segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Exorcismos historiográficos: nosso ofício

Para Camila Matheus


É curioso como continuamos a chamar de ofício a atividade atual do historiador, do mesmo modo que há cem anos o faziam os mestres-fundadores da historiografia profissional. Nas conferências, nos textos acadêmicos e nos manuais didáticos, isso é dito com a boca cheia para estabelecer uma distinção entre a nossa e as outras profissões.
Na época de Marc Bloch e Lucien Febvre o uso do termo também vinha carregado de simbolismo. Tratava-se de demarcar o espaço do historiador diante do crescente prestígio dos cientistas, sem subordiná-lo, contudo, ao lugar ainda assegurado pelo filósofo, que o via como um intelectual de segundo plano, aprisionado pela realidade empírica.
A palavra ofício, extraída lá dos confins medievais, remetia a uma espécie de arte que só alguns sabiam praticar, portanto, também diferente das formas mecânicas e fabris de produção, e que era transmitida aos aprendizes pelos mestres. Carregava um forte princípio hierárquico, mas também um valor educativo já que se enraizava na missão pedagógica nacional. Não é à toa que, pelo menos entre os franceses até pouco tempo atrás, a consagração do historiador pleno exigia um tempo de exercício do magistério nos liceus.
Nos dias de hoje, o ofício de historiador, particularmente no Brasil, quase nada tem a ver com esse tempo primordial. Suprimir o termo para designar nossa atividade atual seria, obviamente, grande tolice. Mas não custa refletir sobre as condições em que é usado.
Antes de tudo, nosso trabalho se localiza na sociedade pós-industrial, embora não saibamos identificar claramente que funções nela desempenhamos. Certamente, não mais o papel de mestres transmissores dos valores cívicos nacionais. Aliás, temos até um pouco de vergonha de nos autodefinir como professores, quanto mais de sermos parentes daqueles que lecionam no segundo grau. Nem mesmo o estudante universitário do primeiro ano quer se ver nesse espelho: ele já se classifica de imediato como historiador entranhado nesse mítico ofício.
Os jargões falados, os tipos humanos e as práticas cotidianas podem lançar alguma luz sobre tal universo obscuro. As figuras do nosso círculo se parecem cada vez mais com a fauna operadora da máquina empresarial, ainda que sob controle do Estado. No topo se encontram os executivos (em nosso meio, principalmente, as) que projetam as formas de produtos a serem fabricados, que distribuem os recursos pecuniários das agências de fomento e das universidades, que estabelecem as normas reguladoras das concessões, que formulam e aplicam os critérios de avaliação dos resultados esperados. Uma escala abaixo estão os gerentes dos programas e grupos de pesquisa com seus séqüitos de operadores, todos almejando logo ocupar o posto principal. Abaixo ficam os estudantes de pós-graduação, mas nem um pouco disso ressentidos, uma vez que sabem que poderão rapidamente alçar escalas superiores, dependendo da sua eficiência e dos contatos feitos. Na base da pirâmide, enfim, localizam-se os alunos de graduação, eles que também já disputam entre si um lugar ao sol do ofício.
Não quero ser um estraga-prazeres, mas nem por isso fico à vontade nesse mundo (que é não é só nosso, mas também de vários outros profissionais das humanidades e das ciências). Sei que o antigo modelo de intelectual já fez água, assim como o do cientista puro e do professor. Sei também que não somos nem operários nem datilógrafos do velho Mappin, o que significa dizer que não me passa pela cabeça qualquer imagem socialista auspiciosa. Apesar disso, creio que vale a pena indagar: o que somos?
Parafraseando Mário de Andrade de cabeça (não sei se ele usou exatamente estas palavras, e caso o tenha feito, basta substituir passado por ofício), eu diria: esse ofício não é mais meu ofício, eu desconfio do meu ofício.

Um comentário:

  1. Compartilho dessa sensação vergonhosa/paralisadora de sermos engenheiros de estruturas obsoletas que não servem para habitar. E como é difícil não ser mais e nem ser ainda. Instalemo-nos, pois, nesse vazio, atentos às forças dispersas que poderão ser criadoras, se captadas. Inventar outro "nome" sem a consistência da prática seria mesmo ridículo, pois só a reivenção das práticas pode engendrar novos "nomes". Vamos ver se na angústia de saber o que somos, conseguiremos criar outros modos possíveis de ser. Pairam sobre mim leituras de Suely Rolnik, que diante da dificuldade de se "definir", tem se apresentado como incitante.
    Cordiais saudações, da amiga e grata,
    Camila

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