segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Gracias Che

Che é um desses personagens históricos que, já transformados em mitos durante a própria vida, mantém-se como demasiado humanos a despeito de toda exploração espetacular. Vem daí sua força simbólica, inteiramente distinta do barro que sustenta os pés dos ídolos pré-fabricados.


Haverá quem possa, de imediato, demolir esta afirmação, com argumentos bastante ponderáveis: os investimentos da propaganda cubana ou da ideologia comunista internacional sobre seu principal mártir na segunda metade do século XX; os contra-investimentos da mídia liberal que, ao manchar sua imagem, acabam por reforçá-la; e a persistência nostálgica do imaginário romântico de 1968, no interior do qual Che ocupa lugar proeminente. Não creio, porém, que tais expedientes sejam capazes de explicar a durabilidade do mito de Guevara.

Digo isto para recomendar aos meus poucos leitores que assistam à segunda parte do filme Che – a guerrilha, dirigido por Steven Soderbergh. Fui vê-lo neste sábado e sai bastante satisfeito, além de emocionado. Juntamente com o primeiro filme, que também me impressionou bastante, ele demonstra que se pode tratar da vida de uma figura desse porte com respeito e sensibilidade, sem efeitos especiais.

Quando foi fuzilado pelo exército boliviano, àquela altura sob a supervisão de militares norte-americanos, em 12 de outubro de 1967, Che já era conhecido em todo mundo, especialmente pelos estudantes de esquerda. Eu mesmo ainda guardo um caderno daquele ano (quando cursava o Científico  no interior do Estado de São Paulo), encapado com uma página da revista Realidade com fotografias da guerrilha nas selvas da Bolívia, em cujas páginas anotei vários pensamentos do líder guerrilheiro.

Em seu livro O poder das barricadas – uma autobiografia dos anos 60, Tariq Ali traça um amplo panorama das idéias e das organizações da esquerda em vários países da Europa, em que demonstra a presença marcante das idéias de Ernesto de Che Guevara nesse universo. Michael Lowy e Besancenot, em Che - uma chama que continua ardendo, ao analisarem alguns escritos de Guevara até pouco tempo inéditos, salientam tanto o conteúdo humanista do seu pensamento quanto o voluntarismo implícito em sua proposta guerrilheira. Apesar disso, ele despertou simpatias em toda parte, até mesmo entre intelectuais como Sartre, ou entre estudantes politicamente imaturos, como Regis Debray. Compreendidas e contextualizadas historicamente, as idéias de Che fazem sentido, ao contrário do que se lê muitas vezes seja em periódicos sensacionalistas de direita, a exemplo de Veja, seja em obras intelectuais desconstrutivistas, tão comuns hoje em dia.  
Nas décadas seguintes, apesar da derrocada dos ideais socialistas, representadas pela queda do muro de Berlim, da avalanche neoliberal e da supremacia da sociedade de consumo, o mito de Guevara continuaria a crescer.Cresceu espontaneamente nas inumeráveis tribos jovens e inconformistas do planeta, disseminou-se em imagens estampadas artesanalmente em camisetas, nas sombras da memória e da nostalgia até se tornar produto industrial, cinematográfico, midiático.
Nenhum mecanismo da tecnologia moderna será capaz, entretanto, de exaurir e liquidificar, pela reprodução excessiva, seu apelo de rebeldia. Nem toda mitologia deve ser destruída, os antigos já sabiam.

Em tempo: o filme termina ao som de Mercedes Sosa. Gracias a la vida!

3 comentários:

  1. Além de inspiração e admiração, a figura de Che propicia essa coisa rara da resistência aos mecanismos de captura da nossa sociedade. Essa é uma dimensão que me escapava, até ler esse texto.

    ResponderExcluir
  2. Algo me intriga muito na figura de Che, que pode ter sido um pouco explicada nessa dimensão da construção do mito. Como sua figura foi construida entre a discórdia da esquerda nas décadas de 60 e 70, já que sua "figura" se difundia, mesmo que de forma espontânea, mesmo entre a discordância mais acirrada entre foquistas, "sovietistas" e adptos do modo de expanção revolucionária chinesa. Mesmo as táticas e estratégias cubanas, representadas na figura de Che, terem sido muito criticadas por algumas linhas da esquerda, em foco no Brasil, sua figura acabou por ser difundida entre elas, com ou contra gosto, criando um exemplo exaltado, mas não seguido. Pouco se discute dessa contradição, principalmente na atualidade na qual a herança dessas linhagens que tentaram a revolução fora do método de foco tem, principalmente em suas juventudes a figura sólidamente construida de Che, numa espécie de contradição com o próprio passado, buscando a imagem do que era criticado estratégicamente como simbolo social da resitência.
    É de fato uma figura complexa em suas várias facetas, e sua leitura é cotidianamente vista e revista pelos mais diversos campos ideológicos, como consta na biblia da ala mais burra da burguesia brasileira, a veja...

    ResponderExcluir
  3. André, concordo inteiramente com vc, é um assunto que ainda merece ser analisado e há pouca coisa escrita, apesar da solidez e da beleza do mito.
    Sugiro que leia os dois livros que citei no texto: Memórias das barricadas, do indiano-inglês Tarik Ali (que conviveu com os gdes personagens políticos da época e ainda milita na esquerda hoje) e Che, do Michael Lowi, outro intelectual que continua fiel às origens marxistas.
    A propósito, como vai seu projeto intelectual para o futuro? Vc é um cara que tem cabedal e experiência para realizar um trabalho relevante.

    ResponderExcluir