terça-feira, 27 de abril de 2010

Ney embala o cabaré transmundano



Ouço sem parar Beijo bandido, último cd de Ney Matogrosso. Ouço e vejo coisas delirantes que não estão nas resenhas críticas. Segundo elas, ao se despir do exagero tanto no figurino quanto na interpretação corporal e vocal, Ney atingiu a contenção e o virtuosismo camerísticos. Uma ova!  Querem transformá-lo num ser cult asséptico, moldá-lo para a academia dos imortais inofensivos.
Ney já não pertence a este mundo, é verdade. O fato é que nunca pertenceu, principalmente quando incomodava a vida comum com sua androginia seca e molhada. Foi finalmente aceito e apropriado pelo bom gosto médio, mas não deixou de surpreender, até mesmo quando parecia se adaptar ao padrão cool, fetichistamente bossa nova da classe média.
Pura ilusão de ótica. Beijo bandido não é moderno nem releitura no estilo pós-moderno. Releitura é o que começou quando os tropicalistas esfriaram o Coração Materno dos penduricalhos arcaicos de Vicente Celestino. O beijo bandido de Ney Matogrosso, ao contrário,  reaquece velhos tangos, baladas, e samba-canções melodramáticos para um público que, mergulhado nas sensações mornas do cotidiano de hoje, se mostra ávido por inflamação sentimental.
Tudo começa com Tango para Tereza, dos arquibregas Evaldo Gouveia e Jair Amorim. Espiritamente, Ney psicocanta as paixões, as divas e os divos dos cabarés desaparecidos. Continua com o bolerão De cigarro em cigarro, de Luis Bonfá, passa por canções mais recentes, como as de Cazuza/Dé/Bebel Gilberto, Herbert Vianna, Chico/Edu Lobo. Canta, ainda, a belíssima Medo de amar, de Vinícius de Moraes, e magnificamente, À distância, de Roberto/Erasmo.
Não se trata, porém de uma homenagem aos clássicos, recurso atualmente usual entre os que clamam o aval dos desencarnados para ingressar na academia. O que Ney brilhantemente incorpora em seu teatro supostamente comedido, isto sim, é a tradição dramalhesca soterrada no cenário cultural brasileiro. Que vem ao ápice em As ilhas, de Astor Piazzolla e Geraldo Carneiro. Como se do além, Ney Matogrosso embalasse e iluminasse o cabaré apocalíptico do nosso transmundo. É ver e ouvir.

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