sexta-feira, 23 de julho de 2010

Vade retro, Satanás!

Vivemos uma época cheia de contradições. Quando acreditávamos que o progresso científico viria trazer esclarecimento - e estamos sob o pleno reino da ciência, hoje tecnociência - eis que o obscurantismo se manifesta na sua forma mais crua: a religiosidade primitiva. Como o polvo vidente superstar da copa do mundo, com seus oito braços e ventosas sugadoras, a religiosidade ignorante se irradia fantasticamente e tudo suga à sua volta. 
Não se trata de uma questão unicamente cultural ou filosófica, mas de contorno definitivamente político. Nem que se baste na resposta antropológica do respeito à diversidade cultural. O avanço do fanatismo religioso, a proliferação das seitas espoliadoras e manipuladoras dos incultos, o reacionarismo extremo das igrejas tradicionais, a interferência indevida do clero católico, muçulmano ou evangélico nas instituições sociais - são todas manifestações de uma confusão entre o domínio público e o privado e de falência do estado laico, este que talvez tenha sido a maior conquista da civilização moderna.
A proibição do uso da burka na França pode parecer meramente uma imposição autoritária de costumes, um modo de repressão e controle das minorias pelo poder dominante. Nada disso. Significa uma tentativa - possivelmente ineficaz - de restabelecer os princípios fundamentais do republicanismo de 1789, e acima de tudo, um exemplo do choque entre modernidade e primitivismo. E não me venham com os argumentos supostamente pluralistas das filosofias irrracionalistas vigentes! Conheço-os de cor.
No Brasil, as bases de uma república laica nunca foram completadas, a despeito da luta travada pelos republicanos radicais, vencidos pelas oligarquias e seus aliados do clero católico ultratradicionalista. Até meados de 1950, a política nacional, estadual e local era, entre nós, um indecoroso ritual de beija-mão de bispos, arcebispos e cardeais. A igreja dava a sustentação ideológica aos poderosos da ocasião e impedia avanços e reformas sociais.
Nas décadas seguintes houve, é claro, um intervalo marcado pela aproximação entre a esquerda católica, relativamente autônoma em face do vaticano, e os setores sociais oprimidos. Que durou pouco. Agora, o poder conservador da igreja voltou com tudo e ameaça outra vez interferir nas instituições sociais, como o demonstra o episódio recente da condenação da candidatura Dilma por um bispo de Guarulhos. Eco do mais cruel reacionarismo.
Os católicos, porém, talvez nem signifiquem mais o principal problema dessa ordem, considerada sua crescente perda de influência ideológica na sociedade brasileira e queda de prestígio no plano mundial. Perigo maior representa a expansão avassaladora do neopentacostalismo primitivo e malandro, com seus tentáculos sobre os meios de comunicação e o congresso nacional. Até quando teremos de nos submeter às alianças degradantes com eles?
Obrigado pela profissão a ler pilhas e pilhas de teses e dissertações, ultimamente estou também alarmado com um fenômeno inusitado: a infiltração insinuosa dos princípios religiosos no mundo dito científico e acadêmico. Desde a modernidade, desde a dúvida metódica, a ciência se tornou sinônimo de espírito laico. O que será da livre investigação sobre o primado de Deus e das instituições religiosas?
Ontem mesmo, folheei umas dez teses candidatas a livros dedicadas a Deus. Fiquei arrepiado. Nada me resta, a não ser gritar: Vade retro, Satanás!.

5 comentários:

  1. Uma contribuição ao debate sobre a Burca na França - http://tsavkko.blogspot.com/2010/07/religiosidade-versus-laicismo-na-franca.html

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  2. É como eu já te disse no Twitter... Esta última frase/parágrafo é um tanto exagerada, não? Bem... tenho lá meus motivos pra defender teses com o tema "Deus"! rs Este é o tema de minha tese...

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  3. Professor, sei que não precisa disto, mas munição contra a besta nunca é demais. Além do que, se o mestre ainda não viu, é um ótimo vídeo para se dar boas risadas. Porque só rindo para enfrentar estas bestagens.
    http://www.youtube.com/watch?v=3BfQDpARIC4&feature=player_embedded

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  4. A. Celso,
    É sempre um prazer ler os seus textos e conferir tudo o mais que você posta! Lembrei de um livro ("Ciladas da diferença") que li há muito tempo e, talvez, o melhor mesmo seja reler antes de falar bobagem... Seu texto me inspirou a fazê-lo já! Aí vai um trecho:
    "[Pessoas de diferentes orientações] reivindicam que as situações diferentes em que se encontram (...) sejam levadas em conta. Demandam que sua diferença de grupo seja reconhecida como legítima fonte de direitos específicos. Não gerais. (...) A diferença particular como um valor universal, uma condição irrenunciável cuja dignidade se põe na cena política como inegociável."

    Grande abraço grato por compartilhar suas inquietações!

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  5. Gostei muito do seu espaço, retornarei com frequência...

    abraço!

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