segunda-feira, 15 de março de 2010

Aquém e além da alma

Freud - além da alma é sempre um bom programa para os interessados em enveredar pela obscura mente humana. O filme, de 1962, foi dirigido por John Huston (1906-1987), mestre em assunto de cinema que legou uma filmografia fabulosa. Só para lembrar algumas de suas obras-primas, cito aqui: Relíquia Macabra, O pecado de todos nós, O homem que queria ser rei, Os desajustados e O segredo das jóias, entre muitas outras.
A realização do filme coincide com aquela fase de decadência dos grandes estúdios de Hollywood e de surgimento de uma nova geração de atores e diretores (vide post anterior). Huston era da velha guarda, dono de um estilo acadêmico, mas exemplar. Para levar a cabo a história do criador da psicanálise, ele recorreu a um roteiro, nada mais nada menos, escrito por Jean-Paul Sartre, àquela altura no auge de sua fama como existencialista e companheiro do marxismo.
A psicanálise também estava na moda nos Estados Unidos - basta lembrar do enorme sucesso de que então desfrutava Marcuse, tanto entre intelectuais e estudantes, quanto no circuito artístico da Califórnia. Que o diga Marylin Monroe, morta no mesmo ano da divulgação do filme, uma frequentadora assídua de divãs, e não apenas para fazer sexo.
Embora readaptado do roteiro original para ganhar sabor mais palatável e didático (obra de Wolfang Reinhart e Charles Kaufman), o filme não distorce as principais descobertas de Freud nem o contexto em que elas surgiram: do seu contato com Charcot ao relacionamento com Breuer, suas primeiras formulações a respeito da histeria, do uso da hipnose à associação livre durante as sessões de análise, a interpretação dos sonhos (dos pacientes e dele mesmo), o tremendo impacto provocado na psiquiatria por seus escritos sobre o complexo de Édipo e a sexualidade infantil.
John Huston ainda se vale do branco e preto para criar a atmosfera sombria necessária ao enredo. Além disso, tranpôs de forma magistral para a tela o universo onírico das primeiras experiências freudianas, embora seus efeitos especiais talvez provoquem gargalhadas nas platéias de hoje, já tão acostumadas a se deleitar com recursos hiper-reais dia a dia mais sofisticados.
Finalmente, o filme não seria o que é sem a presença de um time de estrelas de primeiríssima grandeza, dentre as quais, Susannah York e Montgomery Clift. A primeira interpreta a famosa paciente histérica de Freud, impedida de andar por suas fantasias incestuosas em relação ao pai. O segundo dá vida ao próprio Sigmund Freud, com sutileza e competência. Ele, que na vida real, também passou por experiências subjetivas conturbadas, causadoras do uso excessivo de álcool e drogas e da sua morte aos 45 anos. E que se tornaria logo depois, ao lado de James Dean, um mito cultuado pela nova geração de consumidores de drogas, ansiedade, angústia e sonhos.
Nada de novo nessas sucessões de pais e filhos, seja no cinema seja na vida real. Como na permanência desse obscuro além da alma em cada um de nós.

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