segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Conceitos mornos, palavras arrependidas

Não sei se isso ocorre com vocês, mas a mim, um simpático chato, causa irritação. Falo do uso frequente e massificado de certas palavras em nosso meio. Palavras que se tornaram clichês, cuja origem é inútil buscar, se é que algum vocábulo nasce com identidade própria.
O fato é que, assim como as bugigangas do mercado global, copiamos, reproduzimos e consumimos termos-bugiganga das universidades da 25 de março, da zona franca de Manaus, do Paraguai, da China, de Miami e, principalmente, de Paris.
O que mais me incomoda é representação. Tanto que desde já proibo que meus alunos e orientandos empreguem esta expressão. A não ser que saibam exatamente o que pretendem dizer ao usá-lo. Significa ideologia? Sim, porque tem gente que o emprega nesse sentido marxista, embora de maneira ignorante. Para outros é simulação ou reflexo de algo (que também ignoram) e para a maioria não significa nada. Trata-se de apenas uma banalidade, um vazio de sentido.
Representação é um desses conceitos já criados no processo contemporâneo de esfriamento intelectual, que vão murchando quanto mais usados. De tal maneira que tudo passa a ser objeto de representação. Só os seus enunciadores não se dão conta que eles mesmos também já se transformaram em pastiches.
Há, ainda, muitos mais conceitos a exorcizar. Mas, por enquanto, a necessidade de uma limpeza urgente me obriga a citar apenas dois ou três vocábulos que saem pelas bocas intelectuais como verdadeiras pragas do Egito.
Virou moda, por exemplo, entre gente ligada à educação, usar o neologismo dialogismo (me perdoem pela rima). Quando o ouço, dói-me o ouvido, sinto pena de Bakhtin, coitado, que tinha um propósito tão alto ao empregá-lo como noção literária! Agora a coisa é mais baixa, mais chão. Dialogismo quer dizer diálogo adocidado entre desiguais: professores e alunos, orientadores e orientandos, chefes e subordinados e assim por diante. Emprega-se o termo não para caracterizar vozes em confronto, e sim para mascarar a diferença. O que representa (olha aqui o malfadado) uma espécie de arrependimento da condição real do sujeito enunciador. Pura hipocrisia inconsciente.
E a idéia de lugar, extraída do pobre Michel de Certeau, que anda a ser utilizada como lugar quase físico? Já vi membro de banca examinadora dizer ao candidato defensor de tese que sua arguição saía de um lugar determinado. Eu, companheiro de banca, logo pensei que era da cadeira onde o sujeito estava sentado. Lugar passou a ser um pedido de desculpa. Falo do lugar de professor, do lugar de juiz, e ao me desmascarar, sou igual a você! Ora, que se assumam no seu lugar verdadeiro, porra!
Tem mais coisas do gênero (ops, mais uma palavra para um dia demolir), hoje deixo apenas uma última, que não pode passar ilesa:  olhar. O povo acadêmico pegou a mania de que tudo é olhar. O historiador olha o passado, fulano olha a fonte, beltrana olha o objeto, sicrana olha a bibliografia, e todos nos olhamos, reciprocamente, com falsa benevolência.
Ninguém mais analisa ou investiga, pois é politicamente incorreto se servir do vocabulário médico ou jurídico na produção (já pensaram neste?) humanística.   Prefere-se  abusar de termos complacentes, de aparência democrática, neutra, generosa - na verdade, hipócritas.
No meu caso, se continuar assim, terei de inventar um dicionário próprio.
   

4 comentários:

  1. A ligeireza da reflexão e o medo de assumir posições relevantes, o que implica entrar em atrito com outras correntes de investigação, consolidou o politicamente correto.O abuso de conceitos como representação implica na busca de um porto seguro para evitar o debate. É mais fácil, no meio acadêmico contemporâneo, seguir a moda. A divergência que fundamenta a reflexão histórica foi assassinada.

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  2. Concordo com o Moarcir. É que talvez não exista nada sobre o que divergir. O que esta em disputa? Historia deixou de ser uma ferramenta interpretativa (ideológica? que se....) para ser descrição, servir a si mesma. Desenterramos o defunto para voltar a enterrar.

    Mas queria chamar atenção para outra coisa. Se formos muito rigorosos com tudo, com todas as palavras e conceitos, não conseguiremos exprimir mais nada. Temos que assumir o caráter polissêmico dos termos que empregamos. Se não corremos o risco de um especifismo tacanho, de uma erudição vazia.
    Nessa inércia complacente dá a impressão de que as linguagens, as interpretações se excluem reciprocamente. O pensamento crítico precisa realizar sínteses.
    Existe uma poluição conceitual (como aquela ambiental). Retrocedemos ao velho positivismo (aqui só para fazer uso de um pejorativo). Como se o acumulo em determinada área levasse a alguma compreensão pelo esgotamento. Acredito que isso seja um equivoco. O próprio cérebro parece funcionar de forma diferente disso. O cérebro não processa todos os dados e os coloca em ordem, ele os reinventa. É bobagem acreditar que é possível ou necessário dominar toda massa de informação, ler tudo que foi produzido em determinado assunto.
    Às historias é possível empreender pequenos projetos, "revelar" algumas causalidades...
    Faço um apelo contra esse tipo história. Por uma teoria! Por uma ciência!
    Assistia no youtube a uma entrevista do Celso Furtado feita por Roberto D`Avila. Certa hora o entrevistador parece se cansar daquelas certezas e parte para perguntas "de cunho mais pessoal". Pergunta como o entrevistado "sente esse cientificismo (...)" a que ele responde "a ciência produz aproximações e resultados operacionais. Serve ao homem como um instrumento, mas não para explicar o mundo (...) é possível que haja um período de baixa de conhecimentos e desinteresse filosófico (...) a ciência não explica o mundo, ela nos indica as áreas de perplexidade do individuo".

    e agora já começo a me arrepender... mas uma teoria e ciência a serviço do que?
    sou um desses que emprega livre, mal e porcamente conceitos e teorias para apreender qualquer coisa do mundo e da vida, numa ânsia sem fim. A ciência nos permite boas leituras, mas não completas. Isso seria um excessivo domínio. Graças a natureza não temos tanto poder. Não temos domínio sobre o tempo, sobre o futuro, sobre tudo isso que esta em permanente transformação (principalmente o homem). A pesar disso não devemos renunciar essa ambição: pensar, tentar explicar alguma coisa (o homem, a sociedade, a passagem de um para o outro) para transformarmos homem e sociedade. Isso implica não a subordinação a maquina, a simples operação da maquina, mas um exercício de criação e liberdade, libertação

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  3. Nossa que ingênuo! Cheio de “dever ser”...
    na verdade o que eu mais gostei nisso tudo (e o que me inspirou a escrita) foi o palavrão (“porra”).

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  4. "A imparcialida é a omissão por excelência." Escrevi isso outro dia. Ciência da terceira pessoa, do sujeito ideterminado (já pensaram nesse termo???...). Infelizmente, estou sujeita à ela tb!...

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