terça-feira, 8 de dezembro de 2009

A depressão dos felizes

E por falar em felicidade, é hora também de tratar (d)a depressão. Como não tenho competência para isso, deixo a vocês duas sugestões de leitura sobre o assunto - uma que o aborda de modo específico, outra que o inclui em seus argumentos mais amplos: respectivamente, O tempo e o cão: a atualidade das depressões, de Maria Rita Khel;  e Em defesa da psicanálise: ensaios e entrevistas, de Elisabeth Roudinesco (sempre omito as editoras para não fazer propaganda comercial).
Como lembra a primeira autora, a depressão não era conhecida com este nome na época de Freud. Outros eram os males psíquicos predominantes, por exemplo, a melancolia e a histeria, principalmente a última, resultante da repressão da sociedade burguesa. Que fenômeno é esse, quase epidêmico e até motivo de auto-identificação perversa sob os auspícios do biopoder? Uma expressão da covardia moral, nos termos empregados por Lacan para designar aqueles que renunciam ao desejo (secreto e inconsciente)? Mas como isto ocorreria numa sociedade que, diferentemente daquela de 50 anos atrás, se dedica exatamente à proliferação dos desejos? Um mal-estar crescente que interroga as condições atuais do laço social? Ou as duas coisas representando um novo desafio à psicanálise? 
As duas autoras coincidem nos seus pontos de vista. Cito um trecho de cada livro só para estimular a saliva dos leitores:

"O imperativo do gozo que circula nas sociedades capitalistas do século XXI não aboliu a dívida simbólica nem anulou a principal característica do sujeito da psicanálise - o conflito psíquico. Por outro lado, a equivalência entre os ideais de felicidade e a supressão do conflito constrói a perspectiva fantasiosa de que o sujeito possa se tornar idêntico a si mesmo, anulando sua divisão originária. O empobrecimento da vida subjetiva que resulta das diversas estratégias contemporâneas de anulação do conflito - seja por via medicamentosa ou pela adesão sem reservas às ofertas de gozo em circulação no mercado - é cúmplice do atual crescimento dos casos de depressão" (Kehl).

"Tudo se passa como se essa coisa, o biopoder, tendesse cada vez mais a se instalar. Como se a rebelião, ou mesmo a subversão, se tornasse cada vez mais ilusória, substituída por um confinamento securitário, pelo conformismo e higienismo. Essa nova barbárie manifesta-se por uma tristeza da alma e pela impotência do sexo. Diante das depressões que proliferam em nossas sociedades democráticas, a renúncia a explorar o inconsciente decorre assim de um verdadeiro processo psicológico de normalização. A depressão é uma entidade amorfa, de contornos nosológicos mal definidos. É um corolário do abandono da luta constitutiva da liberdade em nossas sociedades democráticas modernas" (Roudinesco).

Vem o ai o fim de ano, como já disse, época de felicidade obrigatória e, como diz uma amiga minha, de depressão obrigatória. Vai aqui um conselho a quem se sentir assim. Depois da comemoração da meia-noite, quando já extravasadas todas as alegrias, fuja para um canto solitário e leia esses livros. A alegria também precisa de dor.

5 comentários:

  1. Gostei muito desse recente post! Não só desse, venho sempre acompanhando as atualizações por aqui, mas resolvi comentar o último. As duas indicações de livros são maravilhosas, além do mais, essa dupla aí se destaca no cenário atual das ciências humanas, e da psicanálise, especificamente. Gosto demais dessas mulheres, apesar de não ter lido ainda nenhuma das obras (você não quis fazer a propaganda, mas as duas editoras são um pouco "salgadas"). O tema também é atual, e já faz algum tempo... é pra se pensar. Essa dinâmica da felicidade forçada (ou, pelo menos, "desejada" acima de tudo, imposta pelo fora) parece mesmo convencer a todo mundo, e realmente se destaca mais ainda nos fins de ano! Gostei mesmo da sugestão deixada, a felicidade precisa mesmo de um pouco de dor; nós precisamos mesmo de reflexão, de um pouco de retraimento.. senão alegria acaba sendo pseudo-alegria, ou suposta alegria, ou alegria alienada, ou alegria alheia, mas acho que dificilmente nossa própria alegria.

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  2. E como canta Wander Wildner "Eu não consigo ser alegre o tempo inteiro"

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  3. Saio agora p/comprar as obras.

    Enfim encontro pessoas que ousam desmascarar essa "felicidade" opressiva. A quem mesmo interessa tantos sorrisos satisfeitos e passivos?

    Obrigada por trazer essa questão.

    EG

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  4. Existe alguma logica... onde existe logica se não em valores intencionalmente e/ou inconscienteente produzidos? não sei o que é inconsciente, sua relação com intencionalidade...
    mas parece logico: a vontade de morte aciona a vontade de vida... conhecemos o prazer e a felicidade no seu limite com a dor e a infelicidade.
    Não posso saber o que gosto (o que é meu gozo) se não conheço o desgosto, o desprazer.
    "ai... eu não sabia que amava minha namorada até romper com ela..."
    Eu (por exemplo) não sabia que não gostava de trabalhar até trabalhar.
    O problema é que as contradições todas e seus efeitos (exemplo, na psique) não são produtos da escolha, mas socialmente postos.
    Não trabalho porque desejo... não desejo porque desejo... onde é produzida a vontade?
    Como pensar pra alem da limitada experiencia individual?
    sou produzido,mas por quem, por que, para que?

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  5. o problema é ver tudo em escala biografica


    acaba sendo uma forma de legitimar a desigualddade

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