domingo, 8 de novembro de 2009

Glórias e baixezas humanas: de Lévi-Strauss a Caetano, passando por FHC em ordem decrescente

A semana que finda deixou bons exemplos para se pensar sobre o caráter dos homens e o significado das suas obras.
Começou com a morte de Lévi-Strauss, um dos últimos intelectuais do século XX que ainda procuravam a humanidade do homem, a despeito do seu método antropológico estrutural ter sido classificado, por uma certa crítica, de anti-humanista. Viveu mais de cem anos fiel à cultura primitiva e à natureza, ainda que fechado em seu gabinete parisiense. Não se degradou nem cedeu às modas globais da estação. Nos anos trinta, época em que conheceu os tristes trópicos, já lastimava a crescente transformação das mil e uma culturas remanescentes dos primórdios da humanidade em monocultura.
Terminou com a passagem (para onde?) de Anselmo Duarte, apenas um ator e sem a dimensão intelectual do primeiro, mas que se tornou conhecido no mundo inteiro por representar o protótipo do brasileiro rude e pobre, eterno pagador de promessas ao deus punitivo, no filme vitorioso em Cannes, na mesma França do antropólogo.
Lévi-Strauss tentou compreender a cultura pela interpretação dos mitos primitivos encontrados na América do Sul, pois todo mito encerra a grandeza da inteligência humana. Os gregos antigos do seu continente de origem também cultuavam mitos e acreditavam que a história humana, situada abaixo dos deuses, cumpria ciclos que iam da grandeza à decadência. Os homens, meros seres mortais, se pretendessem se espelhar nos deuses, deveriam ao menos realizar grandes obras.
Mas não são todos os que se medem por tais valores. Duas outras manchetes da semana trouxeram à baila personagens que dia-a-dia vão perdendo a grandeza.
FHC, que não chegou a ser aluno do mestre francês nem legará obra como a dele, mas sempre se mirou no modelo da cultura européia, destilou novamente a arrogância do intelectual colonizado. Assombrado desde sempre com o fantasma do populismo varguista ou lulista - uma criação conceitual da inteligência uspiana -, se perfila como o último ideólogo do fracassado neoliberalismo.
Caetano Veloso, que compôs uma bonita canção alusiva a passagem de Lévi-Strauss pela baia da Guanabara, também deu mostras da progressiva degradação depois de ter composto um obra grandiosa, hoje estagnada. É verdade que ele esteve sempre à direita - é só lembrar dos seus votos anteriores em FHC e nos contatos estreitos da sua família com ACM. Caetano ainda se imagina no palco dos velhos festivais em luta com obtusos e festivos nacionalistas de esquerda. Seu companheiro dos tempos do tropicalismo, Gilberto Gil, ao contrário, tem dado contribuições políticas muito mais importantes do que discursos oportunistas em época pré-eleitoral. Assim como FHC, Caetano tem medo do estado forte, dos populistas que não sejam astros pop e do poder dos analfabetos. Para ele, os lulas, os índios descidos como super-homens e os pagadores de promessa são apenas matéria de contemplação e criação estética,
Começo a pensar que era verdadeiro o antigo mito de uma idade do ouro, à qual se seguiriam eras e homens cada vez mais decadentes. 



5 comentários:

  1. Excelente post, com uma lembrança oportuna - que o populismo varguista é criação conceitual uspiano - e uma formulação brilhante - que, para Caetano, "os lulas, os índios descidos como super-homens e os pagadores de promessa são apenas matéria de contemplação e criação estética".

    Discordo apenas que Anselmo Duarte seja "apenas um ator". Trata-se do único diretor de cinema brasileiro a receber uma Palma de Ouro em Cannes. Não é pouca coisa.

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  2. FHC pediu para o público esquecer o que havia escrito e elaborado como sociólogo. O seu desejo foi realizado, mas a maioria da população não esquece o desmonte do patrimônio nacional. O ex-presidente não admite que seu partido e aliados não tem um projeto nacional coerente. Aliás, FHC patrocinou a ampliação da tradicional sobreposição do executivo federal sobre os demais poderes. FHC precisa revisar o governo que realizou.

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  3. O governo Lula faz aquilo que alguns chamam de conciliação, outros, traição de classe. Algo que talvez aspirasse FHC, que, na prática, optou por uma via notoriamente mais à direita, mais autoritária. Seu governo negociou nossa autonomia, nos arrastando a um processo irreversível e generalizado de privatizações, bem típicos da política tucana.
    Se o governo Lula tem algo de continuísmo como critica FHC, é o de não ter rompido com esse modelo herdado. Sabemos dos limites de nossa democracia burguesa. Mas se Lula, por um lado, não rompeu com o velho, ao menos lançou novas bases para o Estado recuperar o governo da economia e distribuir melhor as riquezas.
    Houve as desilusões no primeiro mandato, os rachas e em fim, o momento que toda esquerda esperava eufórica: a crise econômica internacional, que deu a prova de que não existe capitalismo sem Estado. Acredito que esse foi o momento chave – pra alem de tudo que venha ser o ocaso da política. Se a política não governa tudo como pareceu um dia governar, e se temos cada vez menos acesso a política, a crise surgiu como um aviso e marcou um momento de inflexão. No linguajar popular “o Estado cresceu” e por alguma razão que ainda não foi bem explicada, o Brasil se segurou bem durante a crise.

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  4. Parece que um dos pontos chaves das recentes críticas de FHC ao governo Lula... além de serem dirigidas a um projeto de poder (populista, autoritário), a sua aproximação, no cenário internacional, com países como o Irã... é a questão do petróleo. O papel do Estado na exploração das novas reservas. O Estado que FHC queria enterrar, com o pretexto de modernizá-lo, ressurge.
    Biografias não explicam muita coisa, mas se compararmos as histórias de Lula e FHC veremos que ambos são atraídos da esquerda para o centro, onde FHC ocupa um lugar mais a direita. Lula veio das lutas operárias. Tem uma cultura operária e um conhecimento prático da política formado nas bases, o que o aproxima do “povo” (é ao mesmo tempo uma imagem, uma figura construída e idealizada – Duda Mendonça transformou o Lula-sindicalista no Lula-presidente?). FHC saiu da teoria da dependência para a prática da dependência. Sua eleição e reeleição são obras da política econômica expressa pelo “plano real” (que na época parecia ter feito um milagre acabando com a inflação) e que se apoiava na liquidez do capital internacional naquele momento. Uma política econômica monetarista mais ou menos preservada pelo governo Lula: moeda real, salários irreais. FHC não é uma figura popular. É alguém que se superestima, distante física e moralmente do tal “povo”. Talvez nem possa ser chamado de político... é mais um niilista economista.
    Ainda esse problema: a tensão entre a prática e a teoria.
    Enquanto isso o “povo” é a categoria com a qual se negocia.
    "os lulas, os índios descidos como super-homens e os pagadores de promessa são apenas matéria de contemplação e criação estética" sim, não só por parte dos artistas e de um antropologismo imobilizador, mas das forças políticas que disputam o “povo”. Direita e esquerda reivindicam o “povo”. Até os ricos querem o “povo”. Forma ideológica de compensação e controle social. O nosso demagógico presidente não escapa.
    Como escapar a essa linguagem enganadora?... “Pobres e ricos”, “povo”, não explicam nada. Riqueza e a pobreza têm relação uma com a outra. Como falar ainda em classes e como prescindir disso?
    Como apostar num projeto que, inserido nessa realidade confusa do livre-mercado, implique num Estado que possa ao menos distribuir melhor as riquezas?
    No mundo das mercadorias, todos são mercadoria, inclusive as idéias de Lévi-Strauss, as músicas de Caetano, as sociedades indígenas. As coisas escapam a elas mesmas, como as pessoas, as idéias...

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  5. ANDERSON NOGUEIRA ALVES22 de novembro de 2009 às 17:44

    Continua afiado em seu comentários. Parabéns pelo blog. Adoraria que postasse aqui seu texto genuinamente brilhante sobre a "500 anos". Para até é um referência de uma leitura crítica sobre História do Brasil e seu "descobrimento".

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