Há sempre exceção, mas os historiadores costumam fugir de filosofias e teorias. O seu negócio é pão pão, queijo queijo. Para eles teoria se reduz a método, do tipo que fonte usar e como. Em tempo de pragmatismo absoluto, como hoje, eles estão no céu.
Acontece que o mundo gira muito rápido e nesse giro abala as crenças mais sólidas. Então, uma pergunta poderia ser feita a esses profissionais satisfeitos e seguros da sua especialidade: o pensamento histórico, tal qual conhecemos e que dá sustento à disciplina histórica, sobreviverá à onda de mutações rápidas atuais?
É sempre bom dar uma olhada no futuro, pelo menos de vez em quando, para ver qual o campo de possibilidades e probabilidades que ele nos reserva - e a nossas profissões, idéias e organizações. Muita coisa já foi ultrapassada, apenas sobrevive. E geralmente as instituições que vivem na condição de sobrevivência se tornam orgulhosas e convencidas da sua solidez. É só ver o caso do catolicismo versão Bento XVI.
Este preâmbulo é só para dizer que ando lendo umas coisas muito estranhas e que gostaria de compartilhar com vocês. Já citei Pierre Levi em postagem anterior, hoje recomendo o livro A condição humana: as aventuras do homem em tempos de mutação, organizado por Adauto Novaes. O mesmo que há mais de dez anos vem reunindo gente inteligente (rima necessária para ressaltar algo de que necessitamos) para discutir aquilo que vale a pena. Suas coletâneas anteriores marcaram época pelas questões debatidas e pelos nomes reunidos; os que estão presentes desta vez são figuras do porte de Slavo Zizek, Pascal Didie e Antonio Cícero, entre muitos outros des-especialistas.
O problema central pensado na obra é: a condição humana (velha questão lançada por A. Malraux) passa realmente por uma mutação em nossa era cibernética nascente? Adianto a resposta dada no livro: sim, e mal sabemos o alcance dessa transformação, mas se pode pelo menos cartografá-la e anotar alguns de seus caminhos, à maneira de um etnólogo.
No começo da década de 90 (ou teria sido antes?) publiquei um ensaio, antes apresentado numa palestra, a que chamei História fast food. Lembro que o texto foi até bem lido e citado, na maioria pelo pessoal mais jovem. Naquela época eu dava uma discilina na pós-graduação bastante concorrida. Líamos e discutíamos o que havia de melhor para entender a transformação acelerada da nossa época. A maioria dos meus colegas não dava bola e via aquilo como bobagem ou mero modismo.
Recordo também que exatamente naqueles anos a historiografia foi aos píncaros da glória com a nova produção (não gosto destes termos) gerada pelas novas metodologias e fontes. Isso coincidia com a grande profissionalização dos historiadores impulsionada pela política do estado brasileiro. Profissionalização mais sofisticação metodológica sem reflexão teórica verdadeira resultaram no que hoje temos: um pensamento que não consegue se autoindagar sobre o seu lugar, papel e futuro num quadro de ruptura radical. E que se contenta em praticar o que dá algum resultado imediato.
O tal do Pierre Levi diz que o pensamento histórico (assim como outros saberes correlatos) faz parte da era territorial, originada no neolítico e garantida pela escrita dos povos sedentários administrados por burocracias (tanto faz se republicanas, imperiais ou...), que necessitam registrar suas posses (incluindo as simbólicas). Ele se difundiu nessas circunstâncias e chegou ao apogeu no reino das mercadorias, cuja circulação ainda demanda registro contábil via escrita linear. Sabemos muito bem que o pensamento histórico nem sempre existiu. Até mesmo aquilo que chamamos de história (textos gregos, romanos ou medievais) não era bem o que teríamos da modernidade até hoje. Nada garante, portanto, que ele irá se manter num tempo em que a escrita muda de natureza, o sedentarismo se desfaz, e o território passa a ser o ciberespaço.
Ainda são conjecturas, bem sei, mas prefiro navegar por elas - certamente com medo, mas também com esperança - a viver seguro e tranquilo de olhos tapados.
Você tocou no ponto sensível dos historiadores. A intensa especialização é a fortaleza de muitos. É mais conveniente fugir do debate com argumento surrado da amplitude do tema ou então a postura defensiva, tipo essa é minha especialidade e não a sua. Sofisticação metodológiaca desprovida de reflexão apenas reitera uma postura descritiva, quase positivista. Os historiadores estão renunciando a missão mais importante, contruir um debate profundo acerca dos conflitos e tensões que permeiam a sociedade contemporânea.
ResponderExcluirNa minha faculdade eu percebo o desinteresse, ou talvez imperícia, de alguns alunos quando o tema é posicionamento teórico para discutir ou apresentar determinadas questões da nossa sociedade. Vejo professores batendo insistentemente nesta tecla, mas sem muito efeito, dizem ser muito difícil (e realmente é) e preferem ficar na zona de conforto e acomodação, que é onde nada acontece. Estes, acredito eu, não terão muito espaço para atuação num futuro que desde já se mostra muito dinâmico. Concordo com o Moacir e completo dizendo que essa renúncia da missão do historiador cavará sua própria cova.
ResponderExcluirSem querer chutar cachorro morto, mas ouso afirmar que não tem disciplina mais por fora do que se discute de realmente importante no mundo do que a história. A quase totalidade dos historiadores não tem nada a dizer, nem como contribuir. Você A. Celso é uma exceção mesmo, e me lembro de como fiquei contente quando vi sua palestra “O Historiador sem tempo” , chamando a atenção para a necessidade de reavaliar as coisas.
ResponderExcluirOs historiadores encaram a história como algo que se autojustifica - sigo o método e produzo uma obra historiográfica - e não é bem assim! Enquanto nosso modelo cognitivo desaba e tudo mais em volta, eles se comportam como “as pessoas da sala de jantar” da canção...
Muito bons os comentários do Moacir, do Gustavo e da Camila. Não quero me colocar como exceção, há historiadores brasileiros que vão fundo na reflexão - Sevcenko, por exemplo, entre outros, no "Looping da montanha russa" (acho que o título é este).
ResponderExcluirCamila se lembrou da canção dos Mutantes. Em 1968, qdo eu tinha 16 anos (pronto, revelei minha idade), escrevemos uma peça teatral chamada "Panis et circensis" que repreentamos no colégio (e teve até sucesso entre os colegas). A peça foi escrita por mim, Roberto Camacho, Rodinei Ribeiro e José Carlos Alevi, ainda hoje meus amigos. A principal música da trilha sonora tinha recém-saído no disco "Tropicália". Segue um trecho:
Eu quis cantar
Minha canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
A intensa especialização é proporcional a intensa competição no mercado de dissertações (coisa já dita aqui)... mercado de papéis.
ResponderExcluirJá nem se pode falar mais de “tese pela tese”, que o conceito de tese fica mal empregado. Nem li uma linha do que estou criticando... quem aqui leu?
... talvez por exigencia do ofício...
Bem, é preciso produzir os operários dessa maquina de papel.
Mas sinto que pra além das muralhas dessa fortaleza as coisas tambem não vão muito bem.
Pensemos em termos como esse: humanidades. Nós (humanidades) renunciamos a ação (politica?) e a utilidade. Desculpem. Não somos renegados, nos renegaram. O resultado desse exílio nas brumas é um ir e vir, um caminhar para dentro e para fora que não chega a lugar nenhum. Viramos meio que acessório. Toda polemica é ansia por novidade... é ficar antecipando e antecipando para produzir o novo. Ha a necessidade de afirmação intelectual, onde toda referencia se pulveriza... sim, são tempos liquidos, mas o homem é o mesmo ventre e braços e (acrescento arriscando tudo) coração (desejo de imortalidade).
Mas uma coisa feliz nisso tudo. Perdemos as mãos, mas nos restou a boca.
Somos ainda muito capazes de comunicar algo. Saibamos nos adaptar. Migremos para outros meios... o cinema. Saibamos reconhecer que já fazemos arte. E que raio é ciência?
Então não são só as letras que pararam nas belas-artes??? (poucos professores chegam às vangurdas de 20 e os que falam em pesquisar blogs e coisas afins - há 4 anos atrá, pelo menos...- são tratados como loucos...) Isso é pq falo de arte, literatura, q deve ser vanguarda!
ResponderExcluirÉ um prazer têlo por aqui A. Celso. Naquelas discussões enquanto vc era diretor, minha pouca experiência não tinha se dado conta de quão bom era ainda haver com quem discutir...
pois é... não estamos sós.
ResponderExcluirAcho que me excedi. Chovi no molhado.
Parece haver algo que todos nos intuimos aqui. Algo como um “problema”. As paredes do blog começam a estreitar. A compulsão discursiva do nosso blogueiro esgota nosso tempo de reflexão e discussão. Oh! Zuera
Que problema é esse?
Arrisco dizer que é algo tão antigo quanto Socrates... de ordem epstemologica.
ResponderExcluirDiria que ao contrario do que ocorre em nossa disciplina (a História... H maiuscula, respeito com a bixinha) em que reina o empirismo total, fora dela, um subjetivismo total. Mas não estou bem certo disso. Esse subjetivismo pertence ao um porvir... coisa de que já se apoderam os tais pós-modernos (não sei mais nem de que “pos” estou falando).
Deixem-me falar de algo que entendo: os livros mais vendidos. O livro que mais vendi em toda minha existencia como vendedor de livros foi “O Segredo”. Ele trata dessa indeterminação entre objeto e sujeito. Algo de que a física trata a algum tempo (desde que é quantica... as quebras de paradigma são mais radicais nessa disciplina). Basta pensar... pensar mesmo, com força... mais um pouquinho... que voce já esta lá! É o Otimismo que vende bem nessa Era do Gozo.
Por traz de todo esse lixo existem pesquisas serias tanto na fisica quanto nas humanidades... e no final tudo é humanidade, tudo é linguagem. Precisariamos reaprender a falar... reaprender a pensar. Para pensar e falar das mesmas coisas
No meu marxismo rupestre penso que sendo a experiencia humana uma coisa bem limitada, deveríamos tratar de resolver as coisas enquanto podemos (muito provavelmente não possamos nada). Penso que esse subjetivismo (e uma psicologização de tudo) se deva a uma “libertação” (de alguns individuos, mas em quantidade cada vez maior) da produção direita dos meios de subsistencia. Tentemos pensar a alteridade pra ver a complicação que dá. Taí talvez a acanhamento e a reserva da História diante de um desafio tão imenso: pensar esse mundo cada vez mais complexo... talvez contribuir para essa compreensão seja algo muito mais difícil do que demolir tudo. esse complexo de Edipo do tempo! Somos todos um pouco esse Edipo destruidor.
Psicologizei e reifiquei a Historia um pouquinho... mas foi o que o tempo e espaço virtual me permitiram. Toda contradição autofagica do Tempo.