quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A mistificação dos desmitificadores

A novelha geração de intelectuais conservadores está toda prosa nas telinhas globobrasileiras. Uma das suas idéias fixas é negar as antigas distinções maniqueístas, presentes nos livros de História, entre conservadores e progressistas, direita e esquerda, mocinhos e bandidos, bons e maus, dominantes e dominados. O assunto não é novo no mundo acadêmico, ao contrário - desde as três últimas décadas do século XX é o que predomina nas ciências humanas sob o rótulo da desconstrução. 
Mas, apesar de certo desgaste resultante da proliferação de textos e falas desse teor, continua a ser um bom expediente para se alcançar a fama midiática, que o mais das vezes passa longe dos muros universitários. Derrubar mitos e revelar supostas verdades ocultas da sociedade é tema sempre atraente, escandaloso, ainda mais em época pré-eleitoral, quando as biografias de personagens do presente e do passado não passam ilesas no tiroteio pelo poder.
Não se quer dizer com isto que os intelectuais conservadores sejam dispensáveis no debate político. Algumas vezes eles deixam sua contribuição, sobretudo, quando arquitetam teorias sólidas e inovadoras, ou ainda quando expressam sua visão de mundo com criatividade artística. Há vários exemplos de filósofos, historiadores, escritores e artistas plásticos cujas idéias políticas suscitaram polêmicas proveitosas. Raymond Aron, na França, se notabilou durante décadas pela oposição a Sartre, confronto que motivou um debate fecundo. Mas não é preciso ir longe: o Brasil também dá exemplos de notórios conservadores, alguns deles assumidamente reacionários, que fincaram raízes na cultura. Basta lembrar de Gilberto Freyre, Nelson Rodrigues, Paulo Francis, entre outros.
Nem todos os conservadores, contudo, legaram obra relevante para a posteridade. Foi o caso dos novos filósofos franceses, com Bernard-Henry Lévy à frente, que passaram tão rápido quanto a moda da estação. Afoitos para alcançar o sucesso, afloraram e evaporaram na grande mídia durante o apogeu da era neoliberal. Faço votos que o mesmo não ocorra com a tal novelha geração brasileira patrocinada pela Globo - e por outros canais explicitamente partidários.
Ontem à noite, Mônica Waldvogel entrevistou dois dos seus expoentes no programa Entre Aspas, transmitido pela Globonews: o jornalista Leandro Narloch e o historiador Marco Antônio Villa, autores, respectivamente, dos livros Guia politicamente incorreto da História do Brasil e História do Estado de São Paulo, publicados há poucos meses. Em uníssono, ambos se empenharam em decompor a vasta galeria de mitos inventados, segundo eles, pela esquerda nacional: Zumbi, Aleijadinho, o samba, Getúlio Vargas, o binômio colonial senhores/escravos, a guerrilha do Araguaia, a democracia de esquerda e por ai afora.
Narloch parece ser novo no ramo, mas já desponta de forma alvissareira nos auditórios da direita, hoje tão carente de intelectuais orgânicos para a divulgação dos seus projetos. Villa, por seu turno, já é velho de guerra no desmonte dos mitos esquerdistas, missão que iniciou com a biografia de Jango e culminou na justificação do golpe de 1964 e da ditadura militar.
Não vale a pena seguir os meandros argumentativos da dupla, aliás, elogiados pela entrevistadora como expressão eloquente do que há de mais moderno na historiografia. É interessante, porém, relembrar a receita de método histórico exposta por Villa (deixemos o jornalista em paz neste aspecto que não diz respeito à sua profissão) quando indagado sobre como chegou às suas descobertas. Respondeu ele que cabe ao pesquisador se ater aos fatos e documentos, como diria um exímio historiador metódico, dito positivista, do século XIX. Exemplos de fatos e documentos? Os parcos tiros dados pelos guerrilheiros na guerrilha inventada pela esquerda e o exíguo número de mortos em seus combates ilusórios, de acordo com as fontes divulgadas pelos órgãos repressivos da ditadura.
Hobsbawm, um dos inventores da noção de tradições inventadas, certamente ficaria muito descontente com um uso tão banal de seu inteligente construto. Mas o que poderia esperar de um historiador que, camuflado pela capa da imparcialidade do saber histórico, trabalha incansavelmente em prol do projeto neoliberal de José Serra, recuperado dos ancestrais mitos bandeirantes? Ou do jornalista que afirmou, em tempo real, preferir os mitos da direita?
A novelha geração dos intelectuais conservadores poderá ser, um dia, tema fascinante de estudo sociológico - se é que atingirá no futuro algum patamar digno de mitologia. Haverá muita matéria e muitos nomes para analisar, geralmente originários dos bancos da USP durante as décadas de 1970 e 1980, época que gerou o tipo intelectual aparentemente realista, na verdade, um pragmático inteiramente comprometido com a ordem e o poder dominante arcaico. Aos citados devem ser somados outros, entre os quais, o dom quixote das gotas de sangue branco, derramado pela cotas raciais, e a anta-epígono de Paulo Francis, ancorada na coluna da Veja, cujo nome me recuso a dizer para terminar com alguma leveza de alma este post.

5 comentários:

  1. É Professor, a velha capa de imparcialidade, camuflando posições ideológicas e até partidárias. Historiografia, com discurso que é, sempre estará permeada de subjetividades, de ideologias, por mais rigoroso que pretenda ser o método. A História é viva, pois é permanente diálogo. Fico tranqüilo em saber que esse tipo de posicionamento revisionista fundamentado em supostas "novas verdades" será efêmero, posto que é "gesso", e gesso não é elástico, não resiste ao debate. Afinal, não chegamos ao "fim da História" e esta se tornou mais rica na medida em que o debate e a coragem em assumir posições, as mais diversas, se tornaram fundamentais para os agentes sociais que a constroem, incluindo aí os historiadores.
    Abraços.

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  2. ah
    passei os olhos nesse "Guia politicamente incorreto da História do Brasil"
    chegou na lojinha
    depois de ter topado com a afirmação de que o trafico de escravos teria beneficiado a Africa (reino tal enriqueceu coma venda de escravos...) não tive forças para continuar.
    É um veneno que adere (como o daquela anta que permanecerá sem ser citada). A Veja forma leitores (bem, pelo menos esse publico que compra livros em livraria) em numero muito maior do que a escola e a universidade. Aquela lista de livros da Veja decidi o que será consumido nas livrarias. É uma infeliz verdade.
    Logo, o debate de ideias não interessa. A multiplicação de justificativas e meias verdades promove essas verdades de gesso, que permanecem nas cabeças duras (sedentas de certezas e de justificação), contra as quais fica impotente no exilio (quem sabe se masturbando) uma complicação desmistificadora crítica.
    O velho permanece. Negar a historia, negar o conflito, negar que a historia é perspectiva, é tão velho quanto a propria historia. Pretender uma imunidade em nome da ciencia, que arrogue imparcialidade, mascarando interesses com verdades, é coisa ja conhecida. E olha que isso não é moda. É uma desgraça que permanece em forma.
    Aqui fora, estamos alheios ao que acontece ai dentro, nesse Valhala onde as ideias vivem eternamente em lutas mortais... onde morrem e nascem os herois do pensamento.

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  3. É o problema eterno das centenas de jornais de direita chamados "o imparcial", só na região de Rio Preto deve ter havido uns oito!! Ou das organizações "democráticas" que organizaram o golpe de 64.
    Vale a construção do menino lobo que morreu cheirando o prato antes de comer. As "antas" estão impregnadas, consumidas pela onda do liberal tida como eterna e não voltarão jamais ao estado de progresso das maiorias. São daqueles que julgam o MST de terroristas, que olham as resistências da década de 60 como românticas. Gritam discursos da VEJA e análises econômicas do Bom Dia SP, acham natural a sobre-representação parlamentar das bancadas ruralistas. Existe um monte de conceitos para enquadrar esses pensamentos. Particularmente eu chamo de direita retrograda, daquelas que nós ainda não superamos e que nos derrotaram sempre com tortura, cadeia e ditadura. Aliás, nada mais “imparcial” e “democrático” que os discursos dessas direitas se fazendo de anjos caridosos para esconder atrás das asas essas (des)construções dos poucos símbolos rebeldes que existem

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  4. O Villa escreve sobre a história para justificar as administrções tucanas, em particular as ações realizadas no governo FHC. Não assisti a entrevista mas li vários dos seus artigos na Folha e a sua especialidade é tratar parcialmente as informações. Já o Narloch tem uma reflexão muito rasa e apressada, tipica da construção apressada das pautas dos jornais. Falta a coragem intelectual de historiadores como Hobsbawm, cuja posição de esquerda não o impediu de tecer críticas as gestões socialistas/comunistas.

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  5. Isso eu também concordo, falta coragem de fazer a crítica, ou a auto crítica sobre os erros que todo sistema político e organização social comete. O problema é que poucos a fazem, preferem as pedras cegas sem conseguir estabelecer um balanço considerando os erros e os acertos.

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