quarta-feira, 3 de março de 2010

Os muros da escola pública corroídos pelo abandono e pela virtualidade



Não basta ser professor da escola pública. É preciso ver além da sala de aula. O filme Entre os muros da escola, de Laurent Cantet e François Bégaudeau, embora se passe numa delas, consegue olhar mais longe e assim mapear alguns dos dilemas enfrentados por professores, alunos e pais na sociedade atual. E vejam que as estórias contadas nessa fita ocorrem na França, um país que foi modelo de educação pública, cujos alicerces e muros foram construídos de acordo com os princípios estabelecidos desde a grande Revolução: ensino para todos, laico e destinado a formar cidadãos civilizados.
O filme indaga quais as possibilidades de manutenção desse padrão educacional democrático e inclusivo numa França hoje constituída em grande parte por imigrantes vindos de diversas outras partes do globo, com suas culturas tão distintas dos tradicionais valores nacionais. Revela ainda o potencial de violência pronto a explodir numa escola que, além de reunir extratos sociais heterogênos, perde cada vez mais o papel educativo, até então hegemônico, diante dos novos meios tecnológicos de informação e circulação do conhecimento, assim como de formação dos comportamentos e das consciências.
Mas, se o expectador se concentrar em alguns pequenos detalhes dessa ficção nem tanto ficcional (móveis da sala de aula, disposição dos alunos no ambiente escolar, materiais, postura do professor) perceberá que, apesar de corroídos, os muros da escola francesa ainda permanecem de pé. Ninguém consegue responder por quanto tempo, mas não há dúvida de que alguma solidez subsiste. Solidez, aliás, edificada da metade do século XIX ao longo do seguinte. E fundamentada na idéia da educação como programa estratégico nacional.
O que dizer da nossa realidade, brasileira e paulista? Na impossibilidade de falar de algo tão amplo e complexo, tratemos pelo menos do segundo caso. Aceite-se ou não o conteúdo elitizante do republicanismo paulista nos seus primórdios, é preciso admitir que seus principais defensores foram relativamente ousados no que tange à educação. Desde o início do século passado, São Paulo ampliou expressivamente a rede de ensino, na capital e no interior, modernizou a administração das escolas e reformou currículos. Não é gratuito que, principalmente a partir dos anos 20, tenham brotado em nosso Estado idéias inovadoras de reforma educacional, que centralizaram o debate pedagógico brasileiro.
Contudo, as políticas de ensino adotadas nos últimos vinte anos não fazem justiça a esse passado. Nessas duas décadas perdidas, insisto, São Paulo perdeu a liderança que até então mantinha no país no que se refere à excelência do ensino. Não serão os arremedos da escola da família, da escola aberta no fim de semana, das apostilas para integrar os conteúdos ensinados em toda a região, das provas para aquilatar o desempenho do professor ou da ampliação do número de computadores nas escolas que mudarão esse quadro.
O problema é muito mais complexo e exige lideranças educacionais à altura para enfrentá-lo, não políticos coroinhas ou técnicos intratáveis. Desde 2003, em contrapartida, o governo federal, se não foi capaz de colocar em prática um projeto educacional para o país compatível com os dilemas do século XXI (nem sempre visíveis e cuja soluçâo ainda nâo foi encontrada pelo globo afora), ao menos conseguiu efetivar alguns daqueles princípios republicanos mencionados, acertando assim o passo com o século XX. Em São Paulo, ao contrário, e apesar dos sonhos dos pais-fundadores da República local, tais fundamentos foram ignorados ou jogados pela janela, em benefício dos interesses privados mesquinhos. Isto é PSDB, panfletemos! 
O próximo governador paulista, seja quem for, herdará uma escola pública falida. Seu desafio, se bem-intencionado, será imenso: não só restabelecer as bases da escola republicana, mas adaptá-la a um mundo que, dia a dia mais rapidamente, envolve as instituições tradicionais no ritmo dissolvente e instável da cultura virtual. Um mundo que requer uma nova escola, flexível, veloz e democrática, organizada como árvore dos conhecimentos, sem-fronteiras, com maleabilidade para aceitar e participar da inteligência coletiva. Escola que será, e talvez já seja um pouco.

3 comentários:

  1. Celso, vê se encontra tempo e espaço para explicar prá gente esse negócio de "arvore dos conhecimentos" e "inteligência coletiva". Valem, cada um, alguns posts.

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  2. Antonio Celso, já que tema cabe vou comentar uma experiência degradante, típica do nosso Estado, bem organizadinho na elite e caótico por baixo. Ontem num dos meus devaneios semanais decidi que iria na atribuição de aulas da SEE. Particularmente nunca tinha ido, mas me animou pegar duas ou três aulas na semana já que nunca lecionei efetivamente.
    O impressionante é o que significa a atribuição de aulas! Uma obra surreal que Breton não saberia descrever. O mais próximo consegui chegar comparativamente são os dias de visita no sistema penitenciário e os postos centrais do SUS as 6 ou 7 horas da manhã. Não pela bagunça generalizada, a gritaria ou os professores que golpeiam seus colegas de trabalho para ficar com as aulas. O que impressiona é que isso tudo pe reflexo da política do Estado, é reflexo da bagunça que é a escola em seu interior e reflete administrativamente.
    Quando consegui comparar a cena surreal, porque mais parecia um sonho daqueles caóticos e inimaginaveis com a porta da penitenciária e com o SUS é porque o nivelamento do descaso é por baixo e geral com os setores sem prilégios, os trabalhadores de modo geral...

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  3. Me esqueci do desfecho, no final para meu azar, ou sorte pela experiência, peguei lá minhas duas ou três aulinhas pela noite, depois de parar a atribuição duas vezes porque alguém esqueceu de colocar o nome do prefessor aqui e de mais uns 3 na lista de classificados...

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