terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Gritos antigos e modernos

Vem ai outra novela da Globo, Tempos Modernos. Não terá as praias ondulantes do Rio como cenário, e sim o centro velho e escangalhado de São Paulo. A história girará em torno das negociações e discórdias provocadas pelo projeto de demolição da Galeria do Rock para ali se erguer o Titã, edifício-símbolo da nova especulação imobiliária.
O título da trama parece inspirado no já clássico filme em que Chaplin ironiza com humor as engrenagens da máquina capitalista. Seria, porém, esperar demais da emissora carioca uma arte semelhante. Acostumada como está a culpar os pobres pelas enchentes e outras agruras da cidade, ela dificilmente abriria espaço para algum exercício ficcional crítico. 
Mas já houve tempo em que isso ocorreu, por exemplo, na novela O grito, do consagrado dramaturgo Jorge de Andrade. É certo que o folhetim não rendeu Ibope, além de ter despertado reações contrárias até no Congresso Nacional. Apesar disso, ela ficou para a posteridade como uma encenação emblemática daqueles anos de ditadura militar:


O enredo de O Grito também gira em torno de um edifício paulistano, o que indica outra provável inspiração para a nova novela. Intitulado Paraíso, vivera tempos de glória antes de ser transpassado, junto com outros prédios e avenidas, pelo monstruoso Minhocão (cujo nome oficial não me arrisco a dizer para não atrair fagulhas do inferno onde queima eternamente o corpo do homenageado). O personagem-chave da trama é um jovem enigmático e escondido no quarto sob a proteção da mãe, acometido por séria doença que o leva a dar urros lancinantes à noite. Os moradores, assustados com o louco oculto do apartamento e as aterrorizantes obras urbanas estampadas na janela do Paraíso, retratam a perplexidade da própria metrópole modernomalufista. Mas pouca gente da vida real entendeu o recado, como também talvez quase ninguém tivesse compreendido, em 1893, o grito expressionista de Edvard Munch contra a sociedade industrial:


Será agora que compreenderão? O Minhocão maldito continuou ali, um verme descomunal a corroer a cidade. O vídeo abaixo, em tom poético, mostra o alcance de sua perene destruição:


Virá um dia em que as fachadas de tijolo, concreto ou gesso, do passado ou do presente, poderão ser polidas, pintadas ou reconstruídas. Mas não será possível reconstituir as carnes e os espíritos humanos que vagam sob suas vigas. Que escorrem silenciosamente pela tela da Globo, como o lixo das enchentes, sem grito algum, em tempos modernos.

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