domingo, 18 de outubro de 2009

É possível desacelerar o mundo?




Carl Honoré, autor do livro Devagar, pensa que sim. Militante do Slow Movement, esse historiador escocês se dedica a divulgar os projetos dos vários grupos, principalmente europeus, defensores da desaceleração. Seu texto é agradável, conquista o leitor pelo tom otimista e por se aproximar da literatura de auto-ajuda, consumida como hamburguer, coxinha e pão de queijo - sejamos também nacionalistas.
Para se equilibrar em nossa era de fúria - como denomina o tempo atual -, ele receita coisas simples e facilmente praticáveis: comer devagar e só alimentos orgânicos, fazer sexo lentamente (tântrico), trabalhar menos, beneficiar-se da medicina alternativa, praticar ioga e meditação, educar os filhos sem pressa e outras coisas do tipo. Ao terminar de ler o livro, quase sai levitando e pronto ao mais completo orgasmo, além de consciente de que tenho o destino em minhas mãos, de que é preciso apenas mudar o comportamento e o modo de ver o que se passa ao redor.
Conta Honoré que diversas iniciativas afloram pelo planeta nesse propósito: gente de todas as partes se reúne numa bela e pacata cidade italiana para fazer suas refeições horas a fio em restaurantes típicos desse novo e alvissareiro setor de serviços; abrem-se hotéis destinados a um lazer sem televisão, internet ou academias de ginástica; numerosos casais passam fins de semana inteiros em carícias preliminares ao gozo total (que só ocorre altas horas do domingo) ou viajam ao Oriente para aprender os princípios básicos do amor tântrico; pais educam seus filhos em casa. Criam-se, enfim, as bases para o restabelecimento do paraíso terreal.
Tudo para não se deixar levar pela vertigem turbocapitalista (termo usado pelo autor). Mas ele tambem deixa claro que não se trata de criticar o capitalismo, ao contrário, propõe um novo capitalismo, mais humano e lento. Até me emocionei com tal princípio de generosidade e bom-mocismo.
Ocorre que não pode haver capitalismo sem velocidade, advirto aos partidários da ecolentidão. Quantos novos vôos internacionais cruzam os ares da terrazul para levar os turistas às praias desertas ou aos mosteiros indianos de meditação? Quantos containers singram pelos mares nunca dantes navegados com carregamentos de alimentos orgânicos para os hotéis e restaurantes naturalistas? Quantos computadores são vendidos para a disseminação do próprio antimovimento?
Não quero desapontá-los, mas tenho estudado as conexões entre capitalismo, modernidade e velocidade desde a década de 1980. Meus trabalhos sobre a literatura modernista não eram exatamente sobre questões estéticas ou culturais, como hoje são feitos. Tratavam desse problema crucial em suas origens, quando as vanguardas modernistas aqui e alhures tentaram refletir a respeito das ciladas que o progresso do tipo capitalista arma para a humanidade. Já naqueles anos li Paul Virilio (citado de passagem no livro de Honoré), o urbanista e filósofo que melhor analisou as relações entre velocidade, guerra, política e técnica.
A desaceleração pensada pelo autor segue à risca o figurino do self-made-man, o princípio da individualidade e do capitalismo liberal, e no final das contas, não foge à lógica do sistema. Eu mesmo pratico um pouco das receitas de lentidão, é verdade. Sinto-me bem melhor quando faço dieta de gente e jejum social para preservar um pouco do meu sangue dos ataques vampirescos, próprios da sociedade contemporânea. Mas sei que tal atitude produz apenas um alívio individual esporádico.
Cheguei até a defender tais princípios num congresso acadêmico em que se tratava da criação de redes de alta velocidade para o ensino e a pesquisa. Concordei com a idéia em minha palestra, mas acrescentei, com alguns pingos de ironia, que além de instalar novos pontos de rede virtual em nossos campus, deveríamos pendurar redes artesanais de pano para os alunos balouçarem com seus laptops. Assim, eles poderiam alternar velocidade com contemplação da natureza, pressa e preguiça, atividade e reflexão restauradora.
Não será preciso dizer que o público acadêmico torceu o nariz para minha proposta, exceto alguns alunos. Que descansem em paz, pois não merecem as pérolas que lhes jogo! Oswald de Andrade, fabricante de biscoitos finos para gente de paladar rude, certamente teria compreendido do que eu falava.

8 comentários:

  1. Ai que susto! rs... quase acreditei que vc acreditava no livro do Carl Honoré... huf!!!...
    Pois é,lembro-me que um amigo me contou o que sua mãe lhe disse quando ele era adolescente e não queria mais sair do quarto nem fazer nada pq "não concordava com esse mundo que ele via"... ao que sua mãe lhe respondeu + ou -: "enqto vc fica ai tem muita gente vivendo o capitalismo para q vc esteja nessa posição!"
    Não adianta fugir! Pela lógica desse "solow moviment", inserido no capitalismo, os professores de ioga vão acabar estressados de tanto ter q dar aulas!!!...

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  2. Seria quase um movimento de desobediência civil! Já pensaram no imbróglio? Se medirmos a eficiência das coisas pela sua capacidade de se impregnar em nossa subjetividade, sem dúvida a sensação de tempo acelerado, que corre, escapa, escorre, é uma das campeãs! Porque a gente acelera “em casa” e “na rua”. Mas as coisas importantes e significativas demandam outro tempo, que ninguém mais tem paciência de esperar, sem se sentir ultrapassado... E quanta angústia deriva da relação que estabelecemos com o tempo.
    Outro dia ouvi numa palestra, alguém dizer, não sei se citando outrem: “são os ociosos que mudam o mundo, por que os outros não têm tempo”.

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  3. Slow Moviment? nunca tinha ouvido falar, mas acho que se encaixa mais num (tenho-dinheiro-sobrando-e-não-sei-o-que-fazer-moviment)para abrasileirar a coisa.

    Com essas coisas só me lembro minha mãe dizendo, como a maioria das mães: " - A pressa é a inimiga da perfeição."
    Mas quando o bolo tá cheirando no forno, a barriga já está rrrroncando de "fome" para o café-da-tarde e voce tem 8 anos, agente simplesmente ignora a lei da física.. ou seja... os efeitos colaterais...

    abraços e desculpa a demorar para postar aqui!

    Diogo Leite

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  4. Respondendo a pergunta se é possível desacelerar o mundo.. acho provável, o grando problema é que o "tempo-corrido-contado-e-calculável" é algo globalizado e globalizante impossível de se escapar, mas filosoficamente falho.

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  5. "Tempo é dinheiro". Implicitamente mesmo.
    Fico pensando o que seria possivel pensar sem nossa fé na ciência, sem nossas crendices cientificas (sei do paradoxo), sem poder criar artificialmente experiências e práticas (com algum prejuízo à experiencia e à prática)... o que se poderia pensar sem poder especular?
    Tudo isso para acusar o autor do blog de estar se valendo de um modelo explicativo (e ele sabe disso) e para escusar-me de disperdiçar o sublime Marx.
    O tempo (o tempo necessariamente necessario para produzir) tem uma relação direta com o valor (abstraindo por hora o trabalho, a quantidade de trabalho). Acelerar o tempo da produção é baratiar o produto e torna-se mais competitivo. Era logico que a desenfreada concorrencia capitalista levasse a essa aceleração que estamos experimentando. E uma certa ilusão de que é possivel e até necessario ter tudo o que se deseja instantaneamente.
    Fico pensando (como apontou o blog) a aceleração necessaria para satisfazer a essa nova necessidade por lentidão... esse consumismo da calma e da lentidão.

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  6. Por que a reflexão do primeiro paragrafo?
    Tive uma experiência bizarra com o "cessar o tempo" e o nada (não sei se podemos chamar de morte... morte simulada). Diante da morte experimentamos a infelicidade de sérias contradições. O Lama diz (e toda auto-ajuda), e faz sentido, "felicidade acontece quando o que voce diz coincide com o que faz" (mais ou menos isso). Seria algo como uma simplificação da tensão que existe entre ser e pensar ser, conhecer (pensar saber), entre experiencia e saber, argumentação,entre a prática e a ideias etc etc etc
    Sempre resistem contradições, dentro e fora de nós, resolvidas (ou eternamente repetidas, não sei) por nós (individuos e sociedade) dentro do tal do tempo e da ação. Diante do nada da morte, toda possibilidade.
    ... de volta a personalidade! Feliz de ter seus limites! Façamos nosso saudavel jejum de abstração...
    É preciso errar e arriscar pensar a vida... um blog é um pouco isso, voltando eternamente a esse assunto.

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  7. ops... escurreguei... deveria ter dito "tempo socialmente necessario" não "necessariamente necessario"

    o que a psicanalise teria a acrescentar sobre isso?

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  8. Tauanmgg, bom é saber de sua volta à vida!
    Seja bem-vindo outra vez.

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