Não sei se vocês conhecem, mas Saramago tem um blog que é um sucesso, chamado O Caderno. Algumas vezes visitei sua página, mas agora li também a versão impressa em forma de livro das matérias escritas entre setembro de 2008 e março de 2009.
É no mínimo curioso, ou divertido, acompanhar o velho escritor no seu cotidiano blogueiro. Estão presentes o mesmo ceticismo e a idêntica acidez que se lêem nos romances do recalcitrante comunista. É verdade que o estilo é um pouco diferente: os longos pagráfos sem pontuação são substituídos por frases diretas e mais curtas, como é de praxe na crônica. Mudam ainda os assuntos, pelo menos na aparência, dada a necessidade de se pronunciar sobre o que rola no imediato do tempo presente.
Mas só na aparência, uma vez que lá estão suas obsessões de fundo: as ilusões da religiosidade, a hipocrisia da sociedade contemporânea, a cegueira da esquerda e das massas, a desonra da política, a falta de sentido do mundo. Memoráveis são os trechos dedicados a Bush, personagem reduzido à hediondez, e especialmente aquele em que Saramago saúda com alegria sádica o sapato que voou no Iraque em direção à cabeça do presidente canalha. Outra figura que sofre os ataques frontais no blog é Berlusconi, tanto é que seu livro chegou a ser proibido na Itália. Há também matérias muito simpáticas sobre o Brasil e os brasileiros, nas quais o escritor repete todas aquelas qualidades que os estrangeiros nos atribuem (e que os críticos nacionais repelem). O tom geral, entretanto, é de militância crítica e política. Ainda bem.
Uma matéria me tocou profundamente porque responde a uma aflição que sempre me acomete quando escrevo alguma coisa - um livro, um artigo, até uma matéria de blog, superficialmente descomprometida. Foi um consolo perceber que um escritor do estirpe de Saramago também se angustia diante do destino das palavras que expelimos e não controlamos seu destino.
Permito-me, amigos e amigas, reproduzir parte da crônica:
"Valeu a pena? Valeram a pena estes comentários, estas opiniões, estas críticas? Ficou o mundo melhor que antes? E eu, como fiquei? Satisfeito com o trabalho? (...) Ou apenas a consciência de que qualquer obra humana não passa de uma pálida sombra da obra antes sonhada? Conta-se que Miguel Ângelo, quanto terminou o Moisés que se encontra em Roma, na igreja de San Pietro in Vincoli, deu uma martelada no joelho da estátua e gritou: 'Fala'. Não será preciso dizer que Moisés não falou. (...) Moisés nunca fala. Também o que neste lugar se escreveu ao longo dos últimos meses não contém mais palavras eloquentes que as que puderam ser escritas, precisamente essas a quem o autor gostaria de pedir, apenas murmurando, 'Falem por favor, digam-me o que são, para que serviram, se para algo foi'. Calam, não respondem. Que fazer então? Interrogar as palavras é o destino de quem escreve. Um artigo? Uma crónica? Um livro? Pois seja, já sabemos que Moisés não responderá".
Convenhamos, não é, ao menos, bela tal aflição?
Convenhamos, não é, ao menos, bela tal aflição?
A tradução dessa aflição em palavras é tão precisa e formosa que parece não haver outra forma de significá-la. Não acompanhava o blog do Saramago, mas já fui visitar e pude me deliciar com alguns textos. Boa dica!
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