para não dizer pessimista. Perdemos os valores humanistas da filosofia, das letras e das ciências como condição para a emancipação humana. Ganhamos os valores da produção tecnológica para o mercado, o controle imperioso da pesquisa para a tecnologia imediata, não importa que sentido tenha. Mas a contabilidade das perdas e ganhos (já que é na lógica contábil que hoje habitamos) vai muito além deste breve resumo, conforme demonstrou a filósofa.
A grande questão que resultou da discussão foi - qual o papel reservado para as humanidades na universidade mercadológica de resultados da atualidade? Eu mesmo fiz esta pergunta, ao final, mas ninguém soube responder. Ao sair do auditório e me despedir de alguns colegas engenheiros, um deles se referiu à minha indagação (é claro, pensando indiretamente na palestra de Olgária Matos) dizendo: mas vocês das ciências humanas só sabem reclamar!
Tenho de concordar com ele. O único papel que nos resta talvez seja reclamar, inclusive dos novos transumanistas (historiadores, filósofos, sociológos, geográfos, professores de letras) que também já se renderam à repetição (pois que produção não é) em série de inutilidades tecnológicas. Aos demais só cabe a tarefa de, uma vez ou outra, adornar o mundo cão dos negócios universitários com pensamentos belos, mas obsoletos, que entrarão por um ouvido e sairão pelo outro.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Como ler José de Alencar nas aulas de História

Juan Moravagine Carneiro, que de vez em quando passa por esta página, pede que eu sugira alguns contos para usar em aulas de História. A pergunta me fez pensar numa série de questões, por exemplo: como ensinar História na atualidade, quais as possibilidades de trabalhar com a fonte literária, se os alunos de hoje lêem Literatura ou o que lêem, e várias outras.
Pela importância do assunto, resolvi torná-lo público no blog sem consultar o próprio interessado. Espero que me desculpe por esta leviandade. Mas não quero falar aqui de forma acadêmica, como um sujeito suposto saber lacaniano, embora também já tenha redigido alguns artigos especializados a esse respeito (caso queiram consultá-los, as indicações constam do meu Lattes. Basta acessar o link ao lado).
A verdade é que não existem receitas prontas para explorar a Literatura seja na pesquisa histórica seja nas aulas de História. Cada caso é um caso. E cada um tem seu contexto. Faltou o amigo dizer, por exemplo, se leciona em escola pública ou privada, no período diurno ou noturno, se no ensino fundamental, médio ou superior, se para mulas do tráfico, camponeses colombianos, peruas daslus ou brothers do Morumbi,  se a sua escola aceita inovações, se os colegas gostam de dar aulas, e até que ponto ele mesmo aceita ir adiante em seu trabalho pedagógico. Ou antipedagógico, que é o mais apreciável e recomendável.
Não seria difícil fazer uma lista de contos e de autores que contribuam para a compreensão histórica. Todo ano sai uma relação desse tipo nos jornais. É só misturar (no que tange aos nacionais) um pouquinho de clássicos com outros modernos: uma pitadinha de Alencar, Machado de Assis, uma porção de Monteiro Lobato, Mário de Andrade, uns pingos de Rubem Fonseca. O que não adiantará nada. Os alunos continuarão a detestar História e, principalmente, Literatura. Caso leiam, será apenas para participar do vestibular. É isso o que o amigo quer? Eu não.
Ouve-se de todo lado que a molecada atual não lê romances, poesia nem livros de História. Disso reclamam professores, pais, dirigentes e a mídia entendida. Pois vou confessar uma coisa: no lugar deles eu também não leria. Não é à força da palavra pedagógica e moral que se aprende a gostar dessa modalidade de textos. Literatura e História pressupõem uma escola poetizada, aulas literalizadas, professores apaixonantes. As nossas escolas, as nossas aulas, os nossos currículos, os nossos professores (sempre há exceções, como o inspirador deste texto) vivem à margem disso. Nossa escola já faliu há muito tempo, sinto muito.
Meus filhos, quando pequenos, diziam que as professoras de português (nada de machismo: no caso deles eram mulheres, mas também poderiam ser homens) julgavam os alunos imbecis: pediam que eles lessem estorinhas de estrelinhas do céu, de tartaruginhas ecológicas e menininhas de vestido azul.... As santas professoras mal sabiam que seus pupilos já tinham visto sexo ao vivo no computador, e se sabiam, desejavam reenviá-los à pureza infantil prefreudiana. Já adolescentes e críticos, minhas crianças ainda não se conformavam com a obrigação de aguentar as frases solenes de Peri e Ceci, tão inverossímeis, e as descrições altaneiras do faroeste colonial brasileiro. 
Não será por decreto que teens desse tipo, nascidos do útero frenético do computador e amamentados por games e videoclipes, apreciarão os intermináveis devaneios literários de outrora. Dirão vocês que eles não são a regra, tudo bem, mas como é que se poderia também esperar, num outro hipotético e contrastante contexto social,  que uma adolescente favelada, futura modelo-chuteira, dançante do créu, leia Machado de Assis, Camões, Grande Sertão Veredas, Dostoiévsky? A não ser que se imagine haver, perdido em alguma selva amazônica, algum índio puro e desimperializado do globo rural. Afora, evidentemente, a paradigmática cabocla Marina Silva. 
Mas tem solução se considerarmos a média da nossa clientela escolar. Eu usaria uma estratégia de choque. Levaria os alunos para bem longe da escola, talvez a um salão improvisado de teatro, e desenvolveria com eles numerosos exercícios de distanciamento, sem consulta à internet exceto quando absolutamente indispensável. Criaria uma espécie de big brother às avessas, pois sem público. Todos viveriam experiências cênicas de incorporação de ambientes e personagens distantes da vida presente: sem televisão, computador, geladeira, luz elétrica, hamburguer, leite de saquinho, celular, sofá, mamãe e papai. Experimentariam o silêncio do mundo prémoderno, a escuridão das noites de tochas, a solidão do ser desglobalizado.
Só no final dessa vivência cênicocorpórea eu voltaria a propor a leitura dos textos. É provável que, ao fim e ao cabo, apenas dois dos quarenta alunos passem a gostar de Alencar. O que, sem dúvida, é bastante compreensível no que respeita ao escritor cearense. Mas, se pelo menos um desse conjunto decidir sair do simulacro do real e viver teatralmente a ficção da vida,  então terá valido a pena a experiência.

sábado, 7 de agosto de 2010

De miolos bem lavados

Esvaziei minha cabeça nestes dias. A mente oca também é ocasionalmente necessária. Escrever sobre o quê? Nada me interessava. As palavras, pelo menos para mim, exigem alguma paixão, algum ódio, algum amor, um pouco de complacência, uma intransigência absoluta. Nenhum desses sentimentos me batia por dentro.
Escrevi um rascunho sobre o debate eleitoral dos presidenciáveis. Parti das idéias de Slavo Zizek para indagar se algum candidato tentava arriscar o impossível, como ele propõe ao nosso tempo. Obviamente, o pressuposto era inaplicável em nosso caso. Além disso, não soube como concluir o texto, sou péssimo analista político. Nem sei o qual é o limite entre o possível e o impossível.
Por isso decidi esvaziar a cabeça por uns dias. Fui ao cinema ver O escritor fantasma. Roman Polansky arrasa, como sempre, livre ou preso. Preso na liberdade. Mas o filme me fez bem. Me descobri o próprio fantasma, vazio de palavras. Afinal, conforme sugere Lacan, tentemos lavar um pouco mais nossos miolos. Sugiro a todos uma passagem por essa condição humana:

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Movimento "Salve a TV Cultura"

Os tucanos estão desmontando a TV Cultura. Prometem demitir 1400 funcionários. Conhecemos essa receita. Em nome da racionalização administrativa, do controle de gastos e da desburocratização, simplesmente privatizam tudo.
É o que acontecerá também com uma emissora que chegou a ser modelo de TV pública, que colocou no ar programas inteligentes e criativos. Lembram-se do "Ensaio", do "Café Filosófico", do "Castelo Ratimbum", do "Roda Viva" (bem antes do Heródoto?), entre muitos outros? Pois bem: toda essa produção televisiva de ponta está ameaçada.
Sobrarão na TV aberta apenas os canais de alta rentabilidade do mercado religioso, a Globo e alguns outros poucos competidores, obrigados a mostrar na telinha a mesma mediocridade para manter a audiência. Afinal, para a massa serve qualquer coisa: amenidades e exploração da barbárie.
Foi para combater tal ameaça que Luis Nassif lançou o movimento Salve a TV Cultura, uma iniciativa que deve ser apoiada. Para participar acesse o link abaixo:

http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/movimento-salve-a-tv-cultura

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Meu coração no webometrics ranking web

Leio no ijornal que a USP caiu do 58º para o 122º lugar na classificação das universidades mais qualificadas do mundo. Perdeu, portanto, 64 posições, de acordo com o último ranking das melhores instituições de ensino superior divulgado pela Webometrics Ranking Web of World Universities. As instituições norteamericanas figuram no ranking até a 21ª colocação, com a Harvard University, o Massachusetts Institute of Technology e a Stanford University à frente. A primeira universidade europeia no levantamento é Cambridge, da Inglaterra. Na tabela específica da América Latina, cinco universidades brasileiras estão entre as melhores, embora a USP, primeira colocada na lista anterior, também tenha sido vencida no subcontinente pela Universidad Nacional Autónoma de México.
Muita gente do ramo nacional vai comemorar. O espírito da coisa é exatamente esse: competir. Que vençam os melhores! Eu, que sou de uma universidade coirmã (cuja família, naturalmente, tem lá suas rivalidades), também poderia fazer coro à celebração. No entanto, sinto dó. Não propriamente da USP. Mas de nós mesmos, acadêmicos ainda tão pouco adestrados para correr nesse jockey club global.
Informam os classificadores que o relatório leva em conta o desempenho global e a visibilidade das instituições na web, incluindo indicadores de pesquisa e qualidade de estudantes e professores. Me vem à mente a indagação de como são construídos tais indicadores, de como medir critérios de qualidade, de como aquilatar descompassos em termos de financiamento para o melhor desempenho de cada universidade, de como avaliar a pertinência das formas de inserção na web. Nada disso, entretanto, me importa. Deixo a tarefa para os especialistas, quem sabe interessados em acrescentar alguns pontos nos seus rankings de produção!
Prefiro refletir, aqui com meus botões e teclas, o que será das nossas ciências, histórias, filosofias, antropologias, literaturas, artes e poesias quando tudo for reduzido a miseráveis números, se é que já não o foram. Quando tudo passar a ser testado à prova da inovação, como já o é. Quando tudo tiver de ser internacionalizado, como já deve. Nesse caso, seremos apenas números marginais. Já somos.
Tento me refugiar neste blog e ainda passeio pelo twitter à cata de alguma ciência, de alguma história, de alguma poesia, de alguma expressão livre dessa febre irrefreável de medição e concorrência. Doce engano! Nenhuma página resta ilesa na grande quantificação universal. Só meu coração ainda sobra à margem.

Disneylândia

O que tenho para hoje, na pressa das horas, na cabeça vazia das coisas cheias, nas palavras já ditas e nos textos (l)idos são só estes brinquedos verbais, alheios de tão nossos: