quinta-feira, 22 de julho de 2010

Teatro macabro

17 horas e 30 minutos de uma quinta-feira de julho, 2010 anos do nascimento do Nosso Senhor Jesus Cristo. Nem frio, nem calor.
O velho magérrimo anda rápido, foge das ruas e dos automóveis, segue para a represa artificial. Senta num banco e contempla a natureza desnaturalizada, a água escura, a márgem fétida. Se caminhasse vinte metros adiante seria mais um na multidão que aguardava a encenação no teatro de arena.
Mas ele preferia o silêncio do seu drama no ermo da terra. Uma hora, duas horas, ficou ali sentado, petrificado, feliz, decidido, a ver luzes invisíveis. Então se levantou, ergueu as pernas magras sobre a mureta, sentou por um instante como num cavalete e depois saltou. Desceu pela grama sobre a bosta das capivaras e caminhou agachado naquela água rasa, preta, sem ondas.
Passara quarenta dos setenta anos à procura da evolução espiritual. Acordava cedo, comia frugalmente em horários rígidos. Nas horas certas da manhã e da noite clamava ao Grande Foco, à Força Criadora. Louvava as leis imutáveis do Universo, prometia a busca da perfeição. Dos espíritos superiores captava luzes e fluidos. Crente da racionalidade, lutara para fortalecer a coisa a que os crédulos chamam de alma. E o próprio corpo, frágil suporte na escalada das reencarnações do espírito.
Sua carne, porém, também enfrentara tentações, como a do Cristo cons-ciência. Apelos do sexo, da vaidade, do egoísmo, da inveja material. Por meses, semanas, anos praticara a limpeza psíquica na grande mesa em torno da qual os mais elevados sacudiam corpos de mentes inferiores, expulsavam obsessores. Tornara-se ele mesmo um militante superior da grande causa universal, cósmica. Presidira sessões, treinara dicção para melhor persuadir os desiluminados. Incansável na purificação da terra, dos ares, das dimensões ocultas.
Já tinha algum tempo que se dedicava à campanha da cremação dos corpos, modo ecológico de se livrar das carnes putrefatas. Das suas próprias, como recomendou explicitamente em documento com firma reconhecida.
Ultimamente pouco falava. Espírito fora do corpo, olhava com desprezo ou compaixão sua morada em ossos e casas de tijolos, a mulher mais nova que lhe prestava cuidados, os barulhos e os cheiros das gentes mortais. Ainda assim, foi acometido por uma regressão do ego: tomou pílulas de tarja preta contra a depressão, implantou dentes artificiais, se perfumou, viu alguns filmes, até cantou.
Comprou um aparelho de MP4, leu o manual de instruções e começou a gravar. De início, se encantou com a própria voz, treinou discursos para as sessões públicas do Centro. Depois, registrou as luzes que passou a ver e o paulatino processo de desprendimento da carne maldita. Já não tinha dúvidas.
Passou no cartório e sob os olhares cobiçosos das testemunhas da seita, doou ao Racionalismo Cristão os terrenos e edificações que juntara no mundo provisório. Ganhou a rua, apressou o passo, chegou ao destino. Se acocorou, cerrou as mãos ao peito, fechou a boca e mergulhou a cabeça na água esponjosa. Ficou ali bem quieto à espera do Grande Foco.
Lá na margem além corria o Festival de Teatro, da vida como ela não é.

4 comentários:

  1. Que aula de niilismo! Que as potências da grande causa nos livre, mesmo nas horas turvas.

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  3. êta imaginação fértil... tome cuidado apenas com os toques e ligações não identificadas no celular. Podem ser as manifestações do Grande Astro e das luzes superiores, manifestando-se agitadamente contra as forças inferiores da matéria, carcomida pelos vícios e convicções egoístas dos humanos, inferiores,viventes do planeta terra. Voz,voz,voz.....

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