quarta-feira, 24 de março de 2010

O bandido da cadeira de rodas

O cadeirante chega para fazer o chek-in. A loira entediada, com cara de poucos amigos: -o senhor foi operado? Diante da resposta afirmativa: - entâo preciso da declaraçâo do médico liberando o sr. para viajar. - Nâo tenho, na hora nâo pensei nisso, só conversei com ele uma vez no pós-operatório, conversa de um minuto quando ele me deu alta, nem o médico prescreveu coisa em contrário. Na hora da compra da passagem falei da cirurgia, pedi cadeira de rodas, ninguém exigiu tal papel. Faltam 45 minutos para o vôo. A loira tingida, de novo - Nâo posso fazer nada, sâo os procedimentos. O cadeirante: minha senhora, foi uma cirurgia simples, o vôo será de 40 minutos, nâo há problema, estou bem, sou forte, nâo sinto nada. Posso assinar uma declaraçâo me responsabilizando por tudo. A loira entediada: - Sâo os procedimentos, senhor! O cadeirante: - por favor, quero falar com o gerente, algum superior. A loira entediada: - Os procedimentos sâo esses sr. O cadeirante: - O que vocês vâo fazer comigo? Terei de voltar para o apartamento? Quem vai cuidar de mim já que nâo posso andar? O tempo tá passando, chame o seu superior - e já irritado - nâo quero falar com a senhora que parece um robô com esses procedimentos. Já fui chefe, sei que sempre há uma soluçâo, seja humana, o meu caso nâo é grave. A loira entediada: Nâo posso fazer nada, senhor! O ódio já crescia nas entranhas do cara, ele que conhecia bem funcionários subalternos, mais realistas que o próprio rei, ele que quando diretor teve trezentas vezes de resolver conflitos criados por subchefetes cheios de pequenos poderes, ociosos, sempre de tpm. Queria gritar "loira burra de tpm", mas nâo podia. Era contra os procedimentos politicamente corretos do sistema incógnito. Era contra as convicçôes políticas generosas que carregava consigo, lembrou sua irmâ que o levara ao aeroporto e tinha de voltar ao trabalho, já em prantos diante da dureza da loira burra entediada de tpm e do poste da TAM, seu par ao lado, funcionário impassível também treinado para repetir - Senhor, vamos estar tentando resolver seu problema, aguarde o supervisor. Do fundo da sua racionalidade, o cara queria ser generoso politicamente, afinal, eles trabalham muito e ganham pouco, nâo tem culpa do sistema, como relembrou sua irmâ. Mas eu odeio o gerundismo desses pobres poderosos robôs de tpm, disse seu instinto de defesa! Dez minutos depois, e em face de mil argumentos, vou chamar a polícia, vou processar a TAM, o chefete finalmente chega e pede ao cadeirante o telefone do médico. Volta para o interior do escritório com o papel retirado da mala aberta diante do público, estendida ao châo com cuecas, meias, bermudas e outras intimidades, e 30 minutos depois retorna: - nâo encontro os médicos, um está num congresso em Londres, outro em congresso no Recife. Sinto muito, o sr. nâo poderá embarcar. O ódio cresce no peito. A barata de Kafka sobrevoa o balcâo. O insustentável peso do ser invade o corpo como um kundera cruel. A voz já é grito, a pressâo sobe. O mundo já é um triller de um dia de câo. O cadeirante já é um bandido de luz vermelha. Um pequeno tumulto se forma torno do cadeirante. Uma perua e um peru de classe média querem que a fila avance, ela quase pisa na perna quebrada do aleijado. O tempo se esgota cada vez mais rápido. A cena ainda é presenciada por uma amiga do cara, no tempo da graduaçâo, hoje celebridade acadêmica, que ele nâo via tem dez anos. Mico. Ódio terrorista. - Quero água, quero mijar! pede o cadeirante. - Sou livre, cês nâo podem me deter desse modo, nâo sou propriedade de nenhum médico......Afinal, um carregador empurra o cara ao ambulatório médico às pressas para uma avaliaçâo do plantonista. A palavra final será dele, o poder médico, o biopoder foucaultiano. Corre com aquele corpo no meio da aglomeraçâo, berra, pede passagem em meio a malas e badulaques dos viajantes, percorre os infinitos corredores lotados. E sussurra ao cadeirante: - minta, nâo diga ao médico que o sr. foi operado, diga apenas que tem a perna engessada! E na corrida louca, o cara e sua perna aríete, sua perna fálica apontada como uma bazuca, uma bomba de alto poder, uma metralhadora giratória pronta a destruir o sistema inteiro: a loira burra tingida de tpm entediada robótica, o poste desumano impassível e impávido colosso, os procedimentos do politicamente correto, a frota inteira da aviaçâo, todos os gerúndios copiados dos americanos e suas torres gêmeas...fuck you fuck you... e o cadeirante bandido sorri de amor por bin laden, por todos os terroristas sem propósito, senâo essa vontade louca de explodir aeroportos e prédios, as malditas estruturas que impedem o homem de voar.

5 comentários:

  1. Manovéio, será que o repouso já te estressou tanto assim? Desse jeito então o melhor é sair do bem bom e começar a fazer piquete.

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  2. tu tinha que falar que era amigo do serra (kkkkkk).
    Tomo cha com o hôme!!

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  3. É triste perceber como estamos cercados, de procedimentos, de protocolos, de sistemas (os dos bancos). E que muitas vezes o ser humano e esquecido, perdido em tantas quinquilharias. Quem sabe algum dia isso mude, ou quem sabe isso piore, e todos fique igual a "loira entediada de TPM".

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  4. O mundo é muito burocrático. DEus que me livre!

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  5. bom, agora falando sério e dando uma de advogado do diabo, devo lembrar que as condições de pressurização do avião são nocivas durante a recuperação cirúrgica. O processo de cicatrização, a formação de coágulos, alterações decorrentes dos anestésicos que ainda circulam pelo corpo e muitas outras coisas não recomendam que pessoa nessas condições pegue um avião. Assim, as recomendações nesse sentido são corretas.
    beijocas

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