Por um acaso que veio a calhar, ouvi hoje, na límpida e emocionada voz de Elis Regina, a canção No dia em que vim embora, composta por Caetano nos anos 60, antes dele se tornar famoso. Apesar da originalidade e da beleza da letra, seus versos falam de uma experiência que foi comum na sua geração em quase todo o globo: a ruptura com os modos de vida do passado e a procura de melhores oportunidades de vida, representadas pela partida de casa em busca da capital, numa época em que ainda não havia o celular como substituto do cordão umbilical. O mesmo tema se encontra em outras mil canções da época, seja no folk renovado, no rock e nas músicas de protesto das três Américas ou da Europa.
Assim encontrei o mote para apreciar as imagens que deixei na postagem anterior. Velhas imagens do fim da década de sessenta e do início da seguinte, que inseri na página não por nostalgia, mas para retomar um fio de meada que venho prometendo há muito. Volta e meia aparecem aqui, nos meus textos e nos comentários dos amigos e amigas, alusões variadas à cultura virtual contemporânea e seus impactos sobre nossos condicionamentos intelectuais.
Pois bem: foi exatamente naqueles idos que se deu a grande virada que originou a sociedade atual. Hobsbawm caracterizou magistralmente as radicais transformações tecnológicas, econômicas e culturais ocorridas nos modos de vida das populações, em escala planetária, que não só forneceram as condições para uma nova expansão capitalista, como também estiveram na base dos movimentos jovens do período, no ocidente e no oriente: a agitação estudantil, o pacifismo hippie, as organizações dos negros e das mulheres, a luta anticolonial e as manifestações pró-democracia no socialismo. Eles significaram uma brecha (conforme Morin, Lefort e Guattary) de utopia cavada por setores da classe média emergente, e ao mesmo tempo, o último sopro de rebeldia em face do capitalismo triunfante.
Mas este rapidamente se apoderou dos conteúdos rebeldes, descarnando-os e transformando-os em produtos para um mercado cada vez mais cultural. (Coincidência ou não, é nesses mesmos idos que surge a História Cultural, tema para um capítulo próximo). A publicidade encarregou-se de esvaziar de sentido a energia jovem e a idéia de revolução social ou dos costumes. Houve intensa repressão sobre os líderes mais notórios, é verdade, mas quem debelou de fato os movimentos rebeldes foi a sociedade de consumo.
Dois pensadores de ponta, que ainda apostavam nas grandes narrativas explicativas hoje execradas entre nós, acertaram na mosca com suas teorias construídas no calor da hora sobre a sociedade nascente. Um deles foi Herbert Marcuse, que buscou pressupostos marxistas e freudianos para diagnosticar a emergência de um tipo novo e inteiramente alienado da vida: o homem unidimensional. Guru dos rebeldes nos anos sessenta, hoje é praticamente ignorado. O outro foi Guy Debord, conhecido apenas em alguns círculos reduzidos de militância neoanarquista, que concebeu o modelo analítico da sociedade do espetáculo. Suas idéias, igualmente sustentadas no conceito de alienação, seriam inteiramente confirmadas nas décadas seguintes, embora ele também permanecesse desprezado pela intelectualidade.
Dentre as inúmeras analogias e metáforas criadas por Debord para delinear a imagem-mercadoria do capitalismo atual, aparecia o termo vedette (em francês, originalmente, sentinela) então usado para definir o indivíduo despojado de vida real, mas que servia de espelho para a humanidade contemporânea, despojada de figuras míticas valorosas. Um dos seus exemplos favoritos de vedete era Brigitte Bardot, antes da atriz se desvencilhar desse invólucro para se dedicar à defesa das focas. Ela se antecipou às celebridades e às modelos de hoje, cujo papel é também o de representar os cadáveres humanos.
A canção me deixou com certo gosto de amargura, eu, que não gosto nenhum pouco de cultuar o passado, embora tenha me tornado historiador. Caetano Veloso saiu de Santo Amaro, Elis Regina veio do Rio Grande do Sul. Ambos se tornaram imagens na aldeia global, até mesmo com significado trágico, no segundo caso, mas que é também útil para alimentar a roda da fortuna.
O consumo cultural é a principal ferramenta contenporânea de controle político. Quando George Orwell escreveu "1984" o potencial dos meios de comunicação apenas era estimado. A fabricação dos fatos (verdade) e da memória social, constituia para Orwell o modelo de exercício de poder nas sociedades autoritárias (o autor pensava como modelo o nazismo, o capitalismo e o comunismo). Mas o autor errou em um aspecto fundamental, ao projetar o controle como resultado da escassez material e cultural. A sociedade contenporânea, apesar da persistência da miséria e da fome em vastas regiões, tem como fundamento o excesso de informações (Caetano, quem lê tanta noticia?) de alimentos (pandemia de obesidade) de entretenimento. Fragmentação e sensação de eterno presente geram um contentamento que torna o presente sempre eterno. A falsa sensação de segurança produz o medo da mudança. E a atomização propiciada na dinâmica midiatíca contenta a todos no seu nicho. Na aldeia global as pessoas ainda estão distantes.
ResponderExcluirTriste, triste. Impossível não sentir nostalgia. Banzo total! Sensação de jogar o último punhado de terra no túmulo das coisas criativas que parecem cada vez mais se distanciar no tempo.
ResponderExcluir“Os guarda-chuvas perdidos... aonde vão parar os guarda-chuvas perdidos? E os botões que se desprenderam? E as pastas de papéis, os estojos de pince-nez, as maletas esquecidas nas gares, as dentaduras postiças, os pacotes de compras, os lenços com pequenas economias, aonde vão parar todos esses objetos heteróclitos e tristes?” (Mário Quintana)
O que dizer então das rebeldias coletivas? Aonde vão parar? Estão mortas ou sufocadas, procurando canal?
Alguém tem alguma idéia, um estratagema, uma engenhoca, um ardil capaz de desestabilizar a sociedade de consumo e seus tentáculos?
“Cadê meu disco voador?”