Ao citar a canção de Caetano, na matéria anterior, esqueci sem querer do trecho que segue a “Os livros são objetos transcendentes/ mas podemos dotá-los do amor táctil....”. O complemento faltante dizia: “... que votamos aos maços de cigarro”. Certamente foi um estranho lapso cuja sondagem só é possível numa sessão de análise, que não cabe aqui.
Também não quero, por ora, voltar aos livros digitais, até porque os encaro como inevitáveis e, talvez, bem-vindos em alguns aspectos, apesar de certo sentimento melancólico que isso me desperta. O que desta vez me trouxe ao computador foi o comentário de Camila, que novamente lança pedaços da alma em pequenas frases.
É o amor táctil que está indo embora do nosso mundo, sob o efeito da intermediação dos artefatos técnicos? Esta interrogação não é de hoje. Os filósofos críticos, com outras palavras e outros conceitos, vem há tempos tratando disso quando falam, por exemplo, da progressiva alienação do homem e da perda da experiência significativa do que é ser humano. Os paradoxos que hoje envolvem a comunicação intersubjetiva seriam, para eles, apenas parte do processo maior de alienação, qual seja da correspondência entre os contatos cada vez mais amplos e velozes e o maior distanciamento entre as pessoas.
Civilizar-se é, sem dúvida, condição para a vida social, dizia Freud, mas o preço pago por isso é também muito alto, com toda a dor que o recalcamento dos instintos produz. Os artefatos técnicos produzidos pelo homem significam progresso, evidentemente, embora obtido a um custo extremamente elevado, que de tão conhecido por todos nós, nem vale a pena insistir. Já em pleno século XXI, talvez tenhamos ultrapassado um limite da artificialidade que esteve nas origens da civilização. E atingido algo que nem sequer conseguimos definir.
Por isso convém falar do amor táctil. Não é necessário se embrenhar pela cibernética nem pela neurociência – sintoma da ciência neurótica – para intuir que, de todos os sentidos do homem, o tato tem sido o mais enfraquecido, diferentemente do olhar e da audição, objetos de excesso de estímulos.
O livro, manuscrito ou impresso, foi até hoje um objeto táctil, para quem lê e quem escreve. Ao tê-lo em mãos, como matéria supostamente imperecível, o escritor acaricia as palavras nele contidas, do mesmo modo que o monge gozava ao copiá-las e iluminá-las. Idêntico prazer podia ser experimentado pelo agricultor ao comer os alimentos que ele mesmo plantara ou pelo artesão que usava o martelo da própria lavra. Estaríamos no limiar da supressão desses prazeres sensoriais, o tato e o gosto-paladar -, os mais primitivos de todos porque originalmente ligados ao corpo da mãe? Seria essa a lógica da interdição alimentar e da obrigação da magreza em nossa época?
Se tal bobagem fizer algum sentido, a questão estará sempre na ordenação do prazer, da libido e do sexo, como diria Foucault. Proliferem as formas de vê-los (pornointernet), de dizê-los (reality shows e congêneres) e ouvi-los (sexofone), mas se interditem os modos de senti-los como comunicação natural dos corpos. E mesmo que a máquina do sexo, prevista por Woody Allen, esteja um dia à nossa disposição, será por algum efeito de pura simulação que se encontrarão os abraços, os cheiros e os fluidos humanos.
A. Celso agora sim “tô me achando”! É tão bom quando a gente diz uma bobagenzinha e alguém consegue ver o potencial daquilo que está só latente. Pronto é o que basta para catapultar a idéia, revirá-la, tratá-la, enfim, meter a mão na cumbuca e jogar pensamento nesse mundão! Enquanto eu mostro uma larva, você já vê a borboleta de asas coloridas e tudo, naquele vôo bonito... Aqui já foi uma licença poética, porque há muito não vemos mais borboletas!
ResponderExcluirTinha esse trecho guardado do livro “Memórias do subsolo” do Dostoiévski e achei oportuno compartilhá-lo. Aqui, ele fala em livros, mas nos dias que correm parece que tudo é excesso e, por isso mesmo, vazio. A gente vai se contentando com as carcaças, com as cascas, com as simulações das sensações, como você bem lembra. Encaramos o corpo e as sensações como algo abjeto mesmo. Ficamos “abstraindo”, como se isso fosse algo tão superior, sem nos darmos conta, muitas vezes, daquilo que nos constitui e afeta. Aliás, como bons operários da construção civil interior, nos especializamos em construir uns muros bem altos para nos separar das turbulências e ficamos lá guardiões do sem sentido. Aí vai:
“Desacostumamo-nos mesmo a tal ponto que sentimos por vezes certa repulsa pela ´vida viva´, e achamos intolerável que alguém a lembre a nós. Chegamos a tal ponto que a ´vida viva´ autêntica é considerada por nós quase um trabalho, um emprego, e todos concordamos no íntimo que seguir os livros é melhor. (...) Nem mesmo sabemos agora onde habita o que é vivo, o que ele é, como se chama. Deixai-nos sozinhos, sem um livro, e imediatamente ficaremos confusos, vamos perder-nos; não saberemos a quem aderir, a quem nos ater, o que amar e o que odiar, o que respeitar e o que desprezar. Para nós é pesado até ser gente, gente com corpo e sangue autênticos, próprios, temos vergonha disso, consideramos tal fato um opróbrio e procuramos ser uns homens gerais que nunca existiram. (...) Em breve, inventaremos um modo de nascer de uma idéia.”
Me fixei nessa frase da Camila: "sem sentido". Essa falta de sentido é o que diz A. Celso, falta de sentir.Sem uso dos sentidos não há como se p´roduzir sentido. Será que é simples assim? Essa "bobagenzinha" pra mim fez todo sentido!!!
ResponderExcluirÀs vezes ficamos tão acadêmicos e queremos sempre estar embazados em alguma teoria que perdemos essa excelente oportunidade da "bobagenzinha"...
muito obrigado, minhas queridas, são recepções de idéias assim que possibilitam pensar que o que escrevemos faz algum sentido. às vezes chego a imaginar que é puro delírio.
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