sábado, 10 de outubro de 2009

Saramago, o blogueiro

Não sei se vocês conhecem, mas Saramago tem um blog que é um sucesso, chamado O Caderno. Algumas vezes visitei sua página, mas agora li também a versão impressa em forma de livro das matérias escritas entre setembro de 2008 e março de 2009.
É no mínimo curioso, ou divertido, acompanhar o velho escritor no seu cotidiano blogueiro. Estão presentes o mesmo ceticismo e a idêntica acidez que se lêem nos romances do recalcitrante comunista. É verdade que o estilo é um pouco diferente: os longos pagráfos sem pontuação são substituídos por frases diretas e mais curtas, como é de praxe na crônica. Mudam ainda os assuntos, pelo menos na aparência, dada a necessidade de se pronunciar sobre o que rola no imediato do tempo presente.
Mas só na aparência, uma vez que lá estão suas obsessões de fundo: as ilusões da religiosidade, a hipocrisia da sociedade contemporânea, a cegueira da esquerda e das massas, a desonra da política, a falta de sentido do mundo. Memoráveis são os trechos dedicados a Bush, personagem reduzido à hediondez, e especialmente aquele em que Saramago saúda com alegria sádica o sapato que voou no Iraque em direção à cabeça do presidente canalha. Outra figura que sofre os ataques frontais no blog é Berlusconi, tanto é que seu livro chegou a ser proibido na Itália. Há também matérias muito simpáticas sobre o Brasil e os brasileiros, nas quais o escritor repete todas aquelas qualidades que os estrangeiros nos atribuem (e que os críticos nacionais repelem). O tom geral, entretanto, é de militância crítica e política. Ainda bem.
Uma matéria me tocou profundamente porque responde a uma aflição que sempre me acomete quando escrevo alguma coisa - um livro, um artigo, até uma matéria de blog, superficialmente descomprometida. Foi um consolo perceber que um escritor do estirpe de Saramago também se angustia diante do destino das palavras que expelimos e não controlamos seu destino.
Permito-me, amigos e amigas, reproduzir parte da crônica:
"Valeu a pena? Valeram a pena estes comentários, estas opiniões, estas críticas? Ficou o mundo melhor que antes? E eu, como fiquei? Satisfeito com o trabalho? (...) Ou apenas a consciência de que qualquer obra humana não passa de uma pálida sombra da obra antes sonhada? Conta-se que Miguel Ângelo, quanto terminou o Moisés que se encontra em Roma, na igreja de San Pietro in Vincoli, deu uma martelada no joelho da estátua e gritou: 'Fala'. Não será preciso dizer que Moisés não falou. (...) Moisés nunca fala. Também o que neste lugar se escreveu ao longo dos últimos meses não contém mais palavras eloquentes que as que puderam ser escritas, precisamente essas a quem o autor gostaria de pedir, apenas murmurando, 'Falem por favor, digam-me o que são, para que serviram, se para algo foi'. Calam, não respondem. Que fazer então? Interrogar as palavras é o destino de quem escreve. Um artigo? Uma crónica? Um livro? Pois seja, já sabemos que Moisés não responderá".

Convenhamos, não é, ao menos, bela tal aflição?



  

Um comentário:

  1. A tradução dessa aflição em palavras é tão precisa e formosa que parece não haver outra forma de significá-la. Não acompanhava o blog do Saramago, mas já fui visitar e pude me deliciar com alguns textos. Boa dica!

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