quarta-feira, 19 de maio de 2010

O negócio é a escultura de si

Em tempos de crescimento econômico, a superoferta de idéias encadernadas é um perigo para os desassossegados. Ainda mais quando se vive perto das seduções livreiras. A não ser que o cara seja um tipo fernando pessoa, capaz de criar escaninhos específicos para cada uma das suas inquietações. Como não tenho esse talento, fico constantemente exposto ao risco da desorganização mental.
Na época em que não havia tanta variedade de produtos espirituais, eu consumia uma safra de cada vez, explorando ao máximo suas vantagens. Foi o caso, por exemplo, da literatura russa, das biografias de rebeldes e das teorias revolucionárias. Estes foram substituídos, anos depois, pelas obras, já então meio fora de moda, daquele conhecido casal existencialista francês. Enjoado (ou melhor, nauseado) deles, parti para outros gurus- desmontadores da tradição, sem abandonar, contudo, a pátria de Sarkozy. Foucault e congêneres, of course.
Ai vieram os anos do profusão megastórica do pensamento - estes em que vivemos. Confesso que tenho lido um pouco do tudo disponível: norte-americanos, paquistaneses, alemães, espanhóis, brasileiros... modernos e pós-modernos... hards ou ligths... de Herman Hesse a Dalai Lama. Outro dia me receitaram Omar Kayam, cujos poemas encontrei na vitrine virtual e me entreteram por alguns minutos. Quinze dias atrás comprei um Corão numa loja de conveniência, que me pareceu um saco - peço aos talibans que não me crucifiquem por este sacrilégio!
Não gostaria, porém, que me tomassem como um leitor fútil. Na medida do possível, procuro temperar as novidades com teorias mais sólidas, se é que elas já não tenham desmanchado no ar, como tem sido alertado nos últimos duzentos anos. Dentre outras, não abro mão da psicanálise, nem de uma pitada de marxismo, sempre necessários para não flutuar como um fantasma pelo cosmo.
E foi nessa perambulação contemplativa que encontrei um novo filósofo: Michel Onfray. O título do seu livro, exposto no estande principal da livraria, logo me chamou a atenção: A potência de existir. Embora fácil demais (coisa que não faz bem para um acadêmico), a leitura me agradou. Onfray inicia sua reflexão com um relato autobiográfico sobre os anos em que ficou internado numa escola religiosa católica. Foi essa experiência traumática que o levou ao terreno filosófico, isto é, à criação de uma filosofia alternativa, buscada na tradição dos epicuristas e hedonistas. Página por página, de modo simples e convincente, o novo filósofo revê toda a história do pensamento ocidental, do platonismo ao cristianismo e seus herdeiros atuais. Vai demolindo tudo, com exceção de uns poucos soterrados pela historiografia dominante.
Olha que o cara não fica só na reflexão! Propõe coisas perfeitamente viáveis, nas quais embarquei de pronto: uma moral ateológica pós-cristã (baseada na moral da honra e não da falta, na ética aristocrática e não falsamente universal, na regra imanente do jogo e não num processo transcendente, na vitalidade e não nas paixões mortíferas, no contrato com o real e não submisso ao céu), uma ética estética, uma escultura de si, um adestramento neuronal (super em dia com as novas descobertas da ciência), uma dialética da polidez, uma libido libertária etc. De todas as propostas, gostei mais da escultura de si e da libido libertária. Eu mesmo ando me esculpindo internamente faz tempo, e garanto que isso dá certo (por favor, não confundam com as cirurgias plásticas de Demi Moore). No tocante à libido libertária, a saída é o eros leve e a máquina solteira (quer dizer, sem laços permanentes), procedimentos que também já adotei. 
Como se vê, sempre tem algo de novo entre o céu e a terra para além da vã filosofia! Onfray até fundou uma universidade livre (será paga?) para difundir seus ensinamentos sem o constrangimento oficial. Num momento de delírio, me deu uma vontade enorme de aposentar e fazer o mesmo.
Até que, ao visitar o Google em busca de referências adicionais sobre o autor, descobri que ele ele é o tal que provocou enorme polêmica recentemente na França, ao atacar Freud com violência, chamando-o de farsante (comeu a cunhada, desejou a mãe!) e de criador de uma fábula. Fato que despertou a ira, justamente, de psicanalistas merecedores do maior respeito intelectual, cujas obras sempre leio. Foi ai que o encanto se desfez como que por encanto. Ora, concluí: Onfray é só mais um desses ditos pensadores, na verdade, gente louca por fama e por sofás como os do Jô (vide vídeo abaixo).
Joguei o livro de lado. Mas que continuarei a seguir algumas daquelas receitas, não tenham dúvida!  

2 comentários:

  1. M. Onfray é um de meus pensadores favoritos (embora eu permaneça cristã...)! A Razão Gulosa até me inspirou um trabalho de artes visuais que realizei com meus alunos do ensino fundamental... Ora... "quem nunca pecou que atire a primeira pedra": ele viu Freud como farsante e você se decepcionou com ele (quase o considerando um farsante?)! Enfim... "Ninguém é perfeito"... ;)

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  2. Incrível, como saber que MO tinha também "atacado" e de modo fundamentado, aberto e honesto, o guru Freud, seja suficiente para desprezar o que antes, pela razão, se tinha como pensamento estruturado e ousado....
    Tudo bem, cada um tem direito aos seus gurus e aos seus preconceitos, até mesmo á preguiça de não pensar e preferir aceitar a "palavra" dos que são tidos como mestres. O que mais me "dói" é o insulto fácil, o rótulo imediato com que se atira MO para uma gaveta de oportunistas, sem considerar o seu passado, a sua vida de homem comprometido mas coerente, desinteressado (criou uma universidade grátis que funciona lindamente)e dedicado a colocar em causa a filosofia "oficial". Essa é uma injustiça que me causa desconforto, mas que apenas coloca mais em causa o autor desses insultos....

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