sábado, 6 de fevereiro de 2010

O retorno do recalcado

Dias atrás, na inauguração da sede do novo sindicato dos trabalhadores de processamento de dados, em São Paulo, Lula trouxe de volta a figura de Vargas,  intermitentemente rechaçada na história política brasileira. Segundo ele,
"muitas das coisas boas que temos devemos à coragem de Getúlio Vargas, à visão de Estado que tinha Getúlio Vargas. Estamos convencidos de que Getúlio prestou esse serviço ao Brasil. Lamentavelmente, uma parte da elite brasileira, inclusive uma parte da elite intelectual, vive inconformada porque não conseguiu ganhar o golpe de 32 que chamam de revolução. Aquilo foi uma tentativa de golpe. Não se conformam. É muito triste aqui em São Paulo a gente não encontrar uma rua com o nome de Getúlio Vargas".
Palavras precisas de um semi-analfabeto, como muitos intelectuais, entre eles vários historiadores, se referem ao presidente. Lula conhece por dentro o discurso dos ilustrados bandeirantes paulistas. Outro que sabia direitinho era, ele mesmo, um herdeiro da elite local - o traidor Oswald de Andrade, que expôs as entranhas golpistas de 1932 no romance A revolução melancólica.
Mas não é a historiografia e a literatura que interessam desta vez, e sim a política, com todas as letras. Não é à toa que a figura de Vargas ressurja de quando em quando no debate político. Com ele se reencena o papel do Estado no desenvolvimento nacional, ou - se quizerem - o nacional-desenvolvimentismo, velha questão descendente dos anos de 1930, que ganhou enorme estatuto de 1945 a 1964. Basta lembrar do Instututo Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), que aglutinou os intelectuais da esquerda nacional-desenvolvimentista.
O golpe civil-militar de 1964 interrompeu a formulação dos projetos desse teor e originou um contrafluxo de elaborações teóricas antinacionalistas. O quartel general dos novos grupos intelectuais se estabeleceu nos cursos de Ciências Sociais e Políticas, com filial no curso de Filosofia da USP. Ali foi gerado o conceito de populismo, noção mal-ajambrada que sorrateiramente ainda frequenta as teorias sobre o Brasil, mesmo em tempo de culturalidades politicamente neutras.
O conceito explicaria tudo: o autoritarismo político - para alguns, totalitarismo - de Vargas a Goulart, o controle sobre os trabalhadores e as massas populares, o fracasso das esquerdas aliadas aos populistas e assim por diante. Noutras palavras, a derrota de 64 se deveu às próprias forças de esquerda.
Fernando Henrique Cardoso foi um dos críticos ferrenhos do populismo e do modelo nacional-desenvolvimentista. O mesmo FHC que em 1994 afirmou que era preciso demolir o legado de Vargas e todo um passado que atravanca o presente para abrir um novo modo de inserção do país na economia internacional. Sabemos bem o preço pago nessa aventura.
Ganharam, também, projeção na crítica ao populismo intelectuais como Francisco Weffort e Maria Sylvia de Carvalho Franco, a filósofa que tentou desconstruir a ideologia do ISEB. Aliás, o termo ideologia andou na moda nos anos 70. Até mesmo Marilena Chauí contribuiu a seu modo para trazer à luz os silenciados do Estado populista. Os historiadores então - estes surfaram na onda com orgasmos múltiplos!
O PT paulista igualmente auxiliou na condenação ao populismo, naquela época em que a estrela vermelha rivalizou com o velho caudilho Brizola. O estigma do populismo, por fim, destruiu muitíssimas biografias e instituições do mundo cultural, principalmente o Centro Popular de Cultura da UNE e o Cinema Novo. Um dos principais algozes destas foi Arnaldo Jabor, que sintomaticamente se tornou o arauto da novelha direita udenista globonacional.
Mas nada disso adiantou. O recalcado sempre volta, às vezes com o nome de PAC, e cada vez mais forte.

2 comentários:

  1. Nota-se que você mora em SP. O Carnaval popular está vivo aqui no Rio de Janeiro: só ontem, sábado, uma semana antes do início oficial do Carnaval, saíram pelas ruas da cidade cerca de 116 blocos; o Cordão do Bola Preta, na sexta, juntou mais ou menos 100 mil pessoas (número igual à Passeata dos Cem Mil, mal comparando), e o bloco Simpatia é quase amor, de Ipanema, reuniu cerca de 70 mil pessoas. A rua é do povo, também no Carnaval.

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  2. Professor: não creio que Lula tenha se reconciliado totalmente com Vargas; faltou reconciliar-se com Jango. Existem muitos elementos antitrabalhistas em seu governo. mas realmente esse foi um bom momento de Lula em SP. Excelente postagem, explicando coisas difíceis com poucas palavras!
    Abs!

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