terça-feira, 30 de março de 2010

Música barata

Um amigo meu, que se preparava para ir ao show de um famoso astro da MPB, me perguntou dias atrás como eram as apresentações musicais nos anos 70. Achei estranha a indagação, ainda mais porque me colocava na posição de fonte histórica do passado. Além disso, porque não gosto muito desse negócio de depoimento, que lembra polícia, testemunho de igreja neopentecostal ou confissão de alcóolico anônimo, compulsivo de sexo e outros.
O fato é que a pergunta veio mesmo a calhar, pois, coincidiu com uma das leituras que eu fazia sobre a cultura jovem dos anos 60 e 70, tema que começo a pesquisar para um próximo livro. A leitura em questão era Tropicália, organizado por Sérgio Cohn e Frederico Coelho, que contém um extenso conjunto - também de depoimentos, só que dados no calor da hora, isto é de 1967 a 1972 -, do que de mais significativo havia na cena cultural da época. A obra traz registros de um time de primeira, formado por compositores, críticos, cineastas, dramaturgos, maestros e arranjadores, escritores e poetas, como por exemplo: Torquato Neto, Gilberto Gil, Nelson Motta, Zé Celso, Augusto Campos, Hélio Hoiticica, Caetano Veloso, Rogério Duprat, Chico Buarque, Capinam, Tom Zé, José Agripino de Paula, Rogério Sganzerla e Glauber Rocha.
Os textos demonstram a grande importância que então se depositava na cultura, particularmente na música, para o desenvolvimento do país. Debatia-se se havia um MPB verdadeira, como ela podia incorporar a produção internacional sem se descaracterizar, qual o seu papel na formação dos jovens, como fazer arte no mundo industrial, pronto a transformá-la em simples mercadoria. O próprio artista se sentia - um tanto constrangido, é verdade -, como portador de uma palavra de extremo valor junto ao público. Especialmente, de um público impossibilitado de se expressar de outras maneiras pelo regime ditatorial.
E nisso não estava errado. Aguardávamos o disco do ano de Chico Buarque como o fiel esperava o sermão na missa de domingo. Tudo parecia ter um significado especial: que mensagem cifrada estava lá naquela capa, como decifrar as entrelinhas da letra da canção? Ou, no caso de Caetano Veloso, que coisa inovadora, irreverente, inusitada, que ruptura viria em seu próximo disco? Mesmo na época da grande desilusão, ou do grande desbunde, era a palavra underground que continuava a soar como profecia. E assim os astros conservavam sua aura.
Sei que me desviei da pergunta inicial, por impossibilidade de respondê-la. A única coisa que posso dizer é que o artista daqueles tempos, seja nos discos ou nos shows, era objeto de reverência e respeito quase religiosos. Diferentemente da profanação a que é hoje submetido, meu amigo, profanação que envolve toda mercadoria. Não estranhe, portanto, que aquele astro famoso e cult do show que você assistiu seja desafiado pelos jovens universitários a dançar um créu. Ele não tem nada a dizer, nem o público quer ouvir.

E como homenagem àqueles artistas-profetas, deixo este belo clipe de Vapor Barato (Jards Macalé e Wally Salomão):

2 comentários:

  1. Que elitismo careta do seu amigo em estranhar o comportamento de nossa plebeia geração!
    São tempos dionisiacos... público e artista tudo junto, tudo misturado

    "Ele não tem nada a dizer, nem o público quer ouvir"
    justo

    mas é estranho como os remanescentes de 60/70 conservam uma aura de reverencia...

    É tambem tempo de pobreza no campo da estetica (da estetica, da ciencia, da politica...)
    e esses santos reverenciosos do passado? são peças de museu, mercadoria para colecionadores, pseudo intelectuais. Quem os consome? Os velhos e a universidade?
    brincadeira
    os santos cult da MPB ainda são maneiros

    que ha ainda de verdadeiro? de catártico? que nos fala à nos sobre nós?

    mas perai
    o cara deve ter provocado alguma catarse pra ser desafiado pra um créu...
    ou é mesmo a mais descarada profanação da mercadoria?
    ou não
    Antropofagia ritual na sociedade de consumo
    a jovem é um monte de nada e reverencia pelo produto que esta no palco (objeto de reverencia, como o vinho, como uma moeda rara de um tempo remoto, que se valorizam com ação do tempo).
    Ela sobe no palco e transcende a condição anonima e miseravel... o idolo a salva de sua condição mediocre, mortal. Então ela da um passo a adiante, canibalizando o heroi (não importando sua idade, sua aura de reverencia...)... ela o acultura (transcultura, sei lá), o traz para nosso tempo, para nossa dança. Créu nele. Não tem mais nada, nem palco, nem plateia, nem idolo, nem idolatra.

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  2. A crise criativa porque passa nossa cultura é que nos leva a interrogar sobre passado. Porque, após uma época tão efervescente nos encontramos mergulhados num "nada" tão profundo. Nada daquilo parece ter produzido efeito sobre nós da atualidade, a não ser o Axé Music, talvez que nem mais é Axé. Tudo está tão diluído, nada existe que aglutine, os artistas e os intelectuais estão escondidos e talvez, como uma certa dose de remorso. "Quando o Carnaval chegar" não faz mais hoje o menor sentido, por justamente ainda não ter chegado. Enquanto isto, tome saudade. Até... até um neobossanovista novamente dizer: "Chega de Saudade"!

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