quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Por causa do ENEM quase assassinei um dentista alienado

Dia sinistro foi hoje. Prá começar, longo trajeto de taxi até o Ipiranga, local do meu novo trabalho. Andar de taxi quase sempre me irrita, mas ainda é melhor do que ir de ônibus, depois pegar o metrô e ainda enfrentar mais uma trecho de busão, ida e volta, todo santo dia. Nem Cristo aguentaria! O jeito, portanto, é suportar o motorista que fala demais, aquele outro barbeiro, o que puxa assunto de política invariavelmente contra minhas convicções, o carro cheirando mal ... Serei eu irritado demais? Ou terei de recorrer a um baseadinho de viagem para relaxar suave na nave diariamente?
Por tudo isso, foi torturante encarar outra vez o impiedoso taxímetro no final da tarde. Mas era a única saída para repor um pedaço de dente quebrado em pleno almoço, dois dias atrás. É verdade que era um dente lá do fundo, fácil de esconder num sorriso fingido. O problema era a língua que não parava de lamber, segundo a segundo, o áspero caco sobrante. E, como todos sabem, não é fácil controlar uma língua. A solução era procurar um dentista de emergência, uma vez que o meu fixo reside no interior, muito longe. Bastou ir ao Google e - pronto - o horário estava marcado.
Acenei mais uma vez para o taxi. Mas o motorista, fatidicamente, não conhecia o endereço, nem tinha GPS e sequer um guia de São Paulo. Fomos nós num trânsito infernal à caça de informações, às cegas. Só depois de muitas idas e vindas chegamos ao destino. Convenhamos, leitor e leitora, justificava-se inteiramente minha ira!
No prédio luxuoso, acesso controlado ao estilo do Pentágono, chego ao 14º andar. Descrevo meu caso à alegre recepcionista que a tudo responde "com certeza", preencho a ficha com meu nome de batismo e profissão de professor, debito duzentos e cinquenta pratas no cartão, ingresso no minúsculo gabinete de luzes brancas. Mais uns minutos e lá estou eu entubado como numa UTI, o sugador na boca, o nariz saturado da respiração artificial, a britadeira a escavar profundamente o pobre e já demasiadamente vivido canal, os olhos esbugalhados a fitar a testa vermelha do dentista.
Eis que, impossibilitado de falar, de gritar, de me defender, ouço o inevitável comentário - a última coisa que esperava ouvir num dia tão sinistro:
- E o exame do ENEM, heim! Que incompetência do PT! Que vergonha! Que prejuízo pros estudantes!
Por um átimo de segundo me vieram à mente a campanha eleitoral do Serra, a cantilena do PIG contra a política educacional de Lula, os comentários torpes e parciais de Mônica Waldvogel, Paulo Renato e Eunice Durham no Entre Aspas de ontem na Globonews, as falácias direitistas de Demétrio Magnoli sobre o sistema de cotas na universidade.
Nesse contexto mental, o rosto do dentista babaca, tão próximo, de repente se transformou num monstro reacionário, conservador, alienado e golpista. Sem poder debater, retrucar, combater, compulsoriamente calado, simplesmente ergui as pernas e levantei um dos braços com ganas de estrangular o homem de branco.
O que de nada adiantou. Ele continuou sua ladainha ignorante e grotesca, alimentada pela Globo, pela Folha de São Paulo e pela Veja, acreditando que meus gestos significavam apenas pânico de consultório:
- Calma, já estou terminando! Um homem desse tamanho com medo de tratamento dentário!
Estranhamente, foi esta fala tranquilizadora que acalmou meu ímpeto assassino. Tenho de admitir: o mundo é assim como ele é, conclui.

4 comentários:

  1. A este pediria "com certeza" o recibo na saída, ou melhor: pediria nota fiscal!

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  2. "Não penso, não existo, só assisto" - é a frase dita pelos fiéis telespectadores da 'rede esgoto de televisão'.

    Estou seguindo seu blog!

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  3. É uma pena que as pessoas ainda se deixam levar pelas ideias das "aves em extinção"!

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