Gosto de biografias. Nestes dias leio duas, ao mesmo tempo. Quando o assunto de uma está interessante, logo passo a outra com a idéia de retornar após o suspense. Uma é sobre a vida do marechal Humberto de Alencar Castello Branco, escolhido pelos golpistas como primeiro presidente do regime militar. A outra trata dos últimos anos de Freud em paralelo à ascensão de Hitler ao poder.
As biografias estão na moda - na verdade nunca saíram. O que há de novo é que os historiadores estão seriamente empenhados em retomar este gênero que foi muito cultivado pelos clionistas tradicionais. Uma pena, pois logo teremos livros do tipo vendidos a rodo por RS 1,99. Neles não faltarão, é claro, longas incursões teóricas e metodológicas sobre a ilusão biográfica - a la Bourdieu -, as armadilhas da memória e as escritas de si. Mil congressos e simpósios serão (já são) realizados para debater tais chatíssimas obviedades.
O fato é que para escrever biografia são necessárias poucas coisas: talento, sensibilidade, erudição e faro investigativo, justamente o que muitas vezes falta na academia. E o que sobra no livro do jornalista Lira Neto (Castello: a marcha para a ditadura), que além das outras qualidades citadas, demonstra grande sensibilidade para compreender a alma humana e o seu papel no curso dos acontecimentos históricos.
Uma das chaves dessa construção biográfica é a feíura de Castello, handicap introjetado desde a infância que o marechal converteu em pulsão de poder. Seu sucesso na carreira militar foi o resultado de um esforço hercúleo para provar que era superior aos que o chamavam de macaco, sem-pescoço ou quasímodo, numa época em que ainda não se conhecia o bulling. Embora Lira Neto não reduza a vida do marechal a esse estigma, já que também dá grande relevo à sua condição de nordestino da baixa classe média, filho e neto de outros militares -, não deixa de reconhecer a importância crucial dos aspectos psicológicos na história, sem incorrer em psicologismo barato.
Por que trago à baila este assunto se não pretendo resenhar as obras mencionadas? Ainda que isto possa decepcionar, respondo que é só para retomar o tema do post anterior. Muitos historiadores - entre os quais me incluo - nunca estiveram satisfeitos com a história desencarnada. Mas nem sempre as respostas a tal frustração tem sido satisfatórias. Sem falar da safra de baixa qualidade da historiografia atual - subjetivista, pueril e romântica -, houve gente boa que tentou, sem sucesso, dar humanidade aos processos históricos, dedicando-se, por exemplo, às mentalidades ou psicologia coletiva. Alguns chegaram até mesmo a sondar possíveis relações entre história e a psicanálise.
Nada disso deu certo. O próprio Freud, como se narra na segunda biografia (não é bem o termo para o livro), esteve obcecado por entender o papel do inconsciente na vida coletiva, basta ler suas obras sobre Moisés e o monoteísmo, O mal-estar da civilização e O futuro de uma ilusão. Foi quem chegou mais próximo da compreensão dos estranhos motivos que subjazem na vida social, cultural e política.
A maioria de nós, mortais, porém, não consegue alcançar essa dimensão obscura. Para atenuar nosso descontentamento é que servem as biografias. O problema é que existem poucos personagens dignos de serem biografados. Lira Neto escreveu um bom livro, ainda que Castello seja um defunto que não mereça suas velas.
Entre a história e a vida, tanto a que late quanto a latente, há uma abismo intransponível. Sou historiador, gosto de livros de história, mas prefiro as biografias.
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