segunda-feira, 8 de novembro de 2010

De medo e perseverança

De uns tempos prá cá venho desenvolvendo um medo cada vez maior do correio eletrônico. Digo venho desenvolvendo, com o perdão do gerúndio, porque de uns tempos prá cá  os males têm sido atribuídos unicamente ao indivíduo, em sua infinita solidão e em seu imenso arbítrio. Exemplo disso são algumas pequenas frases, aparentemente insignificantes, que se tornaram comuns na prosa cotidiana. Como estas: fulano fez um câncer, beltrano desenvolveu síndrome de pânico, e assim por diante.
Não muito antes, as doenças, os infortúnios e os pavores eram de responsabilidade transcendental, social, biológica ou cultural: aquele sofria de tuberculose, aquela pegou sarampo ou foi tomada por um encosto. Noutras palavras, o mal sempre vinha de fora, cabendo ao sujeito o papel de vítima, seja por causa divina, seja por razão terrena. Agora, não, vem de dentro do indivíduo, a ele pertence, foda-se!
Seria o caso de especular como se deu esse crescente processo de culpabilização do indivíduo numa escala que em muito ultrapassa a velha moral cristã do pecado. Desconfio que tudo isso seja expressão do poder médico - biopoder, segundo Foucault -, um poder tão avassalador quanto a crença contemporânea na soberania do indivíduo sobre a vida e a morte.
Mas isto não vem ao caso. O que importa é que tenho medo da caixa de correio. Será que alguém mais do universo virtual desenvolve, por responsabilidade própria, tal enfermidade? Será uma doença semelhante à síndrome do pânico, à bulimia ou outras patologias típicas da nossa época, conforme o testemunho televiso noturno dos que descem ao fundo do poço e depois se reerguem pela autoajuda cristã?
Não sei se esse tipo de culpa é só meu, mas o fato é que sinto medo de abrir os emails, assim como, tempos atrás, receava o toque do celular. Não que temesse ouvir do outro lado da linha alguma notícia trágica (pois sei que estas sempre chegam por meios até mais primitivos), e agora tema ler nas mensagens ameaças terroristas ou abrir as portas para algum pirata insidioso.
Nada disso! O que sinto não tem a ver com esses medos enraizados na vida da humanidade dos tempos medievais aos contemporâneos, tão bem descritos por Jean Delumeau e por Yi-Fu Tuan. Afinal, temíamos e sempre temeremos a face da morte, as catástrofes naturais, os surtos de violência e as epidemias. Repetiremos eternamente o temor das forças terríveis, divinas ou naturais,  que não somos capazes de dominar.
Meu medo de emails é de outra natureza, muito mais profano e prosaico. É o medo de algo à primeira vista inteiramente controlável: as mensagens que chegam todo dia de forma inocente, sem esforço, sem carteiro e sem voz, e que em nada se parecem com aquelas trazidas pelos antigos mensageiros, anjos ou demônios. 
O meu medo é das tarefas cada vez maiores nelas contidas e que terei de cumprir para agentes ocultos, modernos e onipotentes: preencher formulário profissional, enviar currículo, emitir parecer, ler projeto, formular projeto, redigir relatório, responder ao orientando, solicitar bolsa (para outro), visitar um novo site imprescindível ... Medo desse sobretrabalho e dessa sobrevalia pós-Marx.
Medo dessas singelas cartas falsas, coloquiais, amigas e íntimas, assinadas com abs e bjs. Ou desses requerimentos rápidos, despidos dos longos prolegômenos da antiga formalidade burocrática, mas, no entanto, tão peremptórios: faça, faça, faça! Medo, enfim, dessas cobranças geralmente gratuitas, enviadas e exigidas nos e para os finais de semana.
Serei eu o único a desenvolver tal pânico? Embora não saiba a resposta, se há descrição clínica dessa patologia, ou alguma estatística disponível sobre os novos enfermos, tomei uma decisão. Já que a responsabilidade sobre o mal é inteiramente minha, decidi desde ontem,  sábado, fazer uso da minha soberania, do meu arbítrio, da minha falta de culpa.
Simplesmente não abri a caixa de correio. E repetirei esse procedimento todo final de semana daqui prá frente. Sei que terei de ter muita fé para enfrentar o mal que é só meu. Mas, como vejo e ouço nos testemunhos da televisão: basta perseverar. Perseverarei!

6 comentários:

  1. jajaja
    Sera um patologia hereditaria?
    Eu tb tenho isso tio!
    Meu medo é do excesso de informação em geral (emails, noticias, blogs e redes sociais)
    Multiplicamos cada vez mais rápido nossas mensagens mas num ritmo que ultrapassa nossa capacidade de absorção. Fora que sao tantos bytes acumulados que gastamos boa parte do tempo separando o joio do trigo.com

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  2. Grande Marília, minha sobrinha, a aventureira da selva espanhola, cataleônica, barcelã.com.es Somos todos pato (s) lógico!

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  3. O que não pode é ter remorso por marcá-los como lidos antes mesmo de abrí-los.

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  4. Medo [J. Velloso]
    Medo de polícia e de bandido
    Medo de Deus e do Diabo
    Medo

    Medo de chegar na esquina
    de voltar pra casa
    de dormir na rua
    de dormir no hotel
    de dormir na igreja
    e de acordar no céu
    Medo

    Medo de viver sorrindo
    e de causar inveja
    Medo de ficar ficando
    e de tudo que tem peça
    Medo do tal relógio
    que bate o fim da festa
    Medo

    Medo de dançar
    medo de parar
    medo de correr
    Medo

    Medo de comer comida
    e de ficar com fome
    Medo de comer fruta
    sem saber o nome
    Medo de comer menina
    e da menina comer homem
    Medo

    Medo de dormir sozinho
    e de acordar ao lado
    de dormir sequinho
    e de acordar molhado
    de ouvir só um pouquinho
    e dizer quero mais apaixonado
    Medo

    Dormindo em cada quarto
    em toda cozinha
    em toda casa grande
    na casa da vizinha
    em cada senzala armada
    Medo dos fantasmas de todo corredor
    Medo do medo esse é o pior
    Medo do medo esse é um horror!

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  5. Bem, acho que se este comentário for aceito serei mais uma aqui a concordar com seu medo fronteiriço.
    Gostei tanto do seu argumento que resolvi segui-lo, neste Impertinências do mundo.
    Não tenho outra saída, depois de ter gostado tanto!Inclusive daquele sujeito de asas lá em cima.
    Quanto ao que escreveu, acho que diria quase da mesma forma quase tudo. Mas, não seria justo.
    Seria plágio.
    Então, como em síntese temos muito em comum, deixo aqui o meu elogio à sua elegia.
    Sinceramente desejo que esteja perseverante, mas sem muita severidade.
    Parabéns pelo texto.E pelo blog!
    Um abraço.

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  6. Oi, professor. Foi por isso q não encontrei um e-mail pessoal para correspondência nesse blog?

    Gostaria de te enviar um texto meu sobre Marco Zero do Oswald e ouvir sugestões suas.

    Abs do Lúcio Jr.

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