Raover me enviou por e-mail, semanas atrás, um texto incitante de Luis Felipe Pondé, intitulado As freiras feias sem Deus, sobre a lei antifumo, definida pelo autor como fruto do impulso fascista moderno. Li, concordei com seu teor, mas não pensei em me alistar na guerrilha contra a medida, não só porque ela parece inócua e menos importante diante de outras questões, como também porque sempre encontro da mesma forma que a maioria das pessoas, um jeitinho de burlá-la.
Mas outro dia minha indignação individualista veio à tona quando eu, no terminal rodoviário Barra Funda, buscava em vão um lugar para satisfazer preventivamente meu vício, antes de embarcar para uma longa viagem de seis horas, em total abstinência. Decidi, então, escrever estas linhas partindo da mesma pergunta feita por Pondé: “O que move as pessoas, em meio a tantos problemas, a dedicar tamanha energia para reprimir o uso do tabaco?” Evoquei mentalmente algumas hipóteses para buscar a resposta.
A mais óbvia seria a necessidade dos eventuais candidatos à presidência da República de inventar medidas de alto impacto promocional, capazes de justificar a ausência de projetos políticos consistentes. Ocorre que essa é uma tendência mundial que não se explica simplesmente como factóide, comum aqui e alhures. Há, também, é claro, a hipótese dos grandes investimentos econômicos em jogo, especialmente dos laboratórios farmacêuticos internacionais interessados em escoar seus novos medicamentos antivício, mas esta seria prontamente rebatida como teoria conspirativa banal.
Foi assim que me lembrei das especulações céticas do falecido Jean Baudrillard, que li no século passado, a respeito da nossa época como uma era do arrependimento. Cito um trecho: “Dantes interrogávamo-nos sobre o que poderia suceder depois da orgia (after the orgy): trabalho de luto ou melancolia? Nem uma coisa nem outra, sem dúvida, mas uma interminável depreciação de todas as peripécias da história moderna e dos seus processos de libertação (dos povos, do sexo, do sonho, da arte e do inconsciente), em suma de tudo o que constitui a orgia do nosso tempo, sob o signo do pressentimento apocalíptico do fim de tudo isso. Em vez da fuga para frente, preferimos o apocalipse retrospectivo e o revisionismo em todas as coisas – todas as sociedades se tornam revisionistas, repensam tudo pacificamente, branqueiam os crimes políticos, os escândalos e também as feridas, alimentam o seu fim... A própria celebração e a comemoração não são mais do que a forma branda do canibalismo necrófago, a forma homeopática do assassínio cauteloso. É a tarefa dos herdeiros, cujo ressentimento para com o morto não tem fim”.
Vinte anos depois, essa idéia parece fazer sentido mais do que nunca. O papa pede perdão pelos crimes da Inquisição, Lula pela escravidão africana no Brasil, os alemães pelo holocausto, Clinton por ter gozado com a felação da secretária, o governador por ter ocultado sua homossexualidade dos cidadãos. Os obesos arrependem-se do excesso de comida, os gramáticos dos vocábulos politicamente incorretos, os homens pelo machismo, as mulheres pela subserviência secular aos machos – e assim por diante, numa autoflagelação infinita. No meu caso, no nosso caso, quantas penitências teremos de pagar pelos milhares de cigarros fumados em bares, ônibus e até aviões, quando aquele rolinho de papel era apenas um pequeno e inofensivo prazer?
Passar a história a limpo, retirar dela os atos deflagrados pelos instintos, ultrapassar nossa animalidade, recalcar de vez as fontes inconscientes e conflituosas da vida. Pulsão de morte. É esse ressentimento (sentir outra vez, reviver compulsivamente a dor) que alimenta a proliferação do biopoder em nossa época.
Para terminar, deixo aqui um alerta do mesmo filósofo apocalíptico. Principalmente à classe média, maior consumidora dessa compulsão: “o que é fantástico é que nada do que julgávamos ultrapassado pela história desapareceu verdadeiramente, está tudo ai, prestes a ressurgir, todas as formas arcaicas, anacrônicas, intactas e intemporais, como os vírus no fundo do corpo”. E como as bitucas de cigarro lançadas sobre as sarjetas da vida.
Mas outro dia minha indignação individualista veio à tona quando eu, no terminal rodoviário Barra Funda, buscava em vão um lugar para satisfazer preventivamente meu vício, antes de embarcar para uma longa viagem de seis horas, em total abstinência. Decidi, então, escrever estas linhas partindo da mesma pergunta feita por Pondé: “O que move as pessoas, em meio a tantos problemas, a dedicar tamanha energia para reprimir o uso do tabaco?” Evoquei mentalmente algumas hipóteses para buscar a resposta.
A mais óbvia seria a necessidade dos eventuais candidatos à presidência da República de inventar medidas de alto impacto promocional, capazes de justificar a ausência de projetos políticos consistentes. Ocorre que essa é uma tendência mundial que não se explica simplesmente como factóide, comum aqui e alhures. Há, também, é claro, a hipótese dos grandes investimentos econômicos em jogo, especialmente dos laboratórios farmacêuticos internacionais interessados em escoar seus novos medicamentos antivício, mas esta seria prontamente rebatida como teoria conspirativa banal.
Foi assim que me lembrei das especulações céticas do falecido Jean Baudrillard, que li no século passado, a respeito da nossa época como uma era do arrependimento. Cito um trecho: “Dantes interrogávamo-nos sobre o que poderia suceder depois da orgia (after the orgy): trabalho de luto ou melancolia? Nem uma coisa nem outra, sem dúvida, mas uma interminável depreciação de todas as peripécias da história moderna e dos seus processos de libertação (dos povos, do sexo, do sonho, da arte e do inconsciente), em suma de tudo o que constitui a orgia do nosso tempo, sob o signo do pressentimento apocalíptico do fim de tudo isso. Em vez da fuga para frente, preferimos o apocalipse retrospectivo e o revisionismo em todas as coisas – todas as sociedades se tornam revisionistas, repensam tudo pacificamente, branqueiam os crimes políticos, os escândalos e também as feridas, alimentam o seu fim... A própria celebração e a comemoração não são mais do que a forma branda do canibalismo necrófago, a forma homeopática do assassínio cauteloso. É a tarefa dos herdeiros, cujo ressentimento para com o morto não tem fim”.
Vinte anos depois, essa idéia parece fazer sentido mais do que nunca. O papa pede perdão pelos crimes da Inquisição, Lula pela escravidão africana no Brasil, os alemães pelo holocausto, Clinton por ter gozado com a felação da secretária, o governador por ter ocultado sua homossexualidade dos cidadãos. Os obesos arrependem-se do excesso de comida, os gramáticos dos vocábulos politicamente incorretos, os homens pelo machismo, as mulheres pela subserviência secular aos machos – e assim por diante, numa autoflagelação infinita. No meu caso, no nosso caso, quantas penitências teremos de pagar pelos milhares de cigarros fumados em bares, ônibus e até aviões, quando aquele rolinho de papel era apenas um pequeno e inofensivo prazer?
Passar a história a limpo, retirar dela os atos deflagrados pelos instintos, ultrapassar nossa animalidade, recalcar de vez as fontes inconscientes e conflituosas da vida. Pulsão de morte. É esse ressentimento (sentir outra vez, reviver compulsivamente a dor) que alimenta a proliferação do biopoder em nossa época.
Para terminar, deixo aqui um alerta do mesmo filósofo apocalíptico. Principalmente à classe média, maior consumidora dessa compulsão: “o que é fantástico é que nada do que julgávamos ultrapassado pela história desapareceu verdadeiramente, está tudo ai, prestes a ressurgir, todas as formas arcaicas, anacrônicas, intactas e intemporais, como os vírus no fundo do corpo”. E como as bitucas de cigarro lançadas sobre as sarjetas da vida.
Nós, os fumantes (ou ex-viciados, como eu), para fumar um simples cigarro, teremos que contrabandiá-lo, fumar às pressas e às escondidadas, torcermos pra que nossos filhos não nos denunciem....Fumar causa câncer. O que me pergunto: será pelo stress de fumar ou pela fumaça em si?
ResponderExcluirRaover,fumar evidentemente faz mal, mas tb faz bem, como aliás, muitas outras coisas: álcool, outras drogas, medicamentos. O problema é o estado intervir com proibição naquilo que deveria ser do arbítrio individual. E principalmente, o problema é a lógica do biopoder que define o que é saudável ou não, o que é são ou não, o que é o corpo aceitável e assim por diante. Concordo com vc.
ResponderExcluir