quarta-feira, 26 de agosto de 2009

O show miolionário da educação II

Em seu último número, a revista Cult traz um dossiê intitulado O conflito das universidades, que deveria ser lido por professores e alunos. Vários intelectuais analisam a degradação do ensino superior no Brasil e há também uma matéria sobre a situação da universidade na França, ameaçada pelas reformas de Sarkozy. Os diagnósticos da crise são conhecidos: a lógica mercantil que se sobrepõe ao pensamento crítico e reflexivo, a correspondência entre a exigência de resultados rápidos (o chamado produtivismo) e a acumulação de capital, o mal-estar das ciências humanas diante da hegemonia das tecnociências.
Mas não é disso que falarei neste momento. Como prometi, quero comentar as imagens postadas dias atrás, extraídas da revista Realidade (atenção, amigos e amigas: realidade e não representação – assunto ao qual hei de voltar várias vezes), que circulou entre 1966 e 1976 com matérias ousadas e várias vezes censuradas pela ditadura militar. Elas haviam sido publicadas numa série de artigos dedicados ao movimento estudantil de 68, à reforma universitária de 69 e seus desdobramentos.
É sabido que na década de 1960 (ou desde o final da década anterior), a bandeira da reforma universitária foi levantada por intelectuais, políticos e estudantes de esquerda como condição básica para o desenvolvimento autônomo brasileiro. Eles buscavam alternativas para substituir o modelo tradicional e elitista da (embora recente) universidade brasileira. Uma delas foi a Universidade de Brasília, projetada por Darcy Ribeiro, mas rapidamente descaracterizada pelo regime dos generais que, com a ajuda de cinco tecnocratas norte-americanos, planejavam coisa inteiramente distinta. A chave do tesouro se encontrava no convênio MEC-USAID, estopim do movimento de 68.
Ted Goertzel, estudante graduado da Washington University e que então realizava pesquisas no Brasil, publicou na Revista Civilização Brasileira, em 1967, uma análise da ideologia de desenvolvimento americano aplicada à educação superior. Segundo ele, os planejadores encaravam a educação universitária como fonte de recursos humanos para a indústria, especialmente o complexo industrial-militar. Em seu depoimento no livro Conversa com historiadores brasileiros, Emília Viotti da Costa também lembra que o projeto encarava os alunos como mão de obra e não como indivíduos e cidadãos e continha uma orientação demasiadamente tecnológica, em detrimento dos estudos humanísticos e da pesquisa científica desinteressada, colocando a universidade a serviço das empresas em vez de a serviço da sociedade como um todo. Opositora da reforma, ela foi convidada várias vezes por centros acadêmicos para expor suas críticas. Nos meses finais de 1968, quando o embate entre os estudantes e o governo se tornara incontornável, foi ainda chamada para debater o assunto, juntamente com José Dirceu e o ministro da Educação, Tarso Dutra, em programa de televisão transmitido ao vivo - uma das razões para a perseguição política que viria sofrer.
A mobilização estudantil de 1968 foi propiciada pela arregimentação de amplas parcelas de jovens da classe média, à procura de oportunidades de educação, cultura, trabalho e vida moderna nas cidades desde o grande fenômeno de urbanização, ocorrido a partir da década de 1950. A educação superior era vista como porta de entrada para esse mundo, mas não havia lugar para todos. A principal questão para a mobilização dos jovens era a existência dos excedentes: aqueles que passavam no vestibular, mas não podiam ingressar na universidade por falta de vagas, principalmente em Medicina e Direito.
A reforma universitária realizada desde 1969 buscou solucionar o problema e, simultaneamente, debelar as organizações estudantis. Em janeiro daquele ano, a revista Realidade publicou matéria intitulada Vamos matar 120 mil esperanças, denunciando a ineficiência e a crueldade do vestibular, bem como seu descompasso em relação ao ensino de segundo grau. O artigo também revelava como a indústria dos cursinhos crescia à custa desse exame. Muitos deles haviam nascido nos centros acadêmicos, na esteira de uma política da UNE que propunha a democratização do acesso à universidade. No fim da década de sessenta, haviam se transformado em indústria, como se nota na reportagem A aula é um show, que não deixava de demonstrar simpatia por essa modalidade de educação empresarial e, ao mesmo tempo, de desqualificar o ensino médio público. À modernidade dos cursinhos, com seus atores, videotapes e computadores, contrapunha as aulas obsoletas dadas nos colégios.
Desde a década de 1970, com o vestibular unificado e classificatório, que forçou o acesso dos candidatos a carreiras antes menos procuradas, com a ampliação das vagas por meio das licenciaturas curtas, com a expansão das escolas privadas e dos cursinhos preparatórios e, principalmente, com o milagre brasileiro, a base social das grandes manifestações estudantis se desagregou, a par da imensa repressão desencadeada sobre a esquerda.
Estavam dadas as condições para a acumulação do capital via empresas privadas de ensino. Jogada di gênio, abastecida ano a ano pela sombra frondosa do vestibular e consolidada dez anos depois, sob a batuta dos governos neoliberais. Complacente e orgulhosa, a universidade pública aprimorou e assegurou o modelo. Moderna, produtiva (o que produz, para que?) e gerencial, ela fechou os olhos diante de um segundo grau público cada vez mais degradado, pauperizado e, de fato, planejado para ser obsoleto.
De que serve trazer à memória a origem do atual modelo universitário brasileiro, recentemente objeto de pequenas alterações que, apesar de tímidas, são tripudiadas ou ignoradas em nosso meio: o PROUNI, as cotas, o sistema de pontuação adicional, o ENEM, o novo vestibular, a reorganização do currículo do ensino médio? Eric Hobsbawm disse que o papel do historiador é relembrar o que os outros esquecem. Ele que me perdoe, mas tenho dúvidas se a disciplina histórica, hoje já transformada em tecnociência, ainda possui essa capacidade. Tampouco creio que obviedades, como as aqui expostas, possam ter algum efeito no mundo de disciplinado labor, doce apolítica e agitado tédio da inteligência globonacional.

3 comentários:

  1. Não sou historiador. Contudo alinho-me àqueles que entendem que a função da história (e seu ensino), como vc mesmo frisa em sua impertinência, não é relembrarmos do que esquecemos, mas propor a diferença, encontrar as rachaduras do tempo, o que foge às normatizações dos pensamentos hegemônicos classistas. Nesse sentido, BARRA 68: SEM PERDER A TERNURA, um documentário de Vladimir de Carvalho sobre a invasão dos militares na também referida Universidade de Brasília, cumpre essa belíssima função de encontrar as rachaduras de seu tempo, por àqueles que viveram as primeiras e horrendas sanções da recém implantada Ditadura. Com isso, e voltando ao tema, creio que o problema esteja exatamente onde A. Celso comenta: participamos da construção de um mundo “(...) disciplinado labor, doce apolítica e agitado tédio da inteligência globonacional” (e porque não “globointernacional”!). Um mundo em que a disciplina e o controle (segundo conceitos deflagrados por Foucault) funcionam “muy bien, gracias”. Viver a Universidade enquanto uma forma elitista de se “matar 120 mil esperanças” ao longo dos anos, e, entre mortos e feridos, salvaguardar seu lugarzinho de saber-poder dentro de uma sala de aula, é de uma mediocridade tacanha! Universidade pública, de acesso restrito é a nossa (infeliz) realidade. È a mascara aceita por todos aqueles que pretendem-se fazedores de histórias e fabricantes de mentiras e desigualdades.

    ResponderExcluir
  2. hum... danou-se.
    bonita honestidade, travosa decerto
    (pausa para um cigarro)
    sem muita chance de retrucar, mas sempre quando as perspectivas são as piores, me lembro de Nietszche, sei que parece auto-ajuda, mas o esquecimento tem sua positividade e seu riso. talvez possamos ainda fabricar um historiador da antimemória... se não para algum fim elevado, ao menos por diversão... "i'll take my quiet life and handshake a carbon monoxide" (Radiohead)

    ResponderExcluir
  3. Rafael,ótimo seu comentário. Vi BARRA 68 e me emocionei muito pq estudei em Brasília logo depois da enorme repressão sobre o movimento estudantil e o movimento docente, quando Honestino Guimarães jogara-se na clandestinidade e logo depois seria morto (até hoje seus restos mortais não foram encontrados). A UnB era linda, sobreviviam ainda traços do projeto de Darcy Ribeiro, mas a repressão era imensa. Wladimir Carvalho fez um comovente documentário. Aliás, o curso de cinema de lá, onde ele lecionava era muito bom. Conheci várias pessoas do curso.
    Sr. Anísio, que bom que tenha tido liberdade para fumar unzinho (cigarro). Aqui em Spaulo não se pode mais, esse é o grande projeto do Serra. Ainda bem que tenho o meu blog para sublimar esse desejo compulsivo, por excelência, freudiano.

    ResponderExcluir