sexta-feira, 16 de abril de 2010

Dez passos imortais

Decidi andar. Não esperei o novo exame médico marcado para a próxima semana. Empurrei a cadeira de rodas para longe, joguei uma das muletas e dei meus primeiros passos, embora devagarinho. E nem foi preciso apelar para o milagre do pastor da Igreja da Graça.
Simplesmente sai andando, como Roosevelt no filme Dez passos imortais (Sunrise at Campobello, EUA, 1960), que vi há muito tempo, acho que na televisão. Adaptada de uma peça da Broadway, a fita trata da biografia do lider norte-americano, vítima da pólio, durante o período da sua campanha para a presidência da república. Na convenção do partido, o paralítico Roosevelt se levantou e caminhou solenemente em direção ao microfone para o seu discurso triunfal. É o ápice do filme - me desculpem por contar o final.
Mas o meu objetivo, ao levantar, foi menos heróico. Fui ao shopping, como bom filho da sociedade do consumo espetacular. É verdade que por uma meta nobre: comprar livros, já que li todos os que tinha por perto durante esta longa convalescença. Esgotei os poucos volumes disponíveis de Freud ou sobre Freud, inclusive um intitulado Freud e Édipo (Peter L. Rudnytsky), instigante, porém, erudito demais para meus pobres conhecimentos. Larguei nas primeiras páginas o Vou chamar a polícia, de Irvin D. Yalom, um psicanalista que começou bem com Quando Nietzche chorou, mas caiu no lugar-comum depois do sucesso.
Quanto aos livros da bibliografia do curso, de sofrida filosofia, como mostrei nos posts anteriores, também já os havia devorado. E o único romance que restava no quarto, um não romance, acabara de fechar sua última página - o magnífico Quase memória, de Carlos Heitor Cony. Não sobrou nada nem para limpar os dentes deste leitor compulsivo, que além de tudo, fica impaciente com os textos breves dos blogs e os brevíssmimos (140 caracteres) do twitter.
Pois, então, lá fui ao shopping com meus lentos passos mortais, imaginando maravilhas literárias, filosóficas, psicanalíticas, históricas ou afins a jorrar das prateleiras como leite no deserto. Exatamente numa sexta-feira, dia de frenesi nesta califórnia sertaneja e em todas as califórnias globais onde fervem as megastores culturais. Quando perus e peruas da classe média, com seus gordos adolescentes enfastiados, desfilam celulares de última geração em busca dos vampiros crepusculares. Quando as desocupadas correm sofregamente atrás de receitas self-service para o corpo e a alma descalibrados. 
Não me importei com o festival de horrores. Nada seria capaz de desfazer esse momento de conquista. Ainda que manco e apoiado na muleta que sobrou, vaguei entre Zibias Gasparettos e seus espíritos se abrindo para a vida (além do mais, iletrados), abri e fechei best-sellers, os únicos produtos culturais adorados pelas massas cinzentas do progresso.
Eu mesmo apanhei um, o mais volumoso, e me diriji ao caixa entre pisões apressados das crianças mal-criadas. E assim tive meu entretenimento para os próximos dias: A vida secreta de Marilyn Monroe, de J. Randy Taraborrelli, sucesso total de vendas nos Estados Unidos de Roosevelt - aquele homem da cadeira de rodas que deu passos decisivos para a reestruturação do capitalismo.
Que bom. Um país se faz com livros.

3 comentários:

  1. Um país se faz com livros e com homens e mulheres vigorosos, capazes de grandes coisas: grandes emoções, grandes convencimentos, grandes sacrifícios. Homens e mulheres que sabem que para andar é preciso dar o primeiro passo. Bem vindo à praça, professor!

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  2. Oi, Antonio Celso,

    muito gostosa a crônica dos "primeiros passos", a estranheza dos Shopings, a busca por livros que apaixonem, em meio a encontros e desencontros. Vivo bastante essa busca, entre paixões e decepções. E Tb estranho os Shopings, hoje vivi um de meus estranhamentos...Pensei, "Se minha avó viesse aqui, ia se sentir noutro planeta". Ela viveu até meados da década de 60.

    Estreio na net, e me sinto em meus primeiros passos. De pata...

    Um abraço,

    Eliane

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  3. Bom anoitecer de domingo chuvoso, pelo menos por aqui, na serra agreste pernambucana.
    Pois é...quando decidimos andar pelas palavras, sejam sonoras ou gráficas, tentamos encontrar a verdade que escondem. Caminhamos pelo espaço que se forma entre elas e ai, neste vazio silencioso, descortinamos sua essência. Gostei de sua crônica e eu, hoje por aqui, sinto-me aprendiz "manca", mas desafiada por este espaço maravilhoso. Parabéns

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